Saphari é a mais recente aposta da Escorpião Azul e traz-nos de volta o autor espanhol Miguel Angel Martin, do qual a editora portuguesa já editou Bug (2017), Neuro Habitat (2018) e The Space Between (2019). O que quer dizer que, de há quatro anos para cá, é anualmente editado um novo livro do autor em Portugal.
E quando olhamos para o estilo de Miguel Angel Martin, percebemos que tem uma grande dose de personalidade. Um daqueles estilos que considero pertencer à categoria do “gosta-se ou odeia-se”. O tipo de ilustração é raro e único (?), sendo de uma muito ténue linha clara, totalmente a preto e branco, sem espaço para cinzentos, e as suas obras abordam tendencialmente temas algo bizarros, que não são muito comuns de encontrar em banda desenhada.
A cena inicial com que este Saphari arranca é uma verdadeira maravilha e a prova consumada em como o autor, em 37 páginas, consegue prender a atenção e interesse do leitor com uma sucessão de acontecimentos minuciosamentes detalhados e quase sem o recurso a texto escrito. O livro não poderia começar melhor. Quase que diria que já vale a pena ser conhecido só por esta cena inicial.
Depois deste início é que mergulhamos propriamente na história. Sandoval, após sair da prisão, tem agora um emprego temporário enquanto segurança numa zona industrial. E é assim que conhece Belasco que é o dono do restaurante "Saphari", que é especializado em carnes exóticas e em nyotaimori que, para quem não sabe, consiste em servir a comida (normalmente sashimi ou sushi) no corpo nu de uma mulher. É no restaurante Saphari que Sandoval conhece Amanda, com quem se envolve, e as suas duas curiosas filhas.
O universo criado pelo autor é futurista, com os automóveis a aparentarem não ter rodas e que planam pela estrada quando se deslocam, e, em termos de cenários, as ilustrações que Miguel Angel Martin nos dá, são despidas e muito simplistas, com edifícios em totais linhas rectas, compostos por paredes amplamente despidas. Há uma certa frieza futurista no mundo que nos é apresentado.
As personagens, especialmente Amanda e as suas duas filhas, trazem alguma profundidade à trama, embora me pareça que são dispostas na narrativa de forma meio aleatória, com o autor a não explorar devidamente a profundidade dessas personagens. E isto pode ser dito para toda a história pois, no final da mesma, fica a sensação de que é um livro que apresenta algumas ideias interessantes e originais mas que, infelizmente, não as consegue unir umas às outras, de forma a oferecer-nos algo verdadeiramente inesquecível. O que é verdadeiramente inesquecível é a fantástica cena inicial com que a história abre, repito. Pena é que a restante história não esteja ao mesmo nível.
Há também o elemento choque que o autor introduz, dando um humor negro à história. Este humor não é uma constante e está presente apenas em algumas partes como, por exemplo, quando Sandoval mostra a Amanda a foto de uma mulher grávida a praticar sexo oral a alguém, num plano muitas vezes utilizado na indústria pornográfica e, depois, tece a seguinte afirmação: “é a única foto que tenho com a minha mãe”. Cáustico. Provocador.
O mundo que Miguel Angel Martin nos oferece é um universo que apresenta, sem enaltecer nem criticar, um mundo fora dos valores da sociedade: desde o mercado das carnes, o nyotaimori, as lutas entre cães, o radicalismo no combate pelos direitos dos animais, a relação entre as próprias personagens, entre outros.
Mesmo assim, e ainda que alguns dos trabalhos do autor sejam célebres pela violência, cenas de sexo e bizarrias várias, a verdade é que este Saphari até me pareceu uma história mais leve do que outras obras de Miguel Angel Martin. Claro que há alguma violência e elementos bizarros mas diria, que é uma boa oportunidade para que os desconhecedores do trabalho do autor, mergulhem na sua obra. Uma boa porta de entrada.
Em termos de arte, há que admitir que as ilustrações são personalizadas e muito originais. O seu estilo parece deslocado e afastado dos demais. Mesmo assim, devo dizer que há duas coisas que não me agradam muito: a primeira é que me pareceu que algumas personagens – especialmente as masculinas – parecem demasiado semelhantes entre si. E a segunda coisa que não me agrada muito é que as ilustrações são tão limpas e despidas que me parecem inacabadas. Folhear este Saphari dá quase a ideia de que se trata de um livro de colorir, tendo em conta, que o espaço é tão pouco preenchido. Mas, lá está, são géneros. Reconheço-lhe originalidade e signature style, pelo menos.
Com uma edição semelhante ao catálogo da editora – capa mole e papel de 100 gramas -, a Escorpião Azul merece o meu respeito por apostar num autor com um estilo tão underground, arrojado e original.
Quase como se fosse um “filme de série B”, esta parece ser uma “banda desenhada de série B”. E quando olhamos para Saphari – e para as várias outras obras do autor - ficamos com a ideia de que o seu estilo nos remete para as pequenas produções de autor, com uma arte e um estilo completamente independentes e underground na sua génese. Mas não é só o estilo visual das suas obras que é singular. A sua linguagem narrativa também é bastante diferente e original. Esta é uma banda desenhada fortemente recomendada a todos aqueles que procuram algo que seja “fora da caixa” e que seja detentor de uma arte e de um argumento que não seja parecido com nada.
NOTA FINAL (1/10):
7.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Saphari
Autor: Miguel Angel Martin
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 152, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Setembro de 2020
"...Com uma edição semelhante ao catálogo da editora – capa mole e papel de 100 gramas..." quer dizer o quê? É bom...ou é mau?
ResponderEliminarCaro RC, quer dizer que é semelhante aos outros livros que a editora vai lançando. Não tem de ser mau nem bom. Bem, eu acho que o papel é demasiado "básico" mas não é "mau". E normalmente prefiro capas duras em vez de capas moles... mas nada contra capas moles.
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