A editora Levoir lançou recentemente um dos seus livros agendados para este ano que eu mais queria ler! Falo-vos de O Desassossegado Senhor Pessoa, do francês Nicolas Barral, do qual a mesma editora já havia publicado, em 2020, o belíssimo Ao Som do Fado. Talvez por ter gostado tanto desse livro, talvez por gostar tanto de Fernando Pessoa ou talvez por este O Desassossegado Senhor Pessoa ter sido um livro bastante aclamado pela crítica internacional, estava, pois, muito curioso e empolgado para mergulhar nesta leitura.
E posso dizer-vos que Nicolas Barral não desilude e volta a dar-nos um belo e profundo livro de banda desenhada que, sinceramente, tomo como um privilégio e uma honra para os portugueses. O Desassossegado Senhor Pessoa é uma obra carregada de lirismo, imaginação e profunda portugalidade. Trata-se de um retrato comovente dos últimos dias de Fernando Pessoa, figura mais que central da literatura portuguesa, cuja complexidade interior é aqui explorada de forma credível, delicada e respeitosa. Barral volta a mergulhar na história e cultura da alma portuguesa, compondo uma verdadeira eulogia gráfica ao maior poeta do nosso país.
A narrativa, bem construída, acontece em 1935 e centra-se em Simão Cerdeira, um jovem jornalista do Diário de Lisboa, incumbido de escrever o obituário de Fernando Pessoa quando surgem rumores a ameaçar que a morte do poeta está iminente. Este ponto de partida permite ao autor guiar-nos por uma Lisboa dos anos 30, ao mesmo tempo que nos oferece uma investigação jornalística sobre Pessoa que não é mais do que uma (bem-vinda) forma de nos apresentar, de um modo leve, o mistério e a aura quase metafísica de Fernando Pessoa. O dispositivo narrativo - a busca de Cerdeira pelo homem por detrás do mito - acaba por ser uma metáfora para a própria leitura da obra de Pessoa: um labirinto de vozes, vidas e máscaras que, sendo díspares, têm enquanto denominador comum a mente genial de Fernando Pessoa.
Um dos méritos desta abordagem adotada por Barral é que a mesma não se torna demasiado explicativa ou académica. Ao invés, o autor francês opta por uma construção mais sensorial e poética, que respeita a ambiguidade do poeta e não tenta aprisioná-lo numa explicação racional. Os heterónimos, em particular Bernardo Soares ou Álvaro de Campos, aparecem de forma orgânica, pontuando a história sem a dominarem, como se continuassem a visitar o mundo através do corpo do seu criador.
A história, embora situada num momento terminal da vida de Pessoa, não se afunda em tristeza. Há nela um tom contemplativo, por vezes melancólico, mas nunca pesado. Barral escreve (e desenha) com reverência, mas também com liberdade, fazendo da obra quase uma extensão gráfica do Livro do Desassossego. É uma homenagem viva, por vezes poética, ao espírito inquieto de Pessoa e à pluralidade que o define.
A estrutura do livro alterna habilmente entre o presente da investigação de Simão Cerdeira e os ecos da vida interior de Pessoa, fundindo biografia e ficção com um equilíbrio raro. Nicolas Barral não tenta fazer de Pessoa uma personagem "normal", mas tampouco transforma o poeta português num mito inalcançável - prefere deixá-lo viver entre sombras e interrogações, tal como ele mesmo desejava.
A inserção de frases e reflexões inspiradas no universo pessoano, muitas vezes evocando trechos do Livro do Desassossego, reforça a dimensão poética do livro. São intervenções subtis que conferem à narrativa uma espessura literária, sem jamais quebrar o ritmo da leitura ou tornar o tema "forçado". A obra, neste sentido, posiciona-se entre a banda desenhada e a literatura, sendo ao mesmo tempo acessível e profunda, o que, como bem sabemos, é um equilíbrio que nem sempre é alcançável por grande parte dos autores.
Visualmente, O Desassossegado Senhor Pessoa é um livro belíssimo. Para além de Fernando Pessoa, também Lisboa protagoniza a história, surgindo retratada com uma paleta de cores quentes e nostálgicas, onde o azul do Tejo, os ocres das fachadas e a luz própria lisboeta ajudam a construir uma atmosfera evocativa e encantadora. As vinhetas, muitas vezes silenciosas, respiram como poesia visual, permitindo ao leitor mergulhar lentamente no mundo do poeta. O jornalista Simão Cerdeira tem uma fisionomia claramente inspirada no ator Adrien Brody que, entre outros filmes, protagonizou o célebre O Pianista. Relembro que já em Ao Som do Fado, o protagonista era inspirado no ator Benicio del Toro, o que revela uma inclinação de Barral para utilizar atores de características faciais originais, para retratar as suas personagens.
Um único e pequeno reparo que posso fazer ao desenho de Barral é que, por vezes, o autor adota uma linha demasiado grossa, destoando um pouco da delicadeza de outras sequências desenhadas com mais elegância e subtileza. Esse contraste não parece advir de uma opção narrativa ou conceptual, mas acontece várias vezes e, pelo menos a mim, provoca uma certa estranheza, ainda que nunca comprometa (muito negativamente) a qualidade geral da obra, concedo. Trata-se de um detalhe estético menor, mas ainda assim perceptível.
Em termo de edição, o livro apresenta as características naturais a que a editora Levoir já nos habituou na sua Coleção de Novelas Gráficas, embora, neste caso, a lombada seja branca e este livro tenha sido lançado, de forma independente, fora da referida coleção que, ao que tudo indica, este ano não deverá ser lançada. De resto, o livro apresenta capa dura baça, bom papel baço no interior e uma boa encadernação e impressão. Uma ou outra página pareceu-me desfocada. Não consegui averiguar se se trata de um problema da edição portuguesa ou se tal já havia acontecido na edição original. Mas fica a nota.
O livro inclui ainda um posfácio de Ricardo Belo de Morais, escritor e investigador da Casa Fernando Pessoa, que também traduziu o livro que lhe deu um título que, a meu ver, consegue ser melhor do que o original. Nota ainda para o facto desta obra ter uma capa alternativa, limitada às lojas FNAC, em que o fundo é amarelo, em vez de ser azul.
Em suma, O Desassossegado Senhor Pessoa é mais do que uma simples biografia ilustrada. É uma meditação que respeita a memória de Pessoa sem a enclausurar. Nicolas Barral, com sensibilidade e mestria, oferece-nos uma história que não pretende decifrar o poeta, mas acompanhá-lo nos seus últimos passos, através de uma carta de amor à Lisboa dos anos 30, ao mistério da criação artística, e ao homem que, do seu baú, deu voz a muitos outros homens e que continua, desassossegadamente, a falar connosco. Saibamos nós ouvi-lo.
NOTA FINAL (1/10):
9.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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