A Vida é Bela, Se Não Desistires é a 12ª obra a ser lançada na Coleção de Novelas Gráficas da Levoir e do Jornal Público, e é a primeira obra do autor Seth a ser editada em Portugal.
Seth é o pseudónimo de Gregory Gallant, um dos autores de BD mais célebres da, também célebre, editora canadiana Drawn & Quarterly, que tem publicado ao longo dos tempos importantes bandas desenhadas de um estilo mais alternativo e mais maduro. Este A Vida é Bela, Se Não Desistires é uma prestigiada obra, tendo sido até eleita como um dos “cem melhores comics do século XX”, pelo The Comics Journal. Mas estas questões dos prémios valem o que valem, bem o sabemos, e fica apenas como nota de interesse. Mas já voltarei a este assunto.
Esta é uma obra autobiográfica em que o autor nos mostra alguns pedaços da sua vida, nomeadamente, a sua paixão, ou diria mesmo, obsessão, pelos cartoons das revistas The New Yorker. E é quando descobre um cartoon de um autor que assina como “Kalo”, e que Seth não conhece, que o seu interesse em saber mais sobre esse autor e respetiva obra, começa a aumentar, levando-o a procurar mais informação em qualquer lado possível, desde lojas de banda desenhada, a listagens de autores, ou, até mesmo, contactando os responsáveis da The New Yorker.
Toda a narrativa da obra circunda esta demanda de Seth, ao mesmo tempo que vamos conhecendo um pouco da sua vida, como a relação algo vazia que mantém, esporadicamente, com a sua mãe e irmão, ou o seu relacionamento amoroso e como o mesmo também é bastante superficial. A única coisa no protagonista da história que parece ser profunda é a sua relação e gosto pelas coisas do passado. Não só os comics antigos como tudo, de uma forma geral. No tempo atual, Seth revela-nos que já nada parece ter o charme e a qualidade das coisas de outrora. Acaba por ser uma pessoa presa ao passado e refém de um sentimento de saudosismo e nostalgia, que o invade nas mais pequenas coisas. Até na relação com a sua família. Se as memórias do passado com a família até são boas, a personagem parece estar desligada da mesma no tempo presente.
Além disso, também são feitas muitas referências a outros autores de banda desenhada que influenciaram o gosto do autor. Isso até é interessante, mas como certos cartoons são contados apenas em texto e sem qualquer demonstração visual, fica-se com a ideia que as referências acabam por não trazer nada de muito relevante à história. Parecem meros fillers narrativos ou um capricho pessoal do autor.
A arte de Seth apresenta um traço elegante que nos remete automaticamente para os cartoons clássicos dos anos 40 e 50. Funcionam muito bem e dão à obra um tom adequado, muito em consonância com a personalidade da própria personagem principal. As personagens são por isso bastante "cartoonizadas", tendo-me remetido para o estilo de desenho da série televisiva do Batman: The Animated Series, de Paul Dini e Bruce Timm. O estilo é, pois, por isso, vintage e os desenhos apresentam-se graciosos. Todo o livro é colorido em tons azulados que, juntamente com os brancos e pretos, dão um toque de classe e beleza suave à obra. Graficamente, é uma obra exemplar e bonita para observar.
Voltando à questão de A Vida é Bela, Se Não Desistires ser uma obra muito prestigiada quer para leitores quer para crítica, aproveito para dizer que, enquanto leitor e analista de banda desenhada, me considero bastante desprendido das observações que a crítica ou o público fazem a uma obra. Isso não quer dizer que eu esteja isolado na minha bolha. Leio muitos outros blogs e sites - com destaque para o blog português As Leituras do Pedro, do qual sou seguidor assumido – embora eu me obrigue a não ler análises às obras que irei analisar brevemente, para que, mesmo inconscientemente, não acabe influenciado nas minhas opiniões. No entanto, e é esse o ponto que pretendo passar, o facto de um livro vencer prémios ou ser aclamado por público e crítica não me leva a aclamá-lo também, só porque sim, ou para estar em concordância com os demais. Não me passa pela cabeça concordar (ou discordar!) só porque sim. Tenho que gostar verdadeiramente. Caso contrário, se for para ter um espaço que diz exatamente o que os outros já dizem, mais vale não o ter. E é por isso que considero o Vinheta 2020 como um espaço 100% livre, nas opiniões que emite.
E isto para dizer que este A Vida é Bela, Se Não Desistires é um bom livro mas, e a meu ver, apenas isso. Já muita gente mo tinha recomendado, ainda antes de eu saber que seria um livro a ser incluído nesta coleção de Novelas Gráficas da Levoir. E já o tinha visto em muitos TOPs de melhores livros de bd. Estava com grandes expetativas, mas, mesmo reforçando a ideia de que é um bom livro e, possivelmente, uma das propostas mais fortes desta edição de novelas gráficas, devo confessar que não correspondeu às minhas expetativas. As leituras que fiz de A Vida é Bela, Se Não Desistires – e até fiz duas para dar o benefício da dúvida e tentar perceber se era eu que estava “errado” ou a deixar escapar algo – levam-me a concluir que é um livro bonito e bem ilustrado, naquele estilo que, coerentemente com a história, nos remete para os cartoons clássicos da revista The New Yorker, mas que, em termos de história ou de mensagem, é uma obra algo seca e que, não sendo de todo vazia, também não aprofunda os seus intuitos convenientemente. É feito o convite ao leitor para algumas reflexões a retirar, aqui e ali, com a introdução de algumas frases bem calculadas - com a característica “quotable”, que qualquer autor sempre busca -, mas, no final, a sensação é de um certo vazio, de uma certa superficialidade narrativa.
Seth procura compreender a sua desilusão com o presente e o seu gosto pelas coisas do passado, mas parece lançar as questões para o ar, apenas. A tal procura por Kalo chega a apresentar um cariz “burocrático”. E não é que eu tenha ficado indiferente aos momentos calmos de reflexão, de nuances em termos de significado. A questão é que não chega a tocar lá no fundo. A obra está cheia de planos em que se vê o protagonista a caminhar na rua. São também utilizados alguns planos de detalhe, quer na rua, quer nos interiores. E se isso implica um certo cuidado com a meta-comunicação por parte do autor, a verdade é que acaba por ser um “truque” narrativo repetido demasiadas vezes. E, não sendo utilizado para algo mais denso em termos de potencial interpretação, acaba por cair na árida repetição de vinhetas que vão parecendo iguais umas às outras. Por exemplo, perdi a conta das vinhetas com ilustrações de casas que vão preenchendo as localidades por onde o protagonista passa. Se é verdade que as ilustrações são bonitas de se observar e que a utilização das mesmas nos permite uma viagem mais vagarosa e com mais atenção à envolvente dos sítios por onde Seth passa, às tantas a ideia de repetição e de vazio começa a habitar-nos a mente. Claro que, bem sei, Seth procura que, qual lugar comum, nos centremos mais na jornada do que no destino mas, ainda assim, a jornada, por si só, não chega a ser profunda ou dinâmica o suficiente para passar da mundanidade. Aquando o seu lançamento original, em 1996, talvez este livro apresentasse características próprias que o distinguiam dos demais. Hoje em dia, apenas me parece um livro bom. Sem ser excecional.
Quanto à edição da Levoir, temos um bom trabalho em mãos. Capa dura e papel fino de qualidade. Reparei que a característica orla preta, que deriva da lombada e ocupa uma pequena porção da capa, não foi introduzida neste A Vida é Bela, Se Não Desistires. Desta vez, a minha costela de designer percebe a razão. Como é um livro em que a capa é dividida em 9 retângulos, significa que se a tal orla preta, característica dos livros desta coleção, fosse colocada, ficaríamos com uma capa assimétrica porque, necessariamente, os retângulos do lado esquerdo da capa ficariam menos espessos que os restantes. Não funcionaria bem. Desta vez, compreendo totalmente esta pequena rotura com a homogeneidade dos livros. Parece-me também que o tamanho da letra dos balões está exageradamente pequeno em dimensão, o que dificulta um pouco a leitura do texto. Não é algo que considere que estrague a leitura – e até gostei da fonte escolhida, que encaixa bem no estilo visual da obra – mas reconheço que ficaria melhor se o texto fosse um pouco maior em dimensão.
Em conclusão, esta é uma obra que chega aos leitores portugueses com muito atraso em relação ao lançamento original. A Levoir está de parabéns por ter feito este “serviço público” aos amantes de BD. Embora esta seja uma obra com qualidade, um bom livro de BD, confesso que me deixou um pouco desiludido. Talvez a culpa disso seja o demasiado hype que envolve A Vida é Bela, Se Não Desistires. É bom, mas não considero que seja tão magnífico assim. É apenas bom. Não obstante, assume-se como um dos reforços de peso desta coleção de Novelas Gráficas da Levoir e Público.
NOTA FINAL (1/10):
8.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Vida é Bela, Se Não Desistires
Autor: Seth
Editora: Levoir
Páginas: 192, a 2 cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Novembro de 2020
Perfeitamente de acordo. Esperava mais.
ResponderEliminarObrigado pelo comentário.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEu sou um daqueles para quem esta é uma obra tremenda, que em muito marcou a minha leitura de BD...há 25 anos. Li-a em comic, que assinava, e comprei mais tarde o HC, s/n, que tenho aqui à mão: é um belo livro. Lerei a edição portuguesa e depois opinarei. Mas sim, lembro-me que é uma obra de bela sensibilidade, um livro nostálgico de outros tempos, e de paixão pela leitura, pelas revistas, pelas ilustrações...e por quem as faz.
ResponderEliminarCaro RC,
EliminarObrigado pelo teu comentário. Embora não tenha ficado tão maravilhado com a obra como tu, claro que reconheço que é um bom livro de BD. Abraço.
Hugo antes de mais gostaria de dizer que aprecio a sua franqueza e honestidade na avaliação desta obra mas não posso deixar de ficar com a impressão que não a fez da melhor maneira. Passo a explicar: a obra de Seth é extensa e atravessada por uma linha comum de "temas" que sugerem quase sempre nostalgia e contemplação, um quase retro-saudosimo no qual a linha gráfica é elemento essencial e na qual o autor investe toda a sua mestria - Seth, á semelhança de Daniel Clowes, faz o design completo dos seus livros. A paleta reduzida de cores é igualmente um elemento essencial, assim como a escolha dos materiais usados (papeis). Se tiver oportunidade, sugeria-lhe ler alguma das obras recentes para complementar a sua opinião. Não posso deixar de referir que, mais uma vez, a Levoir fez um desserviço aos amantes de BD por ter desvirtuado a experiência desta obra ao adulterar a integridade da obra original - refiro-me ao péssimo e "preguiçoso" trabalho de letragem, tanto nos balões como na capa, separadores etc, que o Hugo, como designer, compreenderá, são parte integrante e fundamental em qualquer obra. Mais uma vez, se tiver acesso a uma das edições originais verificará o verdadeiro atentado que aqui foi feito. Como costumo dizer, não basta editar, há que saber editar.
ResponderEliminarCaro António. Muito obrigado pelo seu comentário. Investigarei mais a obra de Seth, certamente.
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