Num ano em que o lançamento de banda desenhada de qualidade por parte da ASA se parece aproximar dos melhores anos da editora, com a edição de belas obras como As 5 Terras, de Lewelyn e Lereculey; Senhor Apothéoz, de Julien Frey e David; Tananarive, de Mark Eacersall e Sylvain Vallée; Quentin por Tarantino, de Amazing Améziane; Spirou - A Esperança Nunca Morre... - Quarta Parte, de Émile Bravo; As Águias de Roma - Livro VI, de Enrico Marini; Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf; Airborne 44 - #9 - Black Boys, de Philippe Jarbinet; entre outras boas opções, a aposta na obra da autora holandesa Aimée de Jongh é (mais) um dos bons tiros certeiros da editora este ano. Primeiro, a ASA editou o magnífico Dias de Areia e, agora, há poucos dias, a editora portuguesa fez chegar às livrarias o mais recente álbum de Aimée de Jongh, que dá pelo nome de O Deus das Moscas.
Trata-se, pois, de uma adaptação para banda desenhada do aclamado e célebre romance original homónimo de William Golding. A obra original foi publicada em 1954 e, desde então, tornou-se um clássico obrigatório da literatura mundial. A sua adaptação ao cinema também teve uma forte ressonância - pelo menos na minha geração. É uma história que quase toda a gente conhece.
A premissa narrativa é esta: um avião despenha-se numa ilha deserta e os únicos sobreviventes são um grupo de crianças. Todas elas rapazes. Ao início, a reação das crianças a esta situação até é positiva, pois sentem-se livres para brincar, festejar e fazer aquilo que lhes apetece, sem que haja um adulto a traçar-lhes regras e limites. E mesmo na primeira fase de sobrevivência, em que, juntos, os rapazes começam a cooperar na obtenção de alimentos, na construção de abrigos e no controlo do fogo... corre muito bem.
Todavia, assim que o tempo vai passando, essa alegria inicial esmorece e dá lugar a uma certa desorganização que, eventualmente, culmina em anarquia, por um lado, e na criação de forças antagónicas, por outro. Afinal de contas, é da natureza humana a instituição das posições de "líder" e de "liderado". Simplesmente, nem sempre os liderados querem determinado líder nem, tampouco, certos líderes procuram satisfazer os desejos dos seus liderados. Eventualmente, surge então o desacordo, o conflito e a guerra. E até a tentativa de, através de uma entidade maior e imaterial - um deus - exercer influência e controlo sobre os outros, é algo que a obra sabe explorar.
Além disso, O Deus das Moscas também aborda a dualidade da natureza humana, a luta entre a civilização e a barbárie, e as consequências da ausência de estruturas sociais. Através da trajetória dos jovens náufragos, a história revela como o instinto de sobrevivência pode desencadear comportamentos primitivos e como a pressão social e o medo podem transformar indivíduos comuns em figuras autoritárias ou em vítimas de opressão.
O trabalho de Aimée de Jongh reinterpreta de forma bastante fiel a obra clássica, continuando a explorar os temas da natureza humana, da sociedade e da perda da inocência. Com efeito, através de toda a beleza do trabalho ilustrativo da autora e de todo o detalhe e cadência de relato, assente no tempo pausado de narrativa que Jongh imprimiu à sua adaptação, este é um livro que convida - ou incrementa até - à componente de reflexão da obra original. Não esqueçamos que não é todos os dias que uma adaptação para banda desenhada de um romance da literatura consegue ter um maior número de páginas do que o romance original em que se baseia. Mas é o que acontece neste caso.
Os desenhos são verdadeiramente maravilhosos. Se em Dias de Areia a autora foi exímia na conceção de paisagens tão áridas e empoeiradas, neste O Deus das Moscas a autora é igualmente fantástica na reprodução de uma ilha onde a vegetação é luxuriantemente verdejante e onde o mar que a rodeia é de tons azuis cristalinos. Um verdadeiro deleite para os olhos! Embora também nós estejamos perdidos nesta bela ilha - e apesar de toda a violência que nela experienciamos, bem como o elevado número de páginas do livro - não nos apetece chegar ao fim da leitura. Apetece, isso sim, continuar na ilha, tal não é a sua vibrante beleza.
O desenho das personagens mantém-se fiel àquilo que a autora já nos mostrou noutros trabalhos. Com um estilo muito europeu - daquele a que gosto de chamar "a nova escola Spirou" - a autora oferece-nos personagens com uma expressividade desarmante que, devido a isso mesmo, nos tocam o coração nos momentos mais tensos e melancólicos da trama.
É verdade que algumas das personagens apresentam, por ventura, demasiadas parecenças nas feições, podendo ser confundidas entre si, embora, ainda assim, e com a autora certamente ciente disto, as personagens mais importantes da narrativa se distingam bem, devido às diferentes cores dos seus cabelos: Ralph é louro, Merridew é ruivo e Simon tem o cabelo preto. E depois ainda temos Piggy mas este, por ser gordinho e envergar óculos, é o mais facilmente reconhecível. As outras personagens talvez pudessem ter sido mais diferenciadas pela autora, concedo. Mesmo assim, não é algo que, quanto a mim, afete muito negativamente a boa compreensão da história.
De resto, é espetacular a forma como a autora consegue transpor para a banda desenhada esta história, deixando transparecer para a leitura todos os conflitos internos e as rivalidades das personagens. E não o faz meramente por via do texto, mas também através da expressão artística visual que realça as emoções e a tensão latente da narrativa.
A obra também é visualmente muito bonita por haver um bom contraste gráfico entre os momentos de violência e as imagens de beleza natural, intensificando desta forma o impacto emocional da experiência. Quando falarmos em boas adaptações de clássicos da literatura para banda desenhada, este O Deus das Moscas deverá passar a figurar nessa lista dos melhores exemplos!
O trabalho de edição que a ASA faz deste livro também é digno de nota. O livro apresenta capa dura baça e bom papel brilhante no miolo. A impressão e encadernação também são excelentes. No final, ainda há um texto conclusivo da autora e 6 páginas com esboços e desenvolvimentos de cena. Estamos perante uma edição de luxo, portanto. E mesmo que Dias de Areia tenha uma boa edição, a deste O Deus das Moscas consegue ser melhor - embora eu lamente que os dois livros não tenham recebido uma edição mais coerente entre si, tendo em conta que são da mesma autora e da mesma editora.
Concluindo, O Deus das Moscas, de Aimée de Jongh, é uma adaptação poderosa que não só honra o texto original de Golding, como também consegue expandi-lo através de uma nova lente. A combinação desta rica narrativa com ilustrações deslumbrantes torna-a uma obra notável e vibrante. Mais uma que se coloca no restrito rol de melhores bandas desenhadas lançadas em 2024! Altamente recomendável, portanto!
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Deus das Moscas
Autora: Aimée de Jongh
Adaptado a partir da obra original de: William Golding
Editora: ASA
Páginas: 352
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 206 mm
Lançamento: Setembro de 2024
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