Vou entrar já a pés juntos: este Anaïs Nin - No Mar das Mentiras é uma das melhores bandas desenhadas por cá lançadas em 2025 e, pelo menos até à data - visto que ainda falta serem publicados O Gosto do Cloro, de Bastien Vivès, e Kiki de Montparnasse, de Catel e Bocquet - a melhor obra, em termos gerais, presente na Coleção Angoulême, que a Devir tem vindo a lançar. E não o digo de ânimo leve, esquecendo que a dita coleção conta com obras de mestres incontornáveis da banda desenhada como Bilal, Muñoz, Sampayo, Pellejero, André Juillard ou Comès. É óbvio que para esta minha afirmação também contam duas coisas: por um lado, eu tinha pouco ou nenhum conhecimento da obra de Léonie Bischoff - e penitencio-me por isso! -, e, por outro lado, as restantes obras da coleção, sendo todas boas, já se apresentam algo mais datadas do que este Anaïs Nin - No Mar das Mentiras, originalmente editado em 2020 e vencedor do Prémio do Público de Angoulême em 2021.
Mas, voltemos ao início: este livro mergulha na vida íntima e intelectual de Anaïs Nin, uma das escritoras mais provocadoras e complexas do século XX. Situada nos subúrbios de Paris na década de 1930, a narrativa acompanha a história da escritora num momento de profunda crise pessoal e artística. Casada com Hugo, outrora artista mas que entretanto se transformou num profícuo banqueiro, Anaïs Nin sente-se emocional e sexualmente insatisfeita, o que a fará procurar uma existência mais intensa e verdadeira. O livro retrata também o seu envolvimento romântico com o escritor Henry Miller, o seu despertar sexual e artístico, e a sua constante luta entre o papel social que lhe é imposto e o desejo de ser livre. Uma liberdade que, não esqueçamos, inclui corpo, mente e criação.
Léonie Bischoff constrói uma biografia assente na realidade, mas com uma trama ficcional, que não pretende ser exaustiva, mas emocionalmente verídica. Bischoff explora o interior de Nin através dos seus diários e correspondência, recriando uma narrativa onde o real e o imaginado se confundem. O próprio subtítulo da obra, O Mar das Mentiras, revela-se uma metáfora poderosa e certeira para uma vida em que se entrelaçam as ilusões que Anaïs constrói sobre si própria e os segredos que esconde dos outros, em especial do seu marido. É nesse "mar" que se dá o verdadeiro conflito da personagem: entre o dever e o desejo, entre o silêncio social e o grito íntimo.
A leitura é, por isso, uma imersão na mente de uma mulher que queria mais da vida: mais emoção, mais prazer, mais verdade. Anaïs Nin é apresentada como uma figura contraditória. É hedonista, mas vulnerável. É egoísta, mas profundamente humana. E, claro, o seu comportamento pode suscitar repulsa ou fascínio no leitor, mas nunca indiferença. E é precisamente essa ambiguidade que Léonie Bischoff capta com maestria: o retrato de uma mulher à frente do seu tempo, que ousou transformar a fantasia em realidade, mesmo que isso implicasse enfrentar o julgamento moral e o sofrimento dos que a rodeavam.
E já que falamos de ambiguidade, a própria capa do livro é, por si só, uma síntese visual da dualidade de Anaïs Nin. A figura da mulher à superfície, elegante e controlada, protegendo o seu diário de olhares alheios, contrasta com a sua versão submersa, liberta e primitiva, abrindo o diário como quem abre o inconsciente. Que capa fantástica!
Este jogo entre o que é mostrado e o que é ocultado percorre toda a obra. Por um lado, Anaïs Nin era uma mulher que se procurava com a sua posição social, por outro lado, era uma mulher demasiadamente deslumbrada pelas profundezas das suas paixões. Talvez por isso, o seu marido soubesse da existência de um diário, mais leve e aceitável, mas não desconfiasse que a sua mulher tivesse um segundo diário onde expunha a verdadeira essência dos seus desejos. O adultério, o incesto, a bissexualidade... tudo isso fez parte da experiência desta mulher.
Esta obra figura entre as bandas desenhadas mais sensuais que pude ler. E quando falo em sensualidade, não me refiro a pornografia, pois escasseiam, até, as ilustrações mais explícitas neste livro. Refiro-me, isso sim, à sensualidade tão a nu de uma mulher, pois bem sabemos que a figura feminina tem sido voltada ao silêncio e ao decoro ao longo da história. Assim, mergulhar nesta obra é mergulhar na mente de uma mulher que procurava mais da vida: mais emoção, mais sentimento, mais luxúria, mais vida.
E se parte de nós pode repudiar certos comportamentos egoístas e amorais de Anais Nin, outra parte enaltece o seu comportamento hedonista e, completamente - até para o tempo atual em que vivemos - avant-garde.
Léonie Bischoff capta a figura de Anaïs Nin na perfeição, com um dos seus grandes méritos a assentar na forma como Bischoff traduz a sensualidade da escrita de Anaïs Nin para o campo visual. A sensualidade aqui não reside na nudez ou no erotismo explícito, como já referido, mas na delicadeza do olhar e na vibração emocional de cada gesto.
Mais do que uma biografia, Anaïs Nin - No Mar das Mentiras é uma celebração da liberdade feminina: de pensar, de sentir, de desejar. Léonie Bischoff aborda a libertação do corpo e da mente com uma suavidade que nunca se confunde com condescendência. A autora compreende que a sensualidade é, antes de tudo, uma linguagem emocional e intelectual. Ao dar voz e corpo a essa linguagem, Bischoff reabilita Anaïs Nin como uma mulher que viveu intensamente a sua própria verdade.
É, pois natural que, no final do livro, fiquemos divididos entre a admiração e o desconforto, tal como a própria Anaïs Nin deixava os que a conheciam. A sua busca por prazer e autenticidade é, ao mesmo tempo, um gesto de coragem e de vulnerabilidade e nós, leitores, somos convidados a mergulhar nesse oceano de contradições humanas, onde a beleza nasce do conflito entre o que é dito e o que é sentido.
Visualmente, o livro é um deslumbramento. O traço de Bischoff, delicado e multicolorido, é simultaneamente etéreo e denso. O uso do lápis confere uma textura íntima, quase táctil, às páginas, como se estivéssemos a folhear o próprio diário de Anaïs Nin. Cada vinheta é composta com uma sensibilidade que ecoa o estado de alma da protagonista: linhas curvas e suaves nos momentos de prazer e introspeção; traços mais fortes e cores mais intensas nas cenas de conflito e desejo.
O desenho é verdadeiramente sublime, requintado e delicado, com cada uma das ilustrações de Léonie Bischoff a estar carregada de pormenores e nuances que clamam por uma leitura mais demorada.
Há também um diálogo subtil entre o texto e a imagem que enriquece a leitura. Muitas vezes, o que é mostrado contradiz ou complementa o que é dito, criando uma narrativa dupla, onde a ambiguidade se torna parte do prazer de leitura. O uso simbólico das cores, com tons suaves em oposição a cores mais densas e quentes, serve como expressão dos desejos reprimidos e da libertação progressiva de Nin. Essa escolha plástica amplifica o tom poético e onírico da obra.
A edição da obra é em capa dura baça, com bom papel baço no miolo. A encadernçaõ e a impressão são de boa qualidade. O formato estandardizado desta coleção da Devir é, como já comentei nos textos referentes a outras obras desta coleção, relativamente pequeno (17 x 24 cms), mas, no caso deste Anaïs Nin - No Mar das Mentiras, não me parece que isso impacte negativamente a experiência de leitura.
Em suma, esta é uma obra esplêndida, poética, onírica e verdadeiramente sensual. Se por vezes se pode dizer que ficamos automaticamente fãs de um(a) autor(a) só por causa de um livro, eu posso dizer que, à conta deste fabuloso Anaïs Nin - No Mara das Mentiras, fiquei fã de Léonie Bischoff e faço sinceros votos para que sejam publicadas em Portugal mais obras desta brilhante autora suíça.
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Anais Nin - No Mara das Mentiras
Autora: Léonie Bischoff
Editora: Devir
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Outubro de 2025
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
.jpg)
Sem comentários:
Enviar um comentário