Uma das primeiras novidades que a Arte de Autor tinha reservadas para este ano, era este Radium Girls, da autora francesa Cy., num estilo e registo algo diferente - e mais moderno - do que aquele que mais frequentemente vemos no restante catálogo da editora portuguesa.
Radium Girls é uma pertinente banda desenhada que resgata um episódio trágico e relativamente desconhecido da história do século XX. Baseado em acontecimentos verídicos, a obra centra-se nas jovens operárias que, no início do século passado, trabalhavam a pintar mostradores de relógios com tinta de rádio - para dar aquele efeito fluorescente aos ponteiros que nos permite vê-los no escuro - sem saberem que estavam a manusear uma substância altamente radioativa e perigosa. A autora presta assim um tributo necessário a estas mulheres, que lutaram pela justiça mesmo quando tudo parecia estar contra elas.
A história acontece no ano de 1918, em New Jersey, Estados Unidos. Um conjunto de mulheres, que se tornam também amigas e confidentes, trabalham como operárias numa fábrica que fornece relógios ao exército. A função destas mulheres é a de pintar mostradores com a tinta "undark" a um ritmo bastante elevado. São centenas os relógios que cada mulher deve pintar por dia! Por graça, e por desconhecimento, estas mulheres até começam a utilizar a referida tinta fora do seu trabalho: pintam as unhas, o cabelo, os dentes, as roupas e a cara com esta tinta especial, e auto apelidam-se de "ghost girls", pois estes brilhos fazem com que, mesmo quando saem à noite, as mulheres se consigam ver no escuro e sobressair das demais.
No entanto, esta tinta é nociva - e mortal - para a saúde humana. E é passado pouco tempo que estas mulheres começam a ter complicações com a saúde, como anemia, fraturas e tumores. Percebendo, então, que há consequências diretas devido ao contacto com esta tinta - uma vez que quem mexe na mesma passa a ter problemas de saúde e, portanto, a correlação entre uma e outra coisa é clara - algumas destas mulheres tentam tirar satisfações junto da entidade patronal. Mas, claro, esta tenta abafar o caso, tanto quanto possível.
A história acaba por ser triste, por nos levar a constatar que a força de trabalho - especialmente o trabalho mais operário - é sempre o elo fraco na ligação laboral. Especialmente quando se tratam de mulheres. Parece-me que o tema não é tanto o das mulheres, pois acredito que se a história tivesse acontecido com homens operários a manusear esta tinta radioativa, o final seria semelhante, mas mais o da injustiça perante a classe operária e a proteção e desresponsabilização da entidade empregadora. Mesmo assim, por se tratarem de mulheres, historicamente fragilizadas pela sociedade capitalista, o relato ganha um cunho mais feminista, reconheço.
Um dos grandes méritos desta obra é justamente o de trazer à luz uma história muitas vezes ignorada nos manuais escolares ou esquecida pela cultura popular. Estas "radium girls" foram pioneiras involuntárias na defesa dos direitos laborais e da saúde no trabalho, e a sua luta teve repercussões legais que moldaram o mundo laboral tal como o conhecemos hoje. Cy. recupera esta memória com sensibilidade, rigor histórico e empatia, fazendo com que o leitor se envolva emocionalmente com cada capítulo da narrativa.
A leitura é acessível, mesmo quando o tema se revela perturbador, e a narrativa flui com naturalidade, alternando entre os momentos de quotidiano das protagonistas e os momentos de tensão e tragédia. A estrutura narrativa é bem conseguida, com um ritmo que mantém o interesse do leitor do início ao fim. A autora não se limita a relatar os factos históricos, mas constrói uma história com alma, povoada por personagens reais, mesmo que de uma forma por vezes superficial.
Do ponto de vista da ilustração, o trabalho de Cy destaca-se pelo uso de lápis de cor, conferindo aos desenhos uma textura suave e um tom delicado que contrasta com a dureza da história. A paleta de cores utilizada não é particularmente vasta, mas isso não prejudica o impacto visual da obra. Pelo contrário, contribui para uma coerência estética que se prolonga ao longo de toda a narrativa. Aliás, a própria autora aborda esta opção nos extras que o livro inclui.
Há momentos em que o aspeto visual ganha ainda mais força, nomeadamente nas ilustrações de maior dimensão ou nas separações entre capítulos. Nessas ocasiões, a autora dá ao leitor espaço para respirar e refletir, elevando a experiência de leitura a um novo patamar emocional. São momentos de pausa que reforçam a gravidade e a beleza da história.
Contudo, um dos pontos menos fortes da obra prende-se com o design das personagens. Em várias ocasiões, torna-se difícil distinguir entre algumas das protagonistas, sobretudo quando aparecem em grupo, pois apresentam traços todos muito parecidos. Essa semelhança pode confundir o leitor e comprometer um pouco a clareza narrativa, já que cada uma das jovens apresenta uma história e uma personalidade distintas.
Em termos de edição, este livro tem uma particularidade especial e original: quando visto na escuridão, permite que vejamos os reflexos das personagens da capa, em formas meio fantasmagóricas, devido ao tratamento de cor brilhante que é aplicado na capa. Fica assim feita uma ligação direta entre o aspeto da capa e o próprio tema tratado na obra, o que é um detalhe delicioso. Para além deste pormenor, a capa é dura, com textura macia. No miolo, o papel é baço e decente, com a encadernação e impressão a serem boas. Há ainda um bom conjunto de extras, com 10 páginas, com uma reveladora entrevista à autora, que é acompanhada por esboços e estudos de capa. Estamos, portanto, perante (mais) uma bela edição da Arte de Autor.
Em suma, Radium Girls é uma leitura que merece ser descoberta por um público mais vasto. Para além do valor histórico e artístico, a obra transmite também uma mensagem atual: a importância da transparência, da responsabilização das empresas e da luta pelos direitos dos trabalhadores. Num tempo em que muitas lutas continuam por travar, a história destas jovens operárias ressoa com força e pertinência renovadas.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Radium Girls
Autora: Cy.
Editora: Arte de Autor
Páginas: 136, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Março de 2025
Uma mulher exposta a radiação é especialmente dramático.
ResponderEliminarSim, sem dúvida! E diria mesmo mais: "uma pessoa exposta a radiação é especialmente dramático".
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