terça-feira, 15 de abril de 2025

Análise: Alguém Com Quem Falar

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione

Ainda não chegou às livrarias portuguesas - embora já se encontre em pré-venda no site da editora ASA há alguns dias -, mas já tive a oportunidade de lê-lo! Falo de Alguém com Quem Falar, do autor francês Grégory Panaccione, o mesmo ilustrador do indispensável Um Oceano de Amor, também publicado este ano pela editora ASA.

Desta feita, temos uma obra que adapta para banda desenhada o romance original homónimo de Cyril Massarotto e que tem como protagonista a personagem de Samuel, um homem de meia idade que vive a sua vida de forma solitária, tendo um emprego de que não gosta, um patrão que não suporta e apenas um casal de idosos vizinhos como os seus únicos amigos.

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Por alturas de mais um aniversário passado em solidão, Samuel embebeda-se de forma a encarar o tédio e a carência afetiva que o habita, e decide ligar para o único número de telefone que ainda retém na sua memória: o da casa onde passou a sua infância. Para seu espanto, quem lhe atende a chamada é um jovem rapaz de 10 anos, com o mesmo nome. A conversa vai fluindo até que Samuel se dá conta que o rapaz com quem está a falar é, na verdade, ele mesmo quando tinha 10 anos. Primeiramente, o protagonista revela-se perplexo mas, paulatinamente, vai sentindo uma necessidade constante de falar consigo mesmo, numa versão mais jovem.

Dito assim, pode parecer um artifício narrativo algo rebuscado e dado à fantasia, mas na verdade, é uma forma de, em sentido figurado, claro, colocar a personagem a falar com o seu eu jovem, o seu eu propenso a sonhos, a vontades e a positividade. O exato oposto do que se tornou a vida de Samuel. E o que é mais interessante é que o "Samuel criança" revela-se profundamente desiludido com o "Samuel adulto", pois, com a passagem dos anos, este tornou-se num homem solitário, sem ninguém com quem partilhar a vida, que mal tentou seguir os seus sonhos, como jogar futebol ou escrever um livro, e, por oposição, se arrasta num emprego que o deixa infeliz e sem qualquer autoestima.

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Será que todos nós, pelo menos em algum momento das nossas vidas, não desejámos falar com o nosso eu criança? Perguntar-lhe se ele estava satisfeito com a pessoa em que nos havíamos tornado? Será que nunca achámos que a nossa vida derivou muito dos sonhos ingénuos e imberbes que tínhamos durante os tempos da nossa infância?

Esta é uma obra que surpreende pelo equilíbrio delicado entre a profundidade emocional dos temas que aborda e a leveza narrativa. Desde as primeiras páginas, sentimos que estamos diante de algo especial: uma história simples à primeira vista, mas que ressoa com uma força inesperada. 

Um dos grandes méritos da obra é a forma como trata um tema tão denso - o vazio existencial, a solidão, a perda dos sonhos de juventude - com um tom que nunca se torna pesado. Pelo contrário, há sempre uma ponta de humor, de ironia leve, que torna a leitura fluída e até prazerosa, mesmo nos momentos mais melancólicos. Isso contribui para tornar o livro uma excelente porta de entrada para quem quer começar a ler banda desenhada, sem se sentir sobrecarregado.

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
O humor subtil que permeia a narrativa é, portanto, outro dos trunfos de Alguém com Quem Falar. Surge nos momentos certos, como uma válvula de escape, como um lembrete de que a vida, apesar de tudo, continua a ter graça. Esse equilíbrio entre drama e leveza é difícil de alcançar, mas Panaccione fá-lo com uma naturalidade impressionante.

Ao longo da leitura, é natural sentirmos empatia pelas personagens. Não apenas por Samuel na sua versão adulta, mas também pelos amigos idosos do protagonista, pelo Samuel jovem e, claro, pela bela Li-Na, a rapariga nova do escritório que vai mudar a vida de Samuel. 

A forma como a história é contada permite ao leitor refletir sobre si mesmo. Não há aqui grandes reviravoltas - bem, talvez haja uma reviravolta que poderá surpreender alguns leitores mais incautos - nem eventos extraordinários. O que há é "a vida", com as suas rotinas, desilusões e pequenos gestos de reconciliação com o próprio e com os outros. É uma história que nos obriga a parar e a pensar no que deixámos para trás, nos sonhos que enterrámos com o tempo. Será altura de os resgatarmos enquanto é tempo?

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Admito que havia um vasto potencial de opções narrativas com a possibilidade de colocar em contacto direto o "Samuel adulto" com o "Samuel criança" e que o autor - possivelmente em consonância com a obra original - optou por não aproveitar. Especialmente ao nível de como poderia o "Samuel adulto" ajudar o "Samuel criança" a lidar com os problemas inerentes à sua idade e ao seu crescimento, tendo em conta que já os tinha superado. Não obstante, é válido e bem conseguido o caminho narrativo escolhido pelo autor e estas questões que levanto talvez tornassem a obra densa de mais ou menos focada na ideia principal.

Em termos de desenho, Panaccione oferece-nos mais uma obra bastante bela. Não me conquistou tanto como em Um Oceano de Amor, mas, ainda assim, conquistou-me. O seu traço é simples, mas notavelmente expressivo. As expressões faciais exageradas, quase "cartoonescas" por vezes, ajudam a amplificar os sentimentos das personagens de maneira imediata. Esta abordagem especialmente expressiva, por vezes exacerbada num tom quase caricatural, não é um mero capricho estético - é um recurso narrativo inteligente, que dá voz às emoções das personagens de forma imediata e acessível. Cada rosto, cada gesto carrega uma intenção clara, uma emoção palpável. O que é impressionante!

Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA
Os desenhos brilham especialmente nos momentos em que os dois "Samuéis" se cruzam em diálogos que ocorrem em verdejantes paisagens. Há um ritmo visual muito bem conseguido, com o uso eficaz de silêncios, planos largos e enquadramentos que contam mais do que aquilo que as palavras poderiam dizer. É (mais) um exemplo de como a linguagem da banda desenhada pode ser tão ou mais rica do que a prosa tradicional!

A edição da ASA é em capa mole com badanas e com o miolo a apresentar bom papel baço e um bom trabalho a nível de impressão e encadernação. Mais uma vez, refiro que, tal como em Um Oceano de Amor, considero que se justificava uma edição em capa dura. Mesmo assim, tenho que admitir que é uma opinião muito pessoal - também há argumentos válidos para a opção pela capa mole - e que, apesar de tudo, estamos perante uma edição decente que não faz desmerecer a obra pela opção tomada.

Em suma, Alguém Com Quem Falar é uma celebração da humanidade falível, com todas as suas dúvidas e redescobertas. É uma obra que reúne qualidades narrativas, visuais e emocionais que a tornam acessível, profunda e inesquecível. É o tipo de livro que não se lê apenas, mas que se vive — e que, por isso, recomendo vivamente a quem esteja a começar a explorar o mundo da BD, ou a qualquer leitor que valorize histórias humanas contadas com sensibilidade e inteligência. Talvez porque, no fundo, todos procuramos "alguém com quem falar", alguém que nos ouça sem julgar, que nos ajude a ver com outros olhos aquilo que nos parece ser um caminho sem saída. E essa mensagem é passada neste Alguém Com Quem Falar com uma candura que fica connosco muito depois de fecharmos o livro.


NOTA FINAL (1/10):
9.6




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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Alguém Com Quem Falar, de Grégory Panaccione - ASA

Ficha técnica
Alguém Com Quem Falar
Autor: Grégory Panaccione
Editora: ASA
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 268 x 205 mm
Lançamento: Abril de 2025

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