A recente reforçada aposta da ASA em banda desenhada - que é ainda mais visível e palpável durante este ano 2025 - tem-nos brindado com belos livros numa cadência verdadeiramente impressionante, com algumas das suas obras a figurarem, para já, entre as melhores leituras de banda desenhada que fiz este ano como, por exemplo, Um Oceano de Amor, Hoka Hey!, Alguém Com Quem Falar ou Bobigny 1972. Mas se muitas vezes dizemos que "não se pode acertar sempre", este A Detetive Russa, da inglesa Carol Adlam, é manifesto exemplo disso. Mesmo que seja uma obra com um pressuposto interessante, acaba por não funcionar em vários quadrantes.
Carol Adlam convida-nos a mergulhar num suposto thriller ambientando no tempo e ambiente do escritor Dostoiévski, que nos coloca perante a investigação de um crime por parte de uma personagem híbrida chamada Charlie Fox. Tudo começa quando Elena Ruslanova, filha de um riquíssimo empresário da indústria vidreira russa, aparece morta. Charlie Fox, jornalista, mergulha então num longo e profundo trabalho de investigação para encontrar o assassino, à boa maneira do que teria feito Sherlock Holmes ou Hercule Poirot.
A história segue, pois, por várias camadas e "side quests" em que nos são dados muitos dados e várias perguntas. Só as respostas é que tardam a aparecer... mesmo quando fazem o seu aparecimento efetivo, pois esta é uma obra onda a narrativa deixa demasiadas pontas soltas. Por esse motivo, preparem-se para ficarem com perguntas sem resposta.
Reconheço que Carol Adlam demonstra uma notável coragem autoral ao lançar-se numa história que joga com o género policial noir, com espionagem, e com contextos históricos, especialmente com o pano de fundo russo-soviético, que confere um exotismo e densidade histórica à narrativa. A autora ambiciona, claramente, algo mais do que uma simples narrativa de mistério.
No entanto, é precisamente nesta ambição que reside uma das maiores fragilidades da obra. A narrativa torna-se, a certa altura, demasiadamente fragmentada, com saltos temporais e espaciais pouco assinalados e mudanças que, em vez de enriquecerem a leitura, acabam por contribuir para uma crescente confusão. Os leitores menos atentos — ou mesmo os mais experientes — poderão sentir-se perdidos na constante alternância de estilos e ritmos narrativos. Também não ajuda o facto de muitas das falas que encontramos nos diálogos entre personagens não serem acompanhadas por um balão, com as mesmas a serem introduzidas nas pranchas um pouco "à socapa", junto à personagem. Ora, escusado será dizer que nas ilustrações em que há várias personagens, esses diálogos se tornem confusos para o leitor que tem que andar ali a tentar adivinhar quem diz o quê.
As personagens, embora intrigantes - especialmente a personagem principal - raramente são plenamente desenvolvidas. Há sugestões de profundidade emocional e de passados complexos, mas muitas dessas camadas ficam por explorar ou são apenas vagamente referidas. A personagem principal, por exemplo, oscila entre o papel de heroína enigmática e o de figura deslocada, mas falta-lhe uma linha de coerência emocional que a torne plenamente convincente. O leitor fica, muitas vezes, a tentar decifrar não apenas o enredo, mas também quem realmente são as personagens que o compõem. Sou-vos sincero, obriguei-me a ler uma segunda vez este livro, achando que o problema poderia ser meu, mas a verdade é que essa segunda leitura até me levou a encontrar (ainda) mais fragilidades na obra.
Mesmo assim, A Detetive Russa, tem alguns méritos. Especialmente, devido a esta ser uma obra visualmente ousada e ambiciosa que procura transcender os limites tradicionais da banda desenhada. A autora adota uma multiplicidade de estilos gráficos, do expressionismo ao realismo, numa tentativa clara de ilustrar os diferentes estados emocionais e psicológicos das personagens, bem como de marcar as diversas camadas narrativas. Este esforço estético resulta num livro que, por vezes, até é fascinante, com páginas que mais parecem quadros cuidadosamente compostos do que painéis sequenciais convencionais. Essa dinâmica visual, que permite que o leitor seja surpreendido várias vezes ao longo do livro, até me remeteu, com as devidas distâncias, para o Na Cabeça de Sherlock Holmes, de Cyril Lieron e Benoit Dahan, já que ambas as obras nos tentam surpreender em termos visuais para melhor mergulharmos na investigação criminal da narrativa. Mas, claro, A Detetive Russa fica bastante aquém da outra obra que menciono.
Visualmente, contudo, há que reconhecer que Adlam demonstra um domínio técnico singular. Utilizando uma paleta de cores onde imperam os tons azulados, os enquadramentos revelam-se criativos e há um uso inteligente do espaço negativo. Estas escolhas estéticas sustentam parte do fascínio do livro, que convida o leitor a reler certas secções só para apreciar o detalhe gráfico. É uma obra que apela tanto ao olhar como ao intelecto — embora este último possa sair frustrado da experiência.
A estrutura da narrativa, por outro lado, dificulta a imersão. A história é contada através de fragmentos, cartas, relatórios e memórias que nem sempre se articulam de forma fluida. Essa opção estilística, que poderia enriquecer a narrativa se mais bem executada, acaba por gerar desorientação. Em vez de aguçar a curiosidade do leitor, este tipo de construção frequentemente interrompe o fluxo narrativo, exigindo um esforço de reconstrução que nem sempre compensa.
Mesmo o final da obra, longe de oferecer uma conclusão satisfatória, parece sublinhar a ambiguidade geral. O desfecho é aberto, pouco conclusivo, e deixa várias questões por resolver — não como uma estratégia deliberada de provocação intelectual, mas antes como um sintoma de uma narrativa que perdeu o controlo sobre a sua complexidade. Há a sensação de que Adlam quis dizer demasiado e acabou por não dizer o essencial.
Em termos de edição, o livro apresenta um bom trabalho, com capa dura baça, bom papel baço, boa impressão e boa encadernação.
Em suma, trata-se de uma obra esteticamente rica, mas narrativamente desequilibrada. A Detetive Russa é uma experiência visual memorável, porém confusa, cuja ambição artística não encontra eco numa execução narrativa eficaz. Apesar dessas fragilidades, não deixa de ser uma obra com algum interesse, com a sua ousadia estética e o seu desejo de inovar formalmente a merecerem ser dignos de elogio.
NOTA FINAL (1/10):
6.5
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