Tenho tanto para escrever sobre O Meu Irmão, uma das mais recentes obras publicadas pela editora Ala dos Livros - obra que se assume, facilmente, como um dos grandes livros de banda desenhada de 2025 - que este artigo terá que ser, forçosamente, um artigo diferente de todos os outros que faço aqui no Vinheta 2020.
Bem, se querem uma análise à obra, podem encontrá-la aqui, pois já analisei o livro, por altura do seu lançamento oficial em França, pela editora Casterman. Depois de reler a obra na sua edição portuguesa, dei por mim a reler também o texto que escrevi aqui previamente para o blog.
Nessa altura, também não pude, obviamente, ficar indiferente a tão fantástica obra, deixando até o seguinte apelo "quanto tempo passará até que uma editora portuguesa aposte neste livro maravilhoso?" e concluí afirmando que "esta obra traz consigo uma das leituras mais comoventes e emocionantes que fiz nos últimos anos e que, indubitavelmente, merece ser publicada por cá. (...) é um livro demasiado bom para que a aposta não seja feita. Formidável!"
Dessa altura para cá, mantenho a opinião de que estamos perante um livro obrigatório, que todos deveriam ler, que nos toca no âmago do nosso ser e que é exemplo claro do quão profunda, bela e enriquecedora pode ser uma obra de banda desenhada. Portanto, talvez nada tenha mudado sobre a minha perceção sobre a obra.
Ou talvez tenha mudado algo. Mas para melhor.
O que me leva a outra questão que quero aqui abordar: o tema da tradução, da obra traduzida. Há uma corrente de pensamento que refere que quando lemos uma obra na língua original em que esta foi feita, estamos a saboreá-la, a degustá-la e a conhecê-la "como deve ser". Da forma mais correta. Concordo e discordo com esta afirmação. Concordo porque, de facto, é verdade que não há um intermediário - na pessoa de um tradutor - que possa alterar/adulterar a obra, desvirtuando-a. É, pois, o estado mais puro de mergulharmos na obra. Certo. Por outro lado, discordo no sentido em que uma boa tradução - como é o caso daquilo que acontece neste O Meu Irmão - permite-nos um mergulho menos condicionado pela questão linguística da obra.
Explico.
A maioria das pessoas - excetuando da equação, e desde já, todos aqueles que têm "fluência total" de mais do que uma língua, - tem uma língua materna, uma língua em que pensa e sonha, que lhe é inata. E mesmo que essas pessoas saibam outras línguas por as terem praticado ou aprendido em contexto letivo, profissional ou lúdico, conhecem e dominam melhor, ainda assim, a língua materna. Ora, quando lemos noutra língua que não a nossa língua materna, estamos sempre a associar os vocábulos de uma língua para a outra, fazendo a transição mental entre uma e outra língua. É claro que quanto mais praticarmos ou conhecermos a língua estrangeira, mais natural e fluído será este processo. Mesmo assim, é um processo que existe sempre.
Ora, os meus conhecimentos da língua francesa são bastante limitados. Diria que compreendo uma grande percentagem - quase tudo - daquilo que leio em francês, mas não serei tão bom a decifrar a língua na oralidade e, muito menos, a exprimir-me em francês. E refiro isto porque, no caso em questão, compreendi toda a obra Le Petit Frère em francês, claro, até porque o texto nem é particularmente difícil ou técnico. No entanto, depois de ler a obra em português, não tenho dúvidas de que pude mergulhar melhor na mesma. Como não tive necessidade de fazer a tal transição entre vocábulos de uma língua estrangeira para a minha língua materna, pude mergulhar de forma mais natural, mais fluída e mais genuína na leitura.
E por que razão falo desta questão da tradução neste artigo dedicado a O Meu Irmão? Bem, por um lado, para referir que, de facto, é muito importante que haja em Portugal obras traduzidas para a nossa língua mãe, por muito fluentes que sejamos - ou que achemos que somos - em línguas estrangeiras. Até porque isso permite que a obra possa chegar a mais gente, o que é benéfico para o próprio setor.
Por outro lado, ler a obra em português permitiu-me gostar ainda mais dela. Na análise que fiz à obra, que considerei praticamente perfeita, com uma nota de 9.8 em 10.0, considerei que o único ponto menos positivo da mesma era que, de alguma forma, a história da morte, velório e outros trâmites associados aos mesmos fossem contados em demasiadas páginas. Na altura, escrevi: "Se há algo que posso criticar de forma menos positiva é que, enquanto lia a obra, fiquei com a ideia que a mesma poderia ser contada em 200 páginas, em vez de 344 páginas. Com efeito, até me pareceu que Jean-Louis Tripp estava a “puxar a barra” dramática em demasia." Ora, hoje em dia, e depois de lida a obra em português, e embora concorde com todo o resto que escrevi, discordo deste ponto em concreto do livro ter demasiadas páginas. Foi por ler em português que consegui mergulhar mais densamente na história e, atualmente, acho que, sim, todas aquelas 344 páginas eram necessárias.
É um livro fantástico, que nos toca no fundo e que pode mudar uma vida. A minha, mudou, sem dúvida. Perder um ente querido completamente saudável num acidente de viação obriga a família a um inesperado e doloroso luto que deixa marcas ao longo de toda a vida. E, infelizmente, as mortes em acidentes de viação são algo que se mantém presente nos nossos dias, fazendo com que este tipo de histórias se tornem em algo universal e presente. Ainda hoje, no dia em que vos escrevo, foi tornada pública a morte dos futebolistas Diogo Jota e André Silva num acidente de viação, o que faz com que a reflexão que O Meu Irmão nos traz, ressoe ainda mais.
Sim, considero O Meu Irmão, um livro:
NOTA 10.0 em 10.0.
Para isso, também contribui a fabulosa edição da Ala dos Livros!
Há que o dizer: há algumas editoras em Portugal - e, sem desprimor para as demais, a Ala dos Livros consegue ser o melhor exemplo disto - que fazem melhores edições para Portugal do que as edições originais francesas.
A edição de O Meu Irmão supera, a todos os níveis, a edição original da editora Casterman.
E é por isso que este artigo também é um comparativo.
Como se não bastasse o cuidado com que as edições da Ala dos Livros são feitas, para este livro em específico ainda se juntou o nome de Mário Freitas que com todo o seu perfeccionismo e conhecimento, contribuiu para que a legendagem, grafismo e design de capa fossem muito bem trabalhados.
Comecemos então por isso, pela capa.
A edição portuguesa da obra apresenta uma capa diferente da capa original. Pessoalmente, prefiro a opção portuguesa que é mais equilibrada em termos visuais, permitindo que o título não seja apresentado em letras tão garrafais como na edição original da obra, embora seja, ainda assim, bastante legível e chamativo.
A própria colocação da imagem das duas mãos que se separam é uma visão constante ao longo da obra e, portanto, coaduna-se muito bem.
Ao contrário da edição da Casterman, que apresenta capa mole com badanas, a edição portuguesa do livro oferece capa dura baça, com um material muito suave ao toque e ainda com detalhes a verniz.
A lombada é em tecido e o livro ainda apresenta uma elegante fita marcadora. Uma edição de luxo e de colecionador, sem dúvida.
Outro detalhe deve ainda ser referido sobre a lombada do livro. O simples facto da obra ser bastante densa faz com que o livro seja espesso. Eu tenho sempre um grande cuidado no manuseamento dos livros e, ainda assim, como podem ver na imagem acima, a lombada do meu livro francês ficou com bastantes fissuras.
Ora, na edição em capa dura isso não vai certamente acontecer. E a opção por uma lombada arredondada em detrimento de uma lombada plana, também dá mais consistência ao livro.
Em termos de papel utilizado, ambos os livros são bastante bons. O papel é baço, de boa textura e qualidade, o que encaixa bem no tipo de ilustração do autor e no próprio teor da obra.
Mesmo assim, a edição portuguesa acaba por beneficiar a obra ao permitir que o formato, que é superior, possibilite uma maior mancha de impressão e consequentes vinhetas de maior dimensão.
A leitura sai beneficiada, portanto.
O tipo de letra utilizado, não sendo exatamente o mesmo do da obra original, é-lhe muito fiel, e tem a dimensão e colocação perfeitas. Nada a objetar também, portanto.
Ora, feitas as comparações mais diretas entre os dois livros, falta ainda mencionar que a edição portuguesa traz oito páginas adicionais de conteúdo extra, nomeadamente, uma página com a ilustração e arranjo gráfico da capa da edição original; outra com uma biografia de JeanLouis Tripp; e um belo texto, em estilo de reportagem sobre a feitura do livro, que se espraia por seis páginas.
Este texto é útil para aprofundar o tema contido na obra e, ao mesmo tempo, é acompanhado de alguns belos desenhos retirados da história, que o tornam muito apelativo. É um complemento simples, mas bem-vindo e que, mais uma vez, ajuda a que a edição portuguesa supere a edição francesa da obra.
Em suma, reitero que este O Meu Irmão é um dos livros do ano, uma obra obrigatória a conhecer, que nos amargura por dentro, que nos faz sentir raiva e que persiste na nossa memória ao longo de uma vida. Como se já não fosse maravilhoso que esta obra fosse publicada em Portugal, a Ala dos Livros ainda teve o mérito de apostar numa edição de luxo, onde tudo é pensado ao pormenor, superando em todos os quadrantes a edição original da francesa Casterman.
Se este livro ainda não foi comprado por aquele que me lê neste texto, o meu conselho é simples e taxativo: faça um favor a si mesmo e acrescente este livro à sua estante.
Concordo inteiramente que é de leitura obrigatória. Relativamente à edição da Ala dos Livros é realmente sumptuosa e faz justiça à obra.
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