terça-feira, 24 de novembro de 2020

Análise: Ao Som do Fado



Ao Som do Fado, de Nicolas Barral

Ao Som do Fado é o 14º livro da coleção Novelas Gráficas da Levoir e do jornal Público, e fecha com chave de ouro a edição deste ano. É uma obra magnífica e verdadeiramente obrigatória para todo e qualquer fã de banda desenhada. E não só! A Levoir fez jackpot com esta aposta!

Por vezes, há situações na vida ou nas artes em que tudo parece correr bem. Parece que todos os astros estão alinhados entre si, de forma a dar-nos algo maior e melhor, por causa desse mesmo alinhamento. É o caso de Ao Som do Fado. Nas pequenas e grandes coisas, nesta obra tudo parece funcionar bem e com uma fantástica harmonia. 

Como primeiro ponto positivo é sempre de assinalar que a Levoir tenha conseguido lançar a nível mundial uma obra. E, ainda por cima, sendo uma obra sobre Portugal e o período do Estado Novo, ainda melhor isso é. É claro que isto, por si só, não seria garantia de um livro espetacular. Mesmo com lançamento mundial e tratando uma questão que interessa - ou devia interessar – aos leitores portugueses poderia, mesmo assim, ser uma obra mal conseguida. Felizmente, não é o caso. 

Avançando para a história, esta decorre em Portugal, durante a década de 1960, período em que Salazar ainda detinha os desígnios de Portugal nas suas mãos. O protagonista é Fernando Pais, um médico bon vivant, que mantém uma vida tranquila, embora pareça estar sempre perto do perigo, devido às relações que vai criando com pessoas que põem em causa o Estado Português. Curiosamente, e ainda mais se tivermos em conta esses tais relacionamentos que tinha, Fernando acaba depois por ser contratado para trabalhar na sede da PIDE. A obra vai responder o porquê desta situação mas isso caberá aos leitores desvendarem por si, para não criar spoilers. Ao mesmo tempo que vamos acompanhando a história de Fernando no tempo presente, vamos tendo flashbacks até ao seu tempo de estudante universitário, quando conhece alguns elementos da resistência portuguesa e se apaixona por uma militante, Marisa. Eventualmente, e passados 10 anos em que um acontecimento importante muda a sua vida, e a dos que o rodeavam na juventude, volta a aproximar-se de um grupo de inconformados com o regime vigente em Portugal. 

A história permite várias reflexões, mostrando-nos a tristeza (ainda) latente de um regime repressivo perante a liberdade de expressão e de associação, com acontecimentos algo chocantes ao longo da história, mas com um final algo positivo. Ou será negativo? Julgo que esta conclusão deverá ser feita por cada um dos leitores. Mas uma coisa é certa: a obra também sabe não tomar demasiado partido sobre os acontecimentos retratados. E mesmo se nos revela uma atuação da PIDE vergonhosa para a história de Portugal, também aponta num sentido mais positivo – um silver lining? – para que, passadas várias décadas do período do Estado Novo, saibamos aprender e ter uma visão panorâmica sobre os acontecimentos. E isto revela, que esta é uma obra profundamente adulta. Quanto mais maduros formos, melhor e mais profundamente compreenderemos Ao Som do Fado. Um jovem com 15 anos compreenderá certamente os significados deste livro. Mas um homem de 55 – ou de 75 anos, quiçá – conseguirá certamente mergulhar mais profundamente nela. Mas não há problema, se tudo correr bem, o jovem de 15 anos voltará a esta leitura anos mais tarde, descobrindo novos e/ou renovados significados. Portanto, isto também me leva a dizer que é um livro que deve ser lido por todos. E se eu fosse professor de História, na altura do estudo do período do Estado Novo, recomendaria certamente a leitura desta obra.

O argumento é muito interessante, fazendo com que o livro não seja apenas um livro histórico, pois pode ser lido em qualquer outra parte do mundo, mesmo por alguém que nunca tenha ouvido falar do Estado Novo em Portugal e, ainda assim, ser uma boa história. O ritmo não é rápido mas, nem por sombras, é demasiado lento. É o ritmo adequado e adulto, que permite criar pausas e reflexões, mantendo o nosso interesse em desvendar a história. Todas as personagens estão muito bem desenvolvidas parecendo-nos reais e que deixam a sua marca em nós, leitores.

Ainda não falei do autor deste livro magnífico. Nicolas Barral é francês mas aparenta ter uma forte ligação a Portugal. É verdade que casou com uma mulher cujo país de origem é Portugal e que, segundo o autor, muito contribuiu para lhe apresentar a cultura e história portuguesa. Este autor já é conhecido do público português devido à série As Aventuras de Philip e Francis – uma paródia à série Blake e Mortimer – que, em Portugal, está editado pela Arte de Autor.

Em termos gráficos, temos um livro com uma arte elegante que retrata Lisboa à época com muito cuidado e graciosidade. O trabalho de fundo do autor foi muito bem conseguido porque graficamente consegue recriar uma vida, uma presença e uma forma de estar das personagens que é, em tudo, muito lisboeta. Muito portuguesa. E a obra também se torna apetecível por ter tantos pontos emblemáticos da cidade como a zona de Alfama, o Cais do Sodré, a Praça do Comércio, o Chiado, o Rossio, a Cidade Universitária, a Rua Augusta, a Avenida da Liberdade, os cafés A Brasileira ou o Martinho da Arcada, entre outros.

O traço é elegante e bem desenvolvido, com personalidade própria e com uma boa capacidade de ilustrar as várias emoções das personagens. Se posso fazer uma única crítica a esta obra soberba é que o facto de várias vezes, o autor mudar a espessura do seu traço, alternando entre um traço mais fino e um traço mais grosso, não me deixou tão maravilhado porque prefiro de longe as ilustrações do autor com o referido traço fino. Mas não é nada que belisque a qualidade gráfica do álbum. É mais uma questão minuciosa e, francamente, oriunda do meu gosto pessoal, a falar.

Em termos de cores, o autor também acertou em cheio, captando muito bem a luz de Portugal. Tenho vários amigos e conhecidos estrangeiros que me dizem que a luz de Portugal – o próprio tom azul do nosso céu, assim parece – é diferente dos outros sítios. Dos outros países. Ao início achava que estes eram comentários resultantes do estado maravilhado de se passar umas férias ou umas temporadas em Portugal. Mas já vão sendo tantas as pessoas que, sem se conhecerem entre si, me dizem isto, que começo a achar que efetivamente têm razão e que, de facto, Portugal tem uma luz natural e um azul no céu únicos. Seja como for, Nicolas Barral percebeu issoe e transpô-lo para a obra. Quando folheio este álbum tenho a exata sensação de estar em Lisboa. Os flashbacks que vão acontecendo ao protagonista Fernando ao longo da obra, apresentam uma paleta a sépia que também funciona bem, e que permite ajudar à distinção entre tempo passado e presente, dando um charme adequado às lembranças da personagem.

Quanto à edição da Levoir, está em linha com a qualidade da maioria dos livros da coleção. Capa dura, papel fino de qualidade. Lamento que não haja prefácio a esta obra – bem o merecia! - mas sei que possivelmente isso se deve à gestão dos cadernos para impressão e da ausência de espaço livre para o fazer – sem ter que aumentar o livro, entenda-se. 

Portanto, e finalizando, tudo parece funcionar bem neste livro. O argumento é excelente, as ilustrações são bonitas, as imagens de locais portugueses são fiéis, é um documento histórico, tem personagens bem desenvolvidas, uma fantástica capa e até tem a elegância de um título muito inspirado. A isto ainda se junta o tal merecido lançamento mundial. Se tudo o que envolve esta obra não é perfeito, anda lá perto.

É uma proposta obrigatória, mais que recomendada, e assume-se como um dos melhores livros do ano. Daqueles livros que, daqui a 50 anos, continuará a ser um fantástico romance, uma magnífica ode a Portugal - e à cidade de Lisboa, em particular -, e um valioso testemunho histórico sobre o Estado Novo que tão profundamente marcou a história do nosso país. Se ainda não o compraram, não percam mais tempo.


NOTA FINAL (1/10):
9.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
Ao Som do Fado
Autor: Nicolas Barral
Editora: Levoir
Páginas: 168, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Novembro de 2020

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