quarta-feira, 9 de julho de 2025

Análise: 1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne

Estava particularmente entusiasmado em ler este segundo volume do díptico 1629, dos autores Xavier Dorison e Thimothée Montaigne, que foi recentemente editado em Portugal pela Arte de Autor, por uma razão muito simples: é que adorei o primeiro volume deste épico marítimo!

Embora a minha expetativa estivesse alta e, tenho boas notícias para vos dar: este segundo volume, intitulado A Ilha Vermelha, em nada fica atrás do primeiro volume da obra. Na verdade, até é capaz de superar o primeiro tomo, pois consegue aprofundar ainda mais a tragédia e a tensão psicológica instauradas no primeiro volume. Se o início da história tinha como palco principal o navio Jakarta, baseada em factos reais, este novo volume muda radicalmente de cenário ao acompanhar os sobreviventes do naufrágio numa ilha remota no Pacífico, onde se desenrola uma luta pela sobrevivência que rapidamente se transforma numa guerra moral e espiritual. A narrativa concentra-se na degradação da ordem e na ascensão da tirania, com o personagem Jéronimus Cornélius a revelar-se um verdadeiro mestre da manipulação e do terror psicológico. A bela e perspicaz Lucrécia Hans ou o destemido Hayes até podem ser personagens impactantes, mas é Cornélius, com toda a sua grotesca maldade e maquinações, que é a grande estrela da obra.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Já o tinha dito na análise que fiz ao primeiro volume e volto a afirmá-lo: "Dorison tem o mérito de nos oferecer um daqueles vilões que, pela sua personalidade e crueldade, facilmente causa impacto no leitor. Aliás, esta capacidade do argumentista para esculpir excelentes vilões não é, de todo, uma novidade, se tivermos em conta que o autor também deu vida aos cruéis vilões de Long John Silver, O Castelo dos Animais, Undertaker ou O Terceiro Testamento."

Como tal, a história ganha um tom ainda mais sombrio e intenso, explorando os limites da condição humana quando privada de civilização. O ambiente fechado e isolado da ilha serve como uma metáfora poderosa para os conflitos internos e sociais que se instalam. Cornélius, cada vez mais maquiavélico e carismático, constrói uma teia de supostas alianças, mas carregada de medos e traições, entre os náufragos, gerando uma atmosfera sufocante. As tensões pessoais vão sendo exploradas de forma brilhante pelo argumentista Dorison, criando nesta ilha um microcosmo de desonestidade e maldade, que prende o leitor, levando-o a não conseguir desligar-se desta luta pela instauração de um poder que nos remete, inevitavelmente, para obras como O Deus das Moscas, de William Golding, adaptada recentemente para banda desenhada por Aimée de Jongh, onde a ausência de regras rapidamente dá lugar ao caos.

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Há também paralelos interessantes com a série televisiva Lost, não só pela presença de náufragos numa ilha inóspita, mas sobretudo pela forma como o passado das personagens influencia o presente e como os grupos se fragmentam em torno de medos e segredos. Tal como em Lost, há um jogo psicológico em curso, um líder carismático, alianças frágeis, um mistério latente e uma sensação constante de que algo pior está sempre prestes a acontecer. Essa tensão narrativa, construída com grande eficácia por Dorison, mantém o leitor num estado de alerta permanente.

Visualmente, o trabalho de Thimothée Montaigne é de uma beleza impressionante! Os desenhos são detalhados e expressivos, com personagens de forte presença visual, marcadas tanto fisicamente como emocionalmente pelo sofrimento que atravessam. As paisagens da ilha, por sua vez, são absolutamente deslumbrantes, alternando entre o paraíso natural de cortar a respiração e o inferno psicológico e brutal em que as personagens se veem forçadas a mergulhar. As cores, ricas e bem equilibradas, aplicadas por Clara Tessier, reforçam essa dualidade, ajudando a criar contrastes visuais fortes entre momentos de aparente calma e explosões de violência.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Já agora, também a planificação das pranchas merece destaque: é dinâmica, fluida e nunca repetitiva, o que (também) contribui para a imersão do leitor na história. Cada página é cuidadosamente composta para servir o ritmo da narrativa, ora mais contemplativo, ora frenético, e Montaigne demonstra um controlo excecional sobre o espaço e o movimento das personagens. 

O que me deixou muito feliz com este álbum, é que mesmo que a narrativa já não tenha o navio Jakarta para explorar - pois quando este segundo livro arranca, o Jakarta já naufragou - o álbum consegue viver muito bem por si mesmo, continuando a demanda das personagens, sendo, pelo menos em termos de intensidade dramática, profundidade psicológica e complexidade narrativa, superior ao primeiro. É verdade que o primeiro volume serve como uma introdução sólida ao contexto histórico, às personagens principais e à tensão latente a bordo do Jakarta, mas é no segundo tomo que a história realmente ganha fôlego e densidade, com o foco do enredo a mudar do perigo externo do mar e do naufrágio para o perigo interno, ou seja, para a degradação moral dos náufragos e para a ascensão da figura tirânica de Cornélius.

1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor
Falando ainda da edição deste livro, devo dizer-vos que a mesma é belíssima. A capa não só é verdadeiramente linda, com um aspeto que nos remete para outro tempo e outro lugar, como é detentora de acabamentos nobres que são um deleite para os olhos. A capa dura apresenta uma textura suave ao toque e numerosos detalhes a dourado. É dos livros com a capa mais bonita e apelativa da minha vasta coleção, asseguro-vos! O livro apresenta papel brilhante de primeira qualidade e boa impressão e encadernação. 

Teria sido simpático se  tivesse algum caderno de conteúdo extra, com esboços de Montaigne, por exemplo, mas creio que isso também não acontece na edição original da obra. Ainda assim, é uma bela e cuidada edição.

Finalizando, é justo afirmar que, no conjunto, ambos os tomos de 1629 nos revelam uma obra que é muito mais do que uma recriação histórica e que consegue oferecer-nos uma poderosa reflexão sobre o poder, a moralidade e os instintos mais profundos e irascíveis do ser humano quando empurrado para os seus limites. A dupla formada pelos autores Dorison e Montaigne demonstra um domínio notável da linguagem da banda desenhada, presenteando-nos com uma obra que é visualmente arrebatadora e narrativamente inquietante! A não perder!


NOTA FINAL (1/10):
9.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha, de Xavier Dorison e Thimothée Montaigne - Arte de Autor

Ficha técnica
1629 - …ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta - 2 - A Ilha Vermelha
Autores: Xavier Dorison e Thimothée Montaigne
Editora: Arte de Autor
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Abril de 2025

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