terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Análise: Bobigny 1972

Bobigny 1972, de Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel - ASA - LeYa

Bobigny 1972, de Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel - ASA - LeYa
Bobigny 1972, de Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel

A editora ASA continua "a somar e a seguir" no que ao lançamento de banda desenhada de boa qualidade diz respeito! A par da recente edição de Um Oceano de Amor - simplesmente obrigatório e que, certamente, será um dos livros do ano para mim - a editora trouxe-nos também a edição deste Bobigny 1972, das autoras francesas Marie Bardiaux-Vaïente e Carole Maurel, de que hoje vos falo.

Saliente-se que este foi um dos livros mais celebrados na última edição do Festival de Angoulême, tendo mesmo vencido o galardão Prix des Lycées. Como o assunto da obra em questão pode ser visto como político - e, em certa medida, o é - estava curioso para verificar se a atribuição deste prémio era por motivos mais políticos ou pela real qualidade do livro em causa. Ora, não sabendo se os motivos da escolha da obra para o prémio foram políticos ou não, depois de feita a leitura do livro não tenho dúvidas de que é uma obra muito bem feita e plena de qualidades... mesmo que também possa ser política. 

Bobigny 1972 aborda um marco significativo na luta pelos direitos das mulheres em França, retratando o célebre julgamento de Bobigny, ocorrido em 1972, que se tornou um ponto de inflexão na batalha pela legalização do aborto no país.

Bobigny 1972, de Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel - ASA - LeYa
A narrativa centra-se em Marie-Claire Chevalier, uma jovem de 16 anos que, após ser violada, engravida e decide, com a ajuda da sua mãe solteira, interromper a gestação. Ora, nos igualmente próximos e distantes - se é que isso faz sentido - anos setenta do século passado, o aborto era considerado crime em França - e não só - e era punível com pesadas multas ou até mesmo com uma pena de prisão. Ao ser denunciada pelo próprio homem que a tinha violado, Marie-Claire acaba a ter que enfrentar o sistema judicial francês, juntamente com a sua mãe e com mais algumas mulheres que deram uma ajuda para a interrupção desta gravidez.

A advogada Gisèle Halimi, uma militante dos direitos das mulheres, assume a defesa de Marie-Claire, transformando o caso num julgamento mediático que agitou a realidade social francesa por questionar as leis repressivas contra o aborto que se viviam em França. A advogada acaba, pois, por utilizar o tribunal como palco para um debate público, desafiando as políticas antiaborto vigentes e mobilizando a opinião pública a favor da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez.

E o que a obra também assinala é que a própria lei era hipócrita, pois punia as mulheres de condição social mais baixa que faziam abortos, mas não se preocupava com as mulheres de uma classe social mais alta que se deslocava a um país vizinho para fazer a interrupção da gravidez com comodidade e segurança. E os números eram grandes: neste tempo, quase 1 milhão de mulheres francesas faziam abortos de forma clandestina anualmente.

A história é-nos muito bem contada por Marie Bardiaux-Vaïente, procurando remeter-se aos factos, mas colocando-se, naturalmente, no lado das mulheres que viam o direito aos desígnios do seu próprio corpo ser-lhes vedado pelo Estado francês. E embora muitas das páginas do livro nos coloquem dentro do tribunal onde decorre o julgamento de Marie-Claire Chevalier, a argumentista é ágil a saber recuar no tempo, através de flashbacks, para que melhor possamos compreender os eventos que propiciaram aquele julgamento. A maneira como os vários momentos nos são dados e doseados por Bardiaux-Vaïente oferece ao livro um tom cinematográfico que torna a leitura cativante e viciante. Este é um livro que nos faz querer chegar ao fim assim que lhe pegamos.

Resulta bem do ponto de vista histórico - já que estamos a falar de acontecimentos verídicos que viriam a impactar a constituição francesa nos anos 70 e, consequentemente, as constituições de outros países que seguiram o exemplo francês - mas também é um livro que funciona em termos de orgânica de enredo, com o leitor a criar uma ligação emotiva com a protagonista e a tomar igualmente consciência direta da situação injusta e precária que durante tantos anos tanto afetou as mulheres. Infelizmente, em muitos pontos do globo - não tanto, e felizmente, no ocidente - esta injustiça ainda incide na simples condição de se ser mulher. E ao focar-se nas experiências pessoais das protagonistas, a obra humaniza a luta pelos direitos reprodutivos e evidencia as injustiças enfrentadas pelas mulheres em contextos de opressão legal e social.

Nota ainda, positiva, para os diálogos bem construídos por Bardiaux-Vaïente que, sendo assentes naquilo que foi realmente proferido no próprio julgamento, também conseguem deixar no ar as perguntas e as críticas que semelhante assunto merecia. Desde logo, por serem homens a julgar mulheres sobre os corpos das mulheres.

Bobigny 1972, de Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel - ASA - LeYa
Se o argumento é bem arquitetado, também as ilustrações de Carole Maurel - de quem, curiosamente, a editora Levoir já anunciou a edição para breve de Nellie Bly, outra história feminista que muito interesse me suscitou - encaixam bem na história. O traço de Maurel é semi-realista, com as personagens a deterem uma expressividade muito rica, bem comum naquela a que eu gosto de chamar de a "nova vaga" do franco-belga, numa clara herança da escola mais clássica de Spirou e outros congéneres. 

Também as cores são aplicadas de modo muito belo, numa palete em tons maioritariamente amarelados que combinam bem com a própria cinematografia dos anos 70. Para melhor separar as cenas de flashback, a autora optou por delimitar com cantos arredondados as vinhetas do tempo passado. Além disso, estas cenas passadas também têm um estilo mais pulp, por utilizarem mais tramas e pontilhados. Uma coisa é certa: toda a experiência visual é muito bem conseguida.

A cena inicial de ação e, especialmente, a cena da violação e os momentos que lhe seguem, coloridos por tons mais escuros, de forma a aumentar o trauma experienciado por Marie-Claire, revelam-nos um trabalho bastante bem-conseguido da autora que, através dos seus desenhos, consegue passar uma grande emotividade mergulhando o leitor de forma profunda nos eventos desenhados. Fiquei muito bem impressionado com esta autora de quem ainda não tinha lido nenhum livro. Bem, na verdade, fiquei bem impressionado com as duas autoras, já que Bardiaux-Vaïente também se revela uma boa argumentista.

A edição da ASA - que aproveita a proximidade do Dia da Mulher para o lançamento deste livro - é em capa dura baça, com bom papel baço no interior e com boa impressão e encadernação. Nada de errado a objetar. 

Como nota positiva sobre a ASA, refira-se que a editora continua a acertar em cheio nas obras que escolhe publicar em Portugal. Que esse trabalho dê frutos de forma a que possamos poder contar com a editora portuguesa como mais uma das editoras portuguesas que aposta em banda desenhada de qualidade superior é o meu sincero desejo.

Em suma, Bobigny 1972 é uma excelente aposta, repleta de rigor histórico e intensidade emocional, que deve ser lida por todos. Além de narrar os acontecimentos do mediático julgamento que pôs em causa as leis repressivas contra o aborto em França, este é um livro que também destaca o impacto do caso na sociedade francesa, servindo como um tributo às mulheres que lutaram pelos seus direitos e pavimentaram o caminho para as gerações futuras. Um livro a não deixar passar!


NOTA FINAL (1/10):
9.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Bobigny 1972, de Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel - ASA - LeYa

Ficha técnica
Bobigny 1972
Autoras: Marie Bardiaux-Vaïente e Carol Maurel
Editora: ASA
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 276 x 207 mm
Lançamento: Fevereiro de 2025

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