Começo por falar deste O Fogo, de David Rubín, lançado há poucas semanas pela Ala dos Livros, mencionando outras (excelentes) obras da mesma editora, que muito têm sido comentadas: O Relatório de Brodeck e A Estrada, ambas de Manu Larcenet. "Mas o que é que essas duas obras têm que ver com este O Fogo?", perguntar-me-ão. Responderei: "Bem, diretamente, nada". No entanto, de forma mais indireta, encontrei um ponto de contacto interessante. Se houve coisa que verifiquei que os leitores portugueses sentiram enquanto liam esses dois livros de Larcenet, foi uma sensação de mau estar, de negatividade, de tristeza, de impacto negativo, não obstante a qualidade incontestável das obras. Ora, e finalmente fazendo a ponte entre as supramencionas obras de Larcenet e este O Fogo, de David Rubín, posso dizer-vos que, em termos de se conseguir ser um murro no estômago do leitor, quer O Relatório de Brodeck, quer A Estrada, parecem histórias dos Ursinhos Carinhosos comparados com este O Fogo.
Se houve livro que me fez passar mal, que me deixou deprimido, que me deixou quase enjoado e mal disposto, que me fez questionar os meus atos e os daqueles que me rodeiam, foi este O Fogo. Eis um livro que, mesmo sendo espetacular, representa uma obra a que não quererei voltar tão depressa.
É óbvio que, cada um de nós, sente as obras à sua maneira, não havendo um método que possa quantificar algo que não é quantificável. Até nós mesmos poderemos sentir uma obra de maneira diferente quando a lemos em alturas diferentes das nossas vidas. E, portanto, lá porque uma obra nos toca no âmago, não quer dizer que a mesma obra toque os demais da mesma forma. E notem que nem sequer está aqui em causa a qualidade da(s) obra(s). Já li livros fraquinhos que me disseram muito, pelas boas ou más razões, e já li livros fantásticos que, embora bons, não me conseguiram impactar emocionalmente.
Mas bem, foquemo-nos então em O Fogo, do autor espanhol David Rubín, de quem a Ala dos Livros até já tinha publicado Beowulf, obra que inaugurou o catálogo da editora portuguesa.
A premissa deste novo livro de Rubín até não parece ser a coisa mais original de sempre. Mas, lá está, a qualidade da obra não é bem no "quê", mas no "como". À semelhança do blockbuster Armageddon, com Bruce Willis, Ben Affleck e Liv Tyler, que marcou o cinema do final dos anos 90, também neste O Fogo, a história abre com a noção da humanidade de que um enorme asteroide se aproxima da Terra, numa trajetória de colisão, que destruirá tudo com esse embate. É o fim do mundo anunciado e insustentável que se aproxima num prazo de 5 anos, no exato momento em que o asteroide atingir a Terra.
Alexander Yorba, o protagonista, é um bem sucedido arquiteto de meia-idade, a quem é confiada a missão de desenhar, projetar e construir uma colónia lunar para que a humanidade - ou parte dela, pois esse "bilhete dourado" apenas será vendido aos mais ricos - possa sobreviver ao desastre inevitável. E é durante essa altura que Alexander recebe o diagnóstico médico de que tem um tumor cerebral que lhe ceifará a vida num curto espaço de tempo. O tempo exato que - qual coincidência! - demora a que o asteroide colida com o planeta Terra. Esta novidade fará com que Alexander abandone o seu projeto profissional com o intuito de se aproximar mais dos seus. Mas toda a sua vida de enorme sucesso profissional eclipsou a sua relação familiar, fazendo com que Alexander fosse um autêntico estranho para as pessoas que, supostamente, mais amava. A partir deste ponto da história, o protagonista ver-se-á na obrigatoriedade de confrontar-se a si mesmo, às suas escolhas (passadas e futuras)... enfim, à vida propriamente dita.
David Rubín constrói uma narrativa de uma força brutal, capaz de desestabilizar o leitor e mergulhá-lo num turbilhão de emoções. Desde as primeiras páginas, somos confrontados com um universo onde a efemeridade da vida adulta se impõe de forma esmagadora. Através de uma história carregada de simbolismo e metáforas visuais arrebatadoras, Rubín transforma o quotidiano numa experiência sensorial intensa, onde a existência se revela frágil e inconstante.
A obra apresenta-se como uma experiência visceral, em que cada página parece arder com uma energia incontrolável. A maneira como o autor trabalha a composição gráfica e a paleta cromática não só reforça a intensidade dramática da história, mas também convida o leitor a sentir, quase fisicamente, o peso das escolhas e das angústias das personagens. E a fantástica arte de Rubín, com o seu traço dinâmico e expressivo, é uma extensão direta da temática: a vida adulta como um incêndio que devora tudo à sua passagem.
O enredo, marcado por uma urgência inegável, conduz-nos por um caminho onde as relações humanas, o arrependimento e a inevitabilidade do tempo são explorados de forma impiedosa. O protagonista, espelho de tantos nós, vê-se preso numa espiral de memórias, decisões falhadas e esperanças frustradas. É impossível não tecer ligações com a contemporaneidade, onde o ritmo frenético da vida e as exigências do presente frequentemente nos afastam do que realmente importa. A contemporaneidade da narrativa não se limita, portanto, apenas aos seus temas, mas também à maneira como dialoga com a cultura atual. Num mundo onde a conexão digital e a velocidade da informação criam uma ilusão de permanência, Rubín recorda-nos que tudo é transitório. Essa reflexão adquire um peso ainda maior quando percebemos como a vida adulta muitas vezes nos afasta das nossas verdadeiras paixões e conexões humanas genuínas.
A efemeridade dessa vida adulta surge, pois, como um dos grandes temas da obra, e é abordada sem qualquer tentativa de suavização. Rubín expõe a dureza da passagem do tempo, a forma como os sonhos da juventude se diluem na realidade pragmática da idade adulta. É uma leitura que dói, pois obriga o leitor a confrontar-se com suas próprias inseguranças, arrependimentos e medos. Cada escolha que fazemos implica uma renúncia, e O Fogo torna essa verdade inescapável. O mais importante não é o meteorito e o fim do mundo que o mesmo acarreta, mas a necessidade de olharmos para nós mesmos, assumir os nossos erros, assumir as nossas escolhas. É de uma maturidade incrível a proposta que David Rubín nos oferece em bandeja dourada.
Se há algo de que me posso queixar - e é uma "queixa ínfima" - é a resolução que a personagem escolhe para (tentar) pôr fim ao meteorito. Não é que seja uma má escolha, mas creio que foi uma solução algo fácil e que o autor poderia ter explorado o enredo de uma outra forma. Embora, ainda assim, a ironia do final da história e de como comunicamos tão mal uns com os outros, mesmo nos tempos da era moderna - me tenha arrancado um sorriso... embora fosse um sorriso triste de desalento.
Outro elemento que torna esta obra tão impactante é a forma como a linguagem visual e narrativa se entrelaçam, criando uma experiência imersiva. O uso de metáforas visuais para representar estados emocionais e psicológicos confere uma profundidade singular à história. O fogo, enquanto símbolo, não se limita à destruição; ele também representa paixão, mudança e a necessidade de renascimento. No entanto, essa transformação nem sempre vem sem dor.
Há algo de profundamente desconfortável na leitura de O Fogo. Não porque seja uma obra difícil de compreender, mas porque nos obriga a encarar verdades que muitas vezes preferimos ignorar. A solidão, a frustração e a sensação de que o tempo escapa por entre os dedos são elementos que ressoam fortemente, tornando a leitura quase claustrofóbica. Rubín não oferece soluções fáceis nem finais reconfortantes; pelo contrário, obriga-nos a habitar esse desconforto.
No entanto, essa brutalidade emocional é precisamente o que torna a obra tão necessária. Em tempos onde o entretenimento muitas vezes opta por suavizar realidades duras, O Fogo lembra-nos que a arte também deve provocar, inquietar e fazer pensar. Não se trata de uma leitura para "escape", mas sim de uma experiência que nos obriga a refletir sobre a nossa própria existência. E essa é, sem dúvida, uma das grandes forças do livro.
Se repararem bem, já escrevi bastante sobre este O Fogo, mas mal falei dos desenhos de David Rubín. Tenho a dizer-vos que isso se deve ao facto da história me ter impactado tanto. A história foi tão forte que a componente visual acabou por me parecer acessória. Todavia, não posso deixar de referir que, também neste ponto, o autor espanhol nos oferece uma obra diferenciada e com momentos espetaculares, especialmente ao nível do modo como o autor divide os momentos da ação, com uma planificação inovadora e audaz. Apreciei também a componente futurista da obra, em termos de cenários, já que se trata de uma distopia ambientada num tempo futuro em relação ao que vivemos. As cenas de cariz mais sexual também são verdadeiramente fantásticas. David Rubín é portador de um estilo muito característico de desenho. Quem adora, continuará a adorar... e quem não aprecia, continuará sem apreciar. Pela minha parte, incomoda-me um pouco a disposição dos olhos que o autor coloca nas suas personagens... mas, tirando esse pormenor, aprecio muito os seus desenhos de traço forte e confiante.
Quanto à edição da Ala dos Livros, como não poderia deixar de ser, estamos perante um belo trabalho editorial. O livro apresenta capa dura baça e bom papel brilhante no interior. A impressão e a encadernação também são boas. No final, há um texto de Fernando de Felipe sobre a obra e um convite para uma compra de material digital sobre o livro, um making off, vendido pela editora espanhola Astiberri. Algo que estranhei, embora tenha apreciado.
Tendo em conta que este foi o primeiro lançamento da Ala dos Livros para 2025, diria que dificilmente a editora poderia ter começado o seu ano editorial com uma obra mais forte que esta.
Concluindo a minha análise, há que referir que, ao fechar o livro, fica a sensação de um incêndio que consumiu não apenas as páginas, mas também parte de nós. É impossível sair ileso desta leitura. Há um eco persistente das suas imagens e palavras, uma angústia que nos acompanha já depois de chegarmos à última página. Esta é uma dessas obras raras que, ao invés de simplesmente serem lidas, são sentidas na pele e na alma. Por tudo isso, O Fogo é um livro de uma potência rara. Não se trata apenas de uma história, mas de uma experiência emocional e estética que desafia o leitor a confrontar-se com a própria efemeridade da existência. Com uma força bruta e uma honestidade cortante, David Rubín oferece-nos uma obra que nos faz sentir mal – e que, justamente por isso, se torna inesquecível.
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Fogo
Autor: David Rubín
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 220 x 310 mm
Lançamento: Março de 2025
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