sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Análise: Sambre #7 e #8


Sambre #7 e #8 - Flor da calçada | Aquela que os meus olhos não vêem…, de Yslaire

Ao longo de uma vida a ler milhares de livros de banda desenhada - e mesmo sendo um claro amante das histórias aos quadradinhos, que muitos até consideram demasiado "benevolente" nas suas análises e opiniões - é natural que não se torne tão fácil assim que uma série entre para aquele conjunto fechado de obras que mudam a minha vida. Dito por outras palavras, há a BD muito boa, sim, mas que, apesar disso, não chega ao ponto de me tocar tão intensamente assim e, depois, há aquela BD mais rara, mais singular, mais única, que me toca cá no fundo, que me deixa viajar para longe, que me faz sonhar. Sambre é uma dessas séries.

Sendo visualmente linda, da primeira à última vinheta, esta também é uma série onde o belo e o putrefacto, o amor e o ódio, a riqueza e a pobreza, andam sempre de mãos dadas numa história trágica, num romance a la Shakespeare e numa história grandiosa que é difícil olvidar.

Portanto, em boa hora, a editora Arte de Autor começou a publicar esta série que, como tantas outras, tinha sido deixada ao abandono aquando da sua primeira edição portuguesa. Na altura, apenas os primeiros tomos da série foram lançados pelas editoras Baleia Azul e Witloof. Bem, para ser mais exato, o primeiro ciclo da série ficou fechado, sim, mas dado que a história continua as aventuras e desventuras da família Sambre, era uma pena que tivesse sido deixada a meio. A Arte de Autor voltou, então, a publicar os quatro primeiros álbuns, enquanto publicou os inéditos, em Portugal, volumes 5, 6, 7 e 8. Havia dúvidas sobre a possibilidade da série terminar no 9º ou 10º tomo, com vários sites a apresentarem informações díspares quanto a isso, mas - e com base numa entrevista que o próprio autor Yslaire deu há uns meses - posso confirmar-vos que Sambre está pensada para terminar em 2026 - ano em que a série comemora 40(!) anos - num álbum duplo que terá cerca de 180 páginas. Mal posso esperar por esse dia! O mau é que a espera ainda vai ser algo longa!...

Mas concentremo-nos, por agora, no mais recente álbum duplo, que reúne Flor da Calçada e Aquela que os meus olhos não vêem…, respetivamente os tomos 7 e 8 da série.

Neste volume, a narrativa continua a explorar a história dos protagonistas, principalmente a relação tumultuosa entre as várias personagens principais, dando-nos três subnarrativas aparentemente diferenciadas e paralelas: a vida trágica e pobre, a fazer lembrar Oliver Twist, de Judith; a vida cativa e exilada (e controlada pela sua tia) de Bernard-Marie; e a existência de Julie que, arredada de tudo e todos, procura uma nova forma de vida. A carga dramática mantém a sua característica intensidade, com cada uma das personagens a revelar um grande número de conflitos internos.

A cadência narrativa impressa por Yslaire continua a ser lenta, mas com a história da jovem rebelde Judith, que é pródiga em acontecimentos marcantes, o autor consegue que o leitor nunca se sinta entediado ou deixe de querer estar mergulhado na leitura da obra. Essa é, aliás, uma característica da série Sambre e, diria mesmo, de todas as boas histórias. Assim que mergulhamos na leitura de um dos livros da série, o tempo e o espaço onde estamos parece parar, enquanto somos transportados até à Paris do século XIX e à história desta malograda família.

Também o lado sombrio da narrativa, com claros laivos góticos, se mantém bem presente. Se calhar, até de forma mais intensa do que nos anteriores álbuns. A escrita também se nos revela rica e complexa, com o autor a explorar os temas emotivos e profundos da paixão, da força do destino e das relações familiares.

E nada aqui é "leve". Pelo contrário, o amor em Sambre é "pesado" e amplamente marcado por sofrimento e sacrifício, tornando-se uma contante e um fado do qual nenhuma das personagens parece conseguir fugir. E mesmo estando geograficamente distantes, fica latente que o encontro entre Judith e Bernard-Marie se torna inevitável. Mas, quanto a isso, a ver vamos.

Quanto às ilustrações, devo dizer que, por incrível que possa parecer, Sambre parece continuar sempre a melhorar de livro para livro! Por um lado, compreende-se que, pela passagem de tantos anos entre os vários volumes da série, o autor tenha evoluído o seu traço. Por outro lado, também é comum em várias séries de banda desenhada que, com a passagem dos anos, haja, por parte do(s) seu(s) autor(es) um certo descuido visual, potenciado pelas vendas "certas" e "garantidas" de determinadas séries. Felizmente, este último cenário não é o que acontece em Sambre. Se formos olhar para os volumes 1 e 8 da série, veremos que o autor soube manter harmonia e congruência com a arte do primeiro volume, mas, ainda assim, evoluiu muito os cenários, as expressões das personagens, as cores, os efeitos visuais, a exploração da luz e das sombras, e tudo e mais alguma coisa. Já era muito bom no primeiro volume, mas é um verdadeiro tratado neste último livro. Com o seu belo traço em tons a sépia onde os vermelhos assumem protagonismo, há aqui várias vinhetas que poderiam ser pinturas expostas num museu, tal não é a sua beleza e tratamento técnico. Sinceramente, é um trabalho do melhor que há.

Avançando para a edição da Arte de Autor, também estamos perante um belíssimo trabalho. O livro enverga capa dura, com textura aveludada, bom papel brilhante no miolo e boa impressão e encadernação. A última página reserva alguns esboços de Yslaire. Tudo bem feito, portanto. Não costumo opinar sobre traduções mas, no caso concreto, não consigo deixar de dizer que a opção pela palavra "tiinha" para a tradução do termo francês "tatie" não me parece muito feliz e até me incomodou um bocado na leitura, já que a palavra aparece inúmeras vezes. Pode ser ignorância minha, reconheço, mas em 40 anos de vida nunca ouvi a palavra "tiinha" como diminuitivo de tia. Penso, portanto, que "tiazinha" - ou mesmo "ti", "titi" ou "titia" - seriam melhores opções que "tiinha". Ou mesmo a tradução para a palavra portuguesa sem diminuitivo, simplesmente "tia", teria funcionado melhor. Peço desculpa pelo preciosismo, mas é algo que me incomodou mais do que aquilo que eu gostaria. 

Mas deixando os pormenores e centrando-me no mais global e determinante, importa reforçar que estes dois novos capítulos de Sambre, com todo o seu dramatismo romântico, as suas palavras poéticas que ecoam no leitor, as suas personagens emocionalmente atordoadas e os seus desenhos verdadeiramente impressionantes - que deveriam ser considerados património cultural pela UNESCO - mantêm viva a certeza de que esta é uma das séries de banda desenhada da minha vida. Soberba, mandatória e digna de nota máxima!


NOTA FINAL (1/10):
10.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Ficha técnica
Sambre #7 e #8 - Flor da calçada | Aquela que os meus olhos não vêem…
Autor: Yslaire
Editora: Arte de Autor
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Agosto de 2024


2 comentários:

  1. Enquanto tradutor e revisor, percebo bem o incómodo no que toca à questão da tradução do termo. Acontece-me o mesmo e é-me difícil abstrair-me e pôr de parte o modo tradutor/revisor quando leio BD traduzida. E já li BD traduzida em Portugal com erros e inconsistências que não lembram a ninguém. Coisas feitas em cima do joelho, à pressa, sem brio. Por força da profissão, tenho um olho clínico para todo o tipo de erros e "estranhezas" linguísticas/gramaticais, o que acaba por estragar a experiência de leitura, razão pela qual prefiro sempre ler a versão original, se possível. Com filmes e séries é igual, não consigo ver com legendas em português, só em inglês, senão não me concentro.

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    1. Caro MS. agradeço o comentário. Percebo e respeito o que diz, mas por acaso até tenho um olhar algo diferente. Eu cá até prefiro ler em português, a minha língua materna. Mas, claro, quero ler uma boa tradução, claro. E atenção que no caso deste Sambre nem posso dizer que a tradução não seja boa em relação ao restante texto. Seria injusto da minha parte dizê-lo. Porém, o termo "tiinha" fez-me muita confusão. Por isso, falei nele. Não é algo que considere "gravíssimo", mas incomodou um pouco a fluidez da minha leitura, admito.

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