terça-feira, 3 de novembro de 2020

Análise: Spaghetti Bros - Vol. 1



Spaghetti Bros - Vol. 1, de Trillo e Mandrafina 

Houve duas fantásticas surpresas que a editora Arte de Autor guardou para outubro deste ano. A primeira, já analisada no Vinheta 2020, é a maravilhosa série Armazém Central, de Régis Loisel e Tripp, que a editora recuperou recentemente. A segunda surpresa – não menos impressionante! - é o lançamento de Spaghetti Bros, da autoria de Carlos Trillo e Domingos Mandrafina. 

Embora já conheça algum do trabalho que esta dupla criativa produziu ao longo dos anos, confesso que não conhecia a série Spaghetti Bros, que é dividida em 4 volumes. E folheando apenas durante alguns segundos, não restam dúvidas: esta é uma série de estilo noir, ambientada na Nova York dos anos 30, e é detentora de uma arte espetacular, a preto e branco, por parte de Mandrafina. 

O que é que eu andava a perder! Para além da arte maravilhosa, a que voltarei, são as personagens que habitam esta série que nos cativam e nos prendem da primeira à última página. Verdadeiramente irresistível! 

O livro é composto por várias histórias de 8 páginas cada uma. Embora cada episódio possa ser lido de forma independente, todos eles estão ligados entre si, contando a história grande, aos poucos. É bom porque funciona bem das duas maneiras: os que apreciam histórias por capítulos, gostarão deste formato. Mas aqueles que preferem histórias grandes, também não terão problemas com este livro. São capítulos que se lêem como um todo. 

Acompanhamos as aventuras e desventuras da família italiana Centobucchi. Uma família que, à boa maneira italiana, nos remete para os Corleone de O Padrinho, de Francis Ford-Copolla, e que é composta por 5 irmãos, que são uns autênticos arquétipos da mafia. Se isto pode parece clichet, a verdade é que é na forma como as personagens se relacionam entre si, que esta série se torna verdadeiramente viciante. 

Temos Amerigo, o irmão mais velho, que é um autêntico gangster, que jurou assassinar o seu irmão mais novo, Tony, desde o dia em que a mãe, ao dá-lo à luz, perdeu a vida. Já Tony, antagonicamente, tornou-se polícia e embora pareça uma “boa pessoa”, também tem alguns fantasmas e segredos que encobre. Há também Frank, que é um padre de modos rudes que não tem qualquer problema em bater violentamente no seu irmão mais velho, Amerigo. Depois, temos as duas belas e sensuais irmãs: uma delas é Catarina, que se transformou numa estrela de cinema mas que, para isso, teve que vender a própria alma – e não só -, e finalmente, temos Carmela que, aparentemente, é a mais “normal” de todos, tendo constituído família. Mas também ela tem os seus podres e, quando o marido e os filhos estão a dormir, ela sai de casa, vestida de prostituta, e vai cometendo vários assassinatos, depois de ter relações sexuais com as vítimas. 

Estão a ver no que isto já vai? Moralmente reprovável e até escandaloso, ou seja... apetecível ao mais alto nível, certo?! Sim, é mesmo apetecível! É uma história muito bem engendrada por Trillo, com um trato muito adulto e, por vezes, violento, que nos oferece estas personagens carregadas de defeitos e vícios mas, pelas quais, acabamos por nutrir uma certa simpatia. 

E a isso também ajuda que Spaghetti Bros seja uma narrativa que é marcada por momentos dramáticos mas que, a par desses, também tenha vários momentos de humor. Não são raras as vezes em que o cómico de situação ou o exagero nas reações das personagens nos fazem sorrir. 

A comparação com a, igualmente genial, série Torpedo também é algo que nos salta à vista. O estilo visual é semelhante e a narrativa também aparece dividida em pequenos capítulos, que mesmo parecendo independentes entre si, se vão encaixando uns nos outros desvendando, aos poucos, a história maior da série. Embora me pareça que, eventualmente, Spaghetti Bros se leve um pouco mais a sério do que Torpedo. Seja como for, diria que ambas as séries são espetaculares e que uma é totalmente recomendável, caso se goste da outra. No meu caso, adoro ambas as séries. 

Em termos de arte ilustrativa, o trabalho de Mandrafina é absolutamente fantástico! O seu traço é ágil, habilidoso e permite-lhe uma caracterização fiel e extremamente bem executada quer dos locais, quer das personagens. A sua capacidade para caracterizar as expressões faciais dos irmãos Centobucchi e das restantes personagens, é de um talento raro e maravilhoso. O seu traço é elegante e clássico, fazendo lembrar as ilustrações de Will Eisner, com as devidas diferenças, claro. Visualmente é uma obra incrível que dificilmente não agrada a um amante de banda desenhada. Olhando até para a capa do livro e comparando-a com a arte presente nas pranchas, diria até que a a ilustração da capa fica bastante aquém dos desenhos que compõem o interior do livro. É preciso folhear o volume para que o encatamento pela ilustração surja facilmente. 

Destaque ainda para duas histórias mudas que funcionam de forma perfeita e que revelam, uma vez mais, a boa capacidade de Mandrafina para ilustrar de forma inequívoca uma narrativa muda. Não é seguramente algo que qualquer ilustrador consiga fazer. Pelo menos, tão bem. 

Só na planificação Mandrafina adota um estilo demasiado clássico, para o meu gosto. Cada uma das pranchas é constituída por 6 vinhetas quadradas e isto é feito ao longo de praticamente todo o livro. Contam-se pelos dedos de uma mão as exceções a esta regra. Diria que isto não é sequer um “problema”. Trata-se mais de uma opção do autor. Com uma arte tão bem executada, a verdade é que as páginas são plenamente cativantes, mesmo tendo uma planificação demasiado convencional. No entanto, penso que, eventualmente, a beleza desta banda desenhada ainda seria maior se houvesse uma maior dinâmica na planificação. Mas repito: não é um problema. É uma opção. 

A edição da Arte de Autor é (mais) uma edição de luxo. Papel de boa gramagem, título com acabamento a verniz e capa dura, com aquela textura aveludada que tanto aprecio e que a editora já usou em Armazém Central, O Castelo dos Animais, Os Cavaleiros de Heliópolis, entre outros. No final, um texto de duas páginas dá-nos uma breve contextualização da obra de ambos os autores. 

Em conclusão, esta é uma série maravilhosa de banda desenhada, com personagens inesquecíveis, ilustrações magníficas e que vai certamente encantar todos os amantes de histórias de estilo noir e/ou de gangsters. Embora o estilo, por ser clássico na ilustração, possa indicar que é uma obra mais direcionada para um público mais maduro, a trama construída por Trillo é tão bem intrincada que faz com que Spaghetti Bros possa igualmente apelar a um público mais jovem. Isto, claro, se esse público estiver disposto a dar uma oportunidade a esta série irresistível. Esta é mais uma cartada na mouche, por parte da Arte de Autor! 


NOTA FINAL (1/10): 
9.2 


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Ficha técnica 
Spaghetti Bros – Vol. 1 
Autores: Carlos Trillo e Domingo Mandrafina 
Editora: Arte de Autor 
Páginas: 196, a preto e branco 
Encadernação: Capa dura 
Lançamento: Outubro de 2020

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