A editora Levoir surpreendeu os leitores portugueses quando, por alturas do mais recente Amadora BD, anunciou o lançamento duplo da adaptação para banda desenhada de O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Especialmente, se tivermos em conta que a coleção dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD já havia chegado ao fim, após a publicação do anunciado 15º volume.
Mas a Levoir decidiu continuar a coleção que convoca os grandes clássicos da literatura portuguesa para uma adaptação em banda desenhada e fê-lo com mais uma adaptação da obra de Fernando Pessoa, desta feita com argumento de Pedro Vieira de Moura e desenhos, no primeiro volume, de Susa Monteiro e, no segundo, de Bernardo Majer.
O Livro do Desassossego é uma obra literária única, caracterizada pela sua estrutura fragmentária e introspectiva. Não se trata, portanto, de um romance tradicional com enredo linear, mas de uma coleção de pensamentos, reflexões e observações. A obra explora a vida interior do narrador, a sua percepção da cidade, do tempo, da existência e da arte, revelando sentimentos de melancolia, tédio, solidão e um constante questionamento sobre a realidade e a identidade. A escrita é muitas vezes poética, filosófica e profundamente subjetiva, refletindo a complexidade da mente humana e a inquietação existencial de Fernando Pessoa.
A obra não segue uma ordem cronológica e reúne fragmentos que foram escritos ao longo de muitos anos, publicados postumamente. Como tal, é uma das obras mais enigmáticas de Fernando Pessoa, e esta adaptação em banda desenhada propõe um mergulho visual que respeita essa complexidade. Não estamos perante uma narrativa convencional, mas sim diante de uma experiência sensorial que acompanha a pulsação introspectiva do texto. Pedro Vieira de Moura conseguiu transformar a fragmentação da escrita pessoana em algo coeso o suficiente para que o leitor possa navegar pelo labirinto de pensamentos sem se sentir perdido.
Mas não vos vou mentir: este é um livro difícil de ler. A fragmentação do original exige concentração, atenção aos detalhes e paciência. É normal que muitas vezes nos percamos ou que nos pareça que a obra navega em demasia na maionese. Não obstante, a beleza desta adaptação é que não tenta simplificar ou adulterar a obra; pelo contrário, oferece-nos ferramentas visuais para acompanhar a introspeção de Pessoa, mantendo a essência desconexa que caracteriza a escrita do autor.
O primeiro volume abarca textos escritos sob o heterónimo Vicente Guedes, entre 1913 e 1919. Aqui, o trabalho de Susa Monteiro brilha. O seu estilo contemplativo encaixa-se na perfeição com a natureza abstrata do texto original e a densidade filosófica dos fragmentos iniciais. Cada página transmite um ritmo meditativo, quase hipnótico - bem em linha com aquilo que a autora já nos havia oferecido em Mensagem - que permite ao leitor sentir a Lisboa da época através da lente da subjetividade pessoana. A composição das ilustrações cria um diálogo silencioso entre palavra e imagem que é muito gratificante.
O segundo volume, dedicado a Bernardo Soares e aos fragmentos escritos entre 1929 e 1935, introduz um contraste visual evidente com o primeiro livro. Bernardo Majer imprime cores mais soturnas e uma representação do ambiente lisboeta que é complexa, mas também mais acessível para o leitor contemporâneo. O equilíbrio entre abstração e referência realista é notável, levando o leitor a conseguir perceber a cidade, o movimento das ruas e a solidão do heterónimo sem perder a intensidade poética do texto.
A divisão da obra entre dois ilustradores foi arriscada por haver o perigo de se perder alguma continuidade visual. No entanto, o próprio caráter desconexo da obra funciona como uma espécie de "cola" entre os dois estilos de ilustração. Susa Monteiro domina a parte mais introspectiva e etérea, enquanto Bernardo Majer traz densidade e textura urbana à fase mais tardia da obra, tornando a transição aceitável e até enriquecedora. A mistura de dois ilustradores acabou por, embora arriscada, funcionar bem.
O trabalho de ilustração de Susa Monteiro cumpre as expectativas que eu já tinha do seu estilo: contemplativo, poético e belo. Já Bernardo Majer surpreendeu-me de forma muito positiva. A forma como usa a cor, as sombras e o próprio desenho, transmite aquela sensação de inquietação e fragmentação interna do narrador. Confesso que, em termos de desenho, este pode ser o meu livro preferido do autor até agora. Gostei mesmo muito.
Em termos de edição, o trabalho da Levoir está em linha com os outros livros desta coleção. Cada livro tem capa dura baça, bom papel brilhante no miolo, e boa encadernação e impressão. No final de cada livro há um dossier de extras - maior no segundo volume - sobre a obra, o autor e o contexto social de ambos.
Em suma, estes dois livros constituem um acréscimo importante à coleção de Clássicos da Literatura Portuguesa em BD da Levoir. Mantêm a integridade da obra original, oferecem novas vias de interpretação e leitura, e combinam de modo eficiente o talento de dois belos estilos de ilustração diferentes. Quem se aventurar neste Livro do Desassossego encontrará não apenas uma obra literária, mas também uma experiência visual e sensorial única, tão complexa, abstrata e fascinante quanto a própria obra original de Fernando Pessoa.
NOTA FINAL (1/10):
8.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens dos álbuns. www.instagram.com/vinheta_2020
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Livro do Desassossego I
Autores: Pedro Vieira de Moura e Susa Monteiro
Baseado na obra original de: Fernando Pessoa
Editora: Levoir
Páginas: 58, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Outubro de 2025
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