De todas as obras da literatura que já devorei, o clássico 1984, de George Orwell, depara-se-me como uma das obras mais difíceis de adaptar à banda desenhada. É daquelas empreitadas com potencial para ser um “tiro no pé”, dada a dificuldade inerente a adaptar uma história tão complexa, com um mundo tão intricadamente construído, e em que só a explicação desse mesmo mundo distópico – a forma como o mesmo necessita ser explicado ao leitor – é, por si só, uma tarefa complexa. Mas o autor brasileiro Fido Nesti - que, em 2015, também já foi responsável pela adaptação para BD de Lusíadas, de Luís de Camões – dá a volta por cima e constrói uma adaptação grandiosa, bem executada e que está ao nível dessa obra-prima intemporal da literatura.
1984 é um dos meus livros preferidos de sempre. Escrito em 1949 pelo génio George Orwell, apresenta-nos uma visão distópica de como o mundo seria no ano de 1984. Estamos em Londres, uma província do estado de "Oceania", que está em guerra perpétua com um dos outros dois Estados que compõem o mundo. Os habitantes de Oceania vivem uma realidade em que a vigilância governamental está sempre presente e em que o Estado manipula, a seu proveito, os factos e até mesmo o passado. Há uma língua própria - a "Novilíngua" – e noções como individualismo ou liberdade de expressão são veemente perseguidas pelo Estado, através da sua "Polícia do Pensamento". Não é, pois, de admirar que vários sejam os “tele-écrans” que supervisionam constantemente cada indivíduo e que estão dispersos por toda a cidade de Londres. Estes tele-écrans funcionam como câmaras, mas também permitem a emissão de imagem. Este Estado autoritário é liderado – e simbolizado - pelo "Grande Irmão" que é adorado por todos os habitantes.
Acompanhamos o protagonista da novela, Winston Smith, que é membro do Partido Externo e que trabalha para o "Ministério da Verdade", onde é controlada toda a propaganda do Estado e onde se faz também uma revisão histórica, moldando o passado de acordo com as pretensões do Regime. Assim, se algo do passado não é conveniente, esse passado é reescrito, de modo a que pareça que se vive num mundo perfeito. E embora Winston seja um excelente trabalhador, começa interiormente a questionar o Estado e a odiar o Grande Irmão. Entretanto, desenvolve de forma secreta um romance com Julia. Ambos alugam o primeiro andar de uma loja de antiguidades, de forma a que este espaço, livre de tele-écrans do Governo, possa ser o seu refúgio. Mas, entretanto, a sua “rebelião” - se é que assim pode ser chamado o ato de se querer ter privacidade do Estado – vai fazê-los ser descobertos pelo Regime que, posteriormente, lhes administrará o seu tratamento através de um processo de lavagem cerebral, de forma a que Winston e Julia mudem os seus próprios ideais. Conseguirá o Governo mudar uma coisa tão livre e intangível como a liberdade de pensamento? É essa a grande questão que esta obra levanta.
É uma obra triste, inteligente, original, extremamente pesada no seu conteúdo, mas que faz uma reflexão muito clara e alarmante sobre o perigo subjacente a uma sociedade que fica refém de um regime autoritário assente numa ditadura, que consegue controlar o próprio pensamento dos cidadãos, e onde não há espaço para a intimidade ou para a individualidade.
E se, por ventura, aquando o seu lançamento, a obra terá parecido demasiado ficcionada e exagerada, a verdade é que, à medida que o tempo vai avançando, este 1984 parece cada vez mais atual na amplitude da sua reflexão. O que acaba por ser algo praticamente único na ficção futurista. É que, com o passar do tempo, as obras que procuram traçar um retrato de como será o mundo no futuro, parecem, muitas vezes, “chutar ao lado” nas suas previsões, o que faz com que gradualmente vão perdendo algum do seu charme e relevância originais. 1984 é o oposto. Quanto mais tempo passa, mais a obra parece atual. E não só isso é impressionante como, por outro lado, nos leva a poder considerar George Orwell como uma das mentes mais brilhantes do século passado.
Mas 1984 não é apenas magnífico por ser uma distopia que, tão antecipadamente, conseguiu perceber para onde o mundo estava (ou pode estar?) a caminhar. A verdade é que também é uma obra muito bem conseguida do ponto de vista narrativo. Era fácil, diria, que este livro se tornasse demasiado político, demasiado frio, demasiado pesado e, consequentemente, uma obra direcionada, apenas e só, para uma elite intelectual. Mas, ao saber dosear a história com um romance, que dá (alguma) cor à tal frieza burocrática que a obra pode parecer apresentar, o autor conseguiu que a sua obra chegasse às massas. E isso, a meu ver, é igualmente fantástico. Na música, é algo semelhante a quando se consegue fazer uma canção que reinventa o género, mas que consegue, ao mesmo tempo, ser comercial e passar nas rádios, chegando a muita gente. Uma coisa é ser-se conceituado junto da elite intelectual e nos livros do género. Outra coisa é ser-se conceituado (também) junto do Grande Público. Nunca mais um autor é esquecido quando o fruto da sua criação passa a habitar a memória e consciência coletiva. George Orwell e o seu 1984 - e, também, a sua outra obra O Triunfo dos Porcos, já agora - nunca mais serão esquecidos pela consciência coletiva da humanidade.
Posto esta nota sobre esta obra incrível, regresso ao início do meu texto. Era extremamente difícil adaptar este romance para banda desenhada sem o tornar demasiado vazio ou, por oposição, sem o tornar demasiado complexo. E Nesti conseguiu fazê-lo. Porque mesmo admitindo que é uma banda desenhada que pode parecer complexa a muita gente, também é detentora de um texto muito simples que procura que não falte nada para que os leitores possam mergulhar convenientemente neste universo. Talvez por isso, a grande maioria do texto desta novela gráfica nem sequer é dada através de diálogos, mas sim através da "voz" do narrador. Por vezes é verdade que existem algumas vinhetas possuidoras de muito texto mas, tendo em conta, uma vez mais, a obra que temos em mãos, penso que era a única forma de o fazer, não desvirtuando 1984. E além disso, como é um livro com mais de 200 páginas e em que, quase sempre, cada uma dessas páginas apresenta 8 ou 9 vinhetas, a tal abundância de texto é-nos dada com alguma contenção, permitindo-nos a entrada nesta distopia enquanto abarcamos esse universo visual que caracteriza esta bd.
E falar deste 1984 de Fido Nesti é, acima de tudo, afirmar claramente que o autor soube adaptar de forma maravilhosa esta obra enorme da literatura mundial. Tal como o livro, temos a história a ser dividida entre os 3 grandes capítulos. O primeiro capítulo serve para nos apresentar este universo distópico e algumas das dúvidas que começam a surgir na mente de Winston. O segundo capítulo é o mais leve da história. É quando Julia entra na vida de Winston e ambos parecem viver uma história de amor, erotismo e liberdade em plena clandestinidade. O terceiro capítulo é o mais pesado e mostra-nos, com frieza, como uma máquina estatal bem oleada consegue vergar qualquer ideia. Num mundo em que, cada vez mais, as nossas vidas são expostas para que estranhos possam aceder a ela ou onde os Governos têm as ferramentas para, se assim quiserem, saberem tudo sobre nós enquanto indivíduos - o que somos, como somos, do que gostamos, do que não gostamos, os nossos receios, as nossas valências - 1984 continua assustadoramente atual e é uma boa reflexão para os dias que vivemos.
Em termos visuais, Fido Nesti soube dar-nos a arte perfeita para ilustrar a obra. É um estilo de desenho eficaz, não demasiado detalhado, que procura não roubar o protagonismo em relação ao texto escrito, mas antes, servir o próprio texto com uma componente visual muito em linha com o mesmo, que nos oferece um casamento perfeito entre componente textual e imagética. As personagens de Nesti apresentam caras tristes, desiludidas, maquinais e de olhares vazios. A cidade de Londres é feia, escura e muito cinzenta. Aliás, cinzento é uma cor que habita toda a história que, por vezes, aparece salpicada por tons avermelhados, o que dá uma certa beleza cromática ao trabalho de Nesti.
E toda esta desolação física e cénica que Nesti nos oferece na sua arte ilustrativa, é tudo o que o texto de Orwell pediria. Vou até mais longe: o grande trunfo de Nesti é ter conseguido dar a esta bd, o exato ambiente criado na mente dos leitores – pelo menos, a sua grande maioria – quando leu a obra original. Já vos aconteceu verem um filme, depois de terem lido o livro original, e terem dito: “Não era nada assim que tinha imaginado isto”? E já vos aconteceu o oposto? “Era exatamente assim que tinha imaginado isto”? Este último cenário é pois o que me aconteceu com esta novela gráfica de Nesti. Para isso talvez tenha contado uma das adaptações cinematográficas da obra, com John Hurt no papel de Winston, e da qual Nesti também parece ter tirado ideias.
A editora Alfaguara estreia-se pois na edição de banda desenhada, com uma obra maravilhosa, de enorme fulgor e que recebe o carimbo de recomendada por parte do Vinheta 2020. A edição é boa, em capa dura e com papel de boa gramagem. Em edições de bd futuras deverá ser dada uma maior atenção à legendagem pois verifiquei que o texto aparece fora das legendas e balões 3 ou 4 vezes. Não é nada que estrague a obra, mas é, seguramente, algo que poderia ter sido evitado na revisão para se assegurar uma edição perfeita. Destaque positivo para o apêndice final que permite aos leitores mergulharem de forma mais profunda na Novilíngua, de forma a perceberem como a mesma é uma estrutura basilar na criação do mundo de 1984.
Em conclusão, o clássico de George Orwell, 1984, tem nesta magnífica aposta da Alfaguara, a merecida adaptação a banda desenhada. Fido Nesti faz um trabalho memorável e o universo visual por si criado - opressivo, triste, cinzento - é exatamente o universo visual que imaginei quando li a obra original pela primeira vez. Mas mais que ser uma obra visualmente relevante, o que também é fantástico é a forma como o autor soube adaptar o romance original. Parece que nada fica por dizer neste brilhante livro. Altamente recomendável.
NOTA FINAL (1/10):
9.3
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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1984 - A Novela Gráfica
Autor: Fido Nesti (adaptado da obra de George Orwell)
Editora: Alfaguara
Páginas: 224, a cores
Encadernação: capa dura
Lançamento: Outubro de 2020
Viva Hugo, tive a oportunidade de folhear recentemente esta obra, que me parece excelente em termos gráficos, mas uma coisa chamou-me à atenção - o formato, demasiado "diminuto" para uma obra deste peso. A edição original do selo brasileiro Quadrinhos na Cia conta com 20.4 x 27 cm, um formato bem mais próximo ao "padrão" europeu e que valoriza a obra em termos visuais e de leitura. Em contraste a edição nacional reduz, e muito, o formato para 17 x 24 cm , ou seja um corte de cerca de 15%. Qual a intenção do editor - poupar no papel? "adaptar" a um formato mais vendável/simpático por aproximação ao livro tradicional? Entendo que a Alfaguara como outras editoras tradicionais não têm experiência na edição de obras deste género e por isso cometem estes erros de palmatória, mas para o leitor avisado isto não deixa de ser uma diminuição da obra (literalmente...). Como disse estava muito tentado em investir nesta obra, até porque o editor, aparentemente, respeitou o português nacional, mas irei aguardar pela edição em inglês com formato mais próximo da edição brasileiro e com 64 páginas de extras.
ResponderEliminarCaro António. Naturalmente prefiro (quase) sempre formatos maiores em dimensão, pois a leitura faz-se em melhores condições. Neste caso, e embora existam vinhetas pequenas e com algum texto, acho que, mesmo assim, a leitura se faz bem. Pode não ser a situação ideal mas é aceitável para os meus padrões.
Eliminar"Qual a intenção do editor - poupar no papel? "adaptar" a um formato mais vendável/simpático por aproximação ao livro tradicional?"
Eu diria que sim.