Foi recentemente que a editora ASA, certamente aproveitando a atualidade, lançou o livro de banda desenhada A Mais Breve História da Rússia (em BD), que conta com ilustrações de Joana Afonso e argumento de Dulce Garcia. Este livro é adaptado por Dulce Garcia a partir do livro original do jornalista e comentador político José Milhazes, intitulado A Mais Breve História da Rússia, que, aliás, durante o ano 2022, foi o livro mais vendido na categoria de não ficção em Portugal.
Diria que é uma ambiciosa transposição de um texto informativo para o formato de banda desenhada e que procura manter a essência da obra original, mas oferecendo, ao mesmo tempo, uma experiência visual envolvente, acessível e bastante pedagógica. É um livro que procura chegar ao maior número possível de leitores. E tem potencial para conseguir tal feito.
A obra propõe uma viagem cronológica pela história da Rússia, desde as suas raízes, com os povos eslavos, até à atualidade, atravessando momentos determinantes como o czarismo, a Revolução de 1917, o estalinismo, o colapso da URSS e a era Putin. Uma verdadeira aula de história, portanto. E que procura ser o mais atual possível, incluindo a presença de figuras contemporâneas de relevância mundial como Zelensky, Trump, Navalny ou António Guterres. O último capítulo do livro até é focado no passado mais recente, centrando-se na invasão da Ucrânia por parte do regime de Putin, que começou no fatídico dia 24 de fevereiro de 2022. Há, pois, um equilíbrio entre o passado e o presente da Rússia e isso é uma das forças da obra.
E para que este livro navegue até bom porto, também conta o bom trabalho das autoras portuguesas responsáveis por esta empreitada.
Dulce Garcia, pelo seu lado, consegue transformar a densa e muitas vezes árida matéria histórica num guião acessível e bem ritmado. Há uma clara intenção de tornar a informação "digerível" sem a simplificar em demasia, respeitando o leitor e confiando na sua curiosidade. Cada um dos períodos históricos está segmentado em capítulos, facilitando a assimilação dos temas abordados, tal como num manual escolar. Ainda assim, apreciei especialmente o facto de a obra atingir um certo equilíbrio entre não ser densa e pesada em demasia, mas, ao mesmo tempo, levando-se a sério e sendo coerente.
Deste modo, o livro consegue ser educativo sem se tornar maçador e, também por isso, é uma leitura que tanto pode ser aproveitada por um público mais jovem, que tenha interesse inicial pelo tema, como por adultos que procuram uma introdução concisa e bem construída à história da Rússia. A banda desenhada cumpre aqui um papel de mediação cultural e histórica, descomplicando sem infantilizar.
No plano visual, há que dizer que o trabalho de Joana Afonso é absolutamente fundamental para o sucesso do livro. Mantendo-se fiel ao seu traço expressivo e detalhado, Joana Afonso consegue imprimir dinamismo a uma narrativa que, à partida, poderia parecer demasiado expositiva. A forma como gere os enquadramentos, o ritmo das vinhetas e a composição das páginas revela uma maturidade artística notável e confirma porque é que a autora é muitas vezes - e justamente! - considerada como uma das autoras mais interessantes da banda desenhada portuguesa contemporânea.
Tendo em conta a obra que temos em mãos, o mais notável no trabalho de Joana Afonso é que, mesmo perante um tema tão denso e exigente, consiga evitar a armadilha da monotonia visual. Assim, cada página oferece estímulos variados, seja através da expressividade dos rostos, da reconstituição histórica de ambientes, de alguns momentos de humor ou de uma bela diversidade na planificação que nos oferece ilustrações grandes e pequenas. É um trabalho gráfico que respeita o texto, mas também o enriquece, oferecendo ao leitor pistas visuais que ampliam a compreensão da narrativa. Mesmo os momentos mais sangrentos da história russa são-nos dados de uma maneira mais ligeira, mas sem os desdramatizar. "Equilíbrio" parece, portanto, ser a palavra de ordem neste trabalho. A paleta de cores onde imperam os tons a azul ou a vermelho, também dá uma certa personalidade demarcada à obra, que é bem-vinda.
Claro que podemos afirmar que, por vezes, o livro parece ser um livro ilustrado em detrimento de um livro de banda desenhada, já que, em vários casos, tem algum texto expositivo em que eventos referidos não são desenhados. É verdade, mas diria que também é frequente que em banda desenhada de cariz mais didático, a sequência narrativa não tenha uma ligação tão óbvia entre texto e desenho, servindo este último mais para adornar e esquematizar a informação do que, propriamente, para retratar as palavras de um modo mais literal. Mesmo assim, considero que Joana Afonso consegue camuflar bem essa suposta fragilidade através de todo o seu manancial de opções gráficas que tornam a experiência de leitura dinâmica e nunca enfadonha.
É impossível não referir também a atualidade pungente do tema abordado. Num momento em que a Rússia ocupa o centro das atenções mediáticas devido à invasão da Ucrânia, esta obra oferece contexto e profundidade a todos os interessados. Permite compreender como eventos do passado moldaram a mentalidade estratégica e autoritária do atual regime russo, oferecendo uma base mais sólida para interpretar os acontecimentos do presente. Obviamente, talvez seja uma obra algo histórico-política em demasia para muitos, mas isso não lhe tira mérito e revela que, sim, cada vez mais, o mercado nacional de banda desenhada dá passos no sentido certo, incrementando a diversidade da sua própria oferta.
Nota ainda para algo que apreciei no livro, que foi o facto de o mesmo ter a virtude de não ser panfletário. A complexidade da história russa é respeitada, sem desresponsabilizar os seus protagonistas. Figuras como Lenine, Estaline ou Putin são apresentadas com o devido peso histórico, mas também com a necessária contextualização, o que permite ao leitor formar um juízo mais informado e crítico. Ponto a favor, portanto.
A edição da ASA é em capa dura baça, com bom papel baço e boa encadernação e impressão. Não existem extras e parece-me que se perdeu a oportunidade de ter um prefácio do próprio José Milhazes que pudesse fazer uma introdução a como surgiu a ideia de adaptar para banda desenhada o seu A Mais Breve História da Rússia. Uma nota ainda, de louvor, para a belíssima ilustração da capa deste livro. Se há capas que ajudam a vender o livro, esta é uma delas.
Em suma, este livro é uma leitura recomendável para todos os que procuram compreender melhor a história da Rússia, as suas tensões internas, os seus traumas e as suas aspirações imperiais. Dulce Garcia e Joana Afonso conseguem o feito de transformar uma lição de história numa banda desenhada equilibrada, tendo uma boa informação que não é demasiadamente maçuda nem simplória e, ao mesmo tempo, sendo brilhantemente ilustrada por Joana Afonso que, aparentemente, não sabe fazer maus livros. É uma obra que educa, esclarece e estimula, como deve ser qualquer boa banda desenhada de não ficção.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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A Mais Breve História da Rússia (em BD)
Autoras: Dulce Garcia e Joana Afonso
Adaptação a partir da obra original de: José Milhazes
Editora: ASA
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 275 x 206 mm
Lançamento: Maio de 2025
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