quinta-feira, 24 de julho de 2025

Análise: Vertigeo

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa
Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry

Se há coisas que, nos muitos comentários que recebo, sinto que os leitores portugueses de banda desenhada pedem, é que se editem mais BDs de ficção científica. E a verdade é que, apesar disso, não são muitas as obras deste género que vão chegando às livrarias portuguesas. Especialmente nos últimos anos.

Todavia, e por ventura em sentido contrário à tendência dos últimos tempos, a editora ASA lançou recentemente o livro Vertigeo, da autoria dos franceses Amaury Bündgen e Lloyd Chéry, que adaptaram para banda desenhada o romance original de Emmanuel Delporte.

Vertigeo apresenta-se como uma distopia apocalítica em estado puro. Clássica na sua génese, a narrativa parte de um cataclismo global que apaga o sol e extingue a maior parte da vida no planeta, obrigando os últimos sobreviventes a construir uma colossal torre, a Vertigeo, como último reduto de sobrevivência. Esta torre vertical é, desde logo, símbolo e palco da nova ordem social que se estabelece, que é baseada na produtividade, na exploração e na estratificação acérrima entre os que trabalham e os que mandam.

É essa estrutura social da torre Vertigeo que considerei um dos aspetos mais interessantes na obra. Com uma hierarquia rígida, os trabalhadores vivem em níveis inferiores da torre, sempre tentando fazê-la crescer, não sabendo bem para onde. Há um constante objetivo de crescimento propagandístico que é passado entre os habitantes/trabalhadores da torre. Mas onde estarão os ricos, os abastados, os beneficiados pelo sistema? Nos andares cimeiros da torre? Não haverá ricos, de todo, ou não estão visíveis face aos trabalhadores? Estamos perante uma representação hiperbolizada - mas não totalmente irreal - das desigualdades do mundo contemporâneo, que nos oferece uma crítica à alienação e à exploração laboral. A metáfora é clara: o trabalho tornou-se uma condenação, com cada um a ser escravo do mesmo, tenha ou não noção disso mesmo. O que faz ecoar Working Class Hero, de John Lennon.

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa
Apesar da densidade temática e do potencial desta premissa, Vertigeo sofre com uma execução narrativa que fica, quanto a mim, aquém do desejado. As ideias são interessantes, mas a abordagem acaba por ser superficial. A obra lança várias pistas, levanta dilemas importantes, mas raramente os desenvolve em profundidade. Há personagens que surgem e desaparecem com pouca justificação e alguns dos momentos que pareciam ser pontos de viragem interessantes, acabam por ser abafados por um desenvolvimento apressado. Encontramos, pois, várias pontas soltas que comprometem a coesão da história, como as ligações afetivas entre personagens ou as motivações de determinados atos de rebelião a não serem suficientemente exploradas. Isso dá ao enredo uma sensação de esboço vazio e de que estamos perante uma história que tinha matéria-prima para muito mais, mas que foi encerrada antes de atingir a sua maturidade.

É um daqueles casos em que um maior número de páginas - ou de volumes - poderia ter surtido um melhor efeito. Ou então, poderia ter sido feito exatamente o contrário: para esta história, assim como ela está, pouco desenvolvida e que só lança para o ar uma ideia interessante, bastariam menos páginas. A sensação é dual: por um lado, o livro é demasiado grande para uma história que assenta numa premissa que, embora interessante, é vaga; e, por outro lado, é demasiado pequena para uma história que até teria um fundo para ser melhor explorado. Nem sempre a virtude está no meio das coisas.

E, já agora, a introdução de monstros, semelhantes a dinossauros, lá mais para o meio da narrativa, é um exemplo de como a construção do universo nem sempre se alinha com a verosimilhança pretendida(?) da narrativa. E quem me lê já sabe bem da minha opinião assertiva sobre obras de ficção científica: só me conseguem realmente agradar e prender, quando conseguem ser coerentes e minimamente verosímeis. Ora, a presença dessas criaturas não é contextualizada de forma eficaz, e acaba por parecer deslocada num cenário que se quer pautado pela crítica social e pelo realismo distorcido da distopia. Ao invés de enriquecer o mundo, este elemento tende a distrair e a esbater, ainda mais, o foco temático da obra.

Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa
Ainda assim, o final de Vertigeo oferece uma lufada de ar fresco. Sem fazer nenhum spoiler, posso dizer-vos que o desfecho introduz um elemento de reviravolta que relança o sentido da história. Embora não redima completamente as falhas anteriores, esse momento final consegue revalorizar parte do caminho percorrido até então. 

Visualmente, Vertigeo é uma experiência impactante. O desenho do autor Amaury Bündgen remeteu-me, com as devidas distâncias, para a arte de François Schuiten na sua obra As Cidades Obscuras. 

Sobretudo nas primeiras páginas da obra, apresenta um realismo quase fotográfico, com um uso dominante do preto e branco que reforça o sentimento de opressão e desespero. As primeiras pranchas que retratam a destruição do mundo são particularmente arrepiantes, e o trabalho de sombras dá uma densidade atmosférica que dialoga bem com o tom da narrativa. Lá mais para o final do livro, também temos direito a algumas páginas a cores, em linha com o desenvolvimento da história.

Não obstante, à medida que a leitura avança, sente-se, porém, uma quebra no nível de detalhe das ilustrações. Embora nunca se torne medíocre, o traço torna-se menos minucioso e por vezes mais apressado, especialmente no tratamento de algumas personagens, seja na conceção dos seus rostos, com algumas expressões menos bem conseguidas, seja no tratamento da linguagem corporal, por vezes bastante amarrado a si mesmo. 

A edição da ASA é bastante apelativa. O livro apresenta capa dura baça. No seu interior, o papel utilizado é brilhante e de boa qualidade - creio que o tipo de ilustrações aqui presentes teriam saído beneficiadas se o papel utilizado fosse baço - e boa encadernação e impressão.

No balanço final, Vertigeo é uma obra que fascina mais pelo que promete do que pelo que entrega. As suas críticas sociais têm força simbólica, as ilustrações, quando vistas a olho nu, conseguem impressionar e a premissa é cativante. Contudo, o desenvolvimento narrativo e a construção de mundo falham em atingir o nível de complexidade que a história pedia. Fica a sensação de que este universo poderia ter dado origem a algo mais robusto. Assim, Vertigeo é uma obra algo agridoce ou, utilizando a própria metáfora da torre, uma construção que sobe demasiado depressa e não solidifica as suas fundações. 


NOTA FINAL (1/10):
6.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Vertigeo, de Amaury Bündgen e Lloyd Chéry - ASA - LeYa

Ficha técnica
Vertigeo
Autores: Amaury Bündgen e Lloyd Chéry
Editora: ASA
Páginas: 144, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 320 x 23
Lançamento: Junho de 2025

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