Mostrar mensagens com a etiqueta Análises 2025. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Análises 2025. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Análise: As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey

Hoje debruço-me sobre a série As 5 Terras, de Lewelyn e Lereculey, que tem estado a ser editada pela ASA. Relembro que já aqui analisei os dois primeiros tomos da série e hoje falo-vos do terceiro, quarto, quinto e sexto volumes de As 5 Terras, que encerram o primeiro ciclo da série. Recordo que esta é uma série que está pensada para ser bastante grande, estando previstos, no total, 5 ciclos de 6 tomos cada um. 36(!) volumes no total.

Mas, para já, olhemos para este primeiro ciclo.

Os volumes 3, 4, 5 e 6, intitulados respetivamente O Amor de Um Imbecil, A Mesma Ferocidade, O Objeto do Vosso Ódio e Não Terei Forças, encerram o primeiro ciclo desta notável série e as intrigas que vinham sendo cuidadosamente urdidas nos volumes anteriores, atingem aqui um ponto de tensão máximo. 

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Os jogos de poder, as traições inesperadas e as alianças improváveis estão de volta, para comporem um mosaico narrativo que, ao mesmo tempo que nos surpreende, parece inevitável na lógica interna do mundo criado por Lewelyn e Lereculey. Cada volume acrescenta, pois, camadas de complexidade, conduzindo a um clímax em que os protagonistas já não são apenas peças em disputa, mas agentes ativos na redefinição das estruturas de poder em Angleon.

A riqueza deste primeiro ciclo de As 5 Terras reside também na forma como o enredo se desdobra em múltiplas frentes, sem nunca perder o fio condutor. A luta entre facções, o envolvimento dos estudantes - que reclamam por uma estrutura de poder onde os cidadãos possam participar de forma mais ativa - e a lenta, mas inexorável, transformação das personagens conferem ao ciclo uma densidade muito singular. E, já agora, o final do sexto tomo, Não Terei Forças, marca um fecho brilhante para este arco inicial, com uma reconfiguração inesperada do “jogo das cadeiras” que rege o poder político e social. A sensação que fica é a de termos acompanhado uma história complexa e coesa, que soube encerrar um ciclo ao mesmo tempo que deixa em aberto novas possibilidades para o futuro, quantas não são as personagens e quanta não é a sua sede de poder. Aliás, já que falo nisso, tenho que referir que embora o primeiro ciclo se feche no final do 6º volume, há muito por descobrir e por desvendar nos ciclos seguintes, já que os acontecimentos de um ciclo impactam os do ciclo seguinte.

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Novamente, tenho que referir que é impossível falar de As 5 Terras sem estabelecer paralelos com Game of Thrones. Tal como a célebre obra de George R. R. Martin, esta série trabalha habilmente com a imprevisibilidade, as reviravoltas e a alternância entre drama pessoal e intriga política. A comparação não é gratuita: ambos os universos colocam os leitores perante uma sucessão de eventos tão inesperados quanto inevitáveis, jogando com as nossas expectativas e deixando-nos sempre alerta. Se estamos a achar que determinada coisa pode vir a acontecer, podemos ser surpreendidos ao verificar que aconteceu exatamente o oposto da nossa suspeição.

Porém, claro está, reduzir As 5 Terras a uma simples imitação de Game of Thrones seria injusto. A obra tem uma identidade própria, assente num mundo riquíssimo e numa exploração consistente das tensões internas das várias espécies que o habitam. 

No caso deste primeiro ciclo, o foco está nos felinos, o que confere uma atmosfera muito particular, onde honra, poder e tradição se entrelaçam de forma única.

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Devo dizer que a introdução da luta dos estudantes confere um caráter ideológico à trama, colocando em evidência questões de legitimidade, contestação e herança cultural. Embora isso torne a leitura menos dinâmica em certos momentos, abrandando um pouco o ritmo da narrativa e o fulgor inicial da mesma, não deixa de ser verdade que o desenvolvimento subsequente compensa plenamente, trazendo reviravoltas que restauram a intensidade dramática que esperaríamos.

As surpresas narrativas, de facto, são um dos grandes trunfos da série. Mesmo quando o leitor se habitua ao ritmo das traições e dos jogos de poder, Lewelyn e Lereculey conseguem subverter as expetativas e criar novos cenários de tensão. Esta imprevisibilidade torna a leitura eletrizante e aproxima a série da lógica de uma tragédia clássica, em que o destino das personagens parece inevitavelmente moldado pelas escolhas que fazem.

Outro ponto de destaque é a forma como os autores Andoryss, Chauvel e Wong (sob o pseudónimo de Lewelun) trabalham as personagens. Não há heróis intocáveis ou vilões unidimensionais: cada figura é movida por motivações complexas, muitas vezes contraditórias. Isso contribui para a sensação de um realismo moral, aproximando o universo ficcional daquilo que conhecemos do mundo humano.

As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa
Visualmente, a série mantém uma qualidade notável. O traço de Lereculey continua a ser belo, expressivo e capaz de transmitir tanto a imponência das cenas de poder como a intimidade dos momentos pessoais. As cores também são belas e os cenários são bastante cativantes. A única reserva que se pode apontar aos desenhos é a dificuldade, por vezes, em distinguir algumas personagens felinas, dada a semelhança física entre elas. Contudo, considero que essa limitação não compromete a qualidade gráfica da obra, que permanece impressionante em termos estéticos.

Este ciclo é, portanto, um triunfo tanto narrativo como visual. A editora ASA merece elogios pela aposta em trazer para o público português uma obra desta envergadura, que demonstra como a banda desenhada pode rivalizar com as grandes produções literárias e audiovisuais no que toca a densidade, complexidade e impacto.

Em termos de edição, os livros apresentam capa dura baça. bom papel brilhante no miolo, e uma boa encadernação e impressão. Uma nota importante que convém referir é que cada volume abre com um resumo dos volumes anteriores para assegurar que, mesmo tendo em conta a complexidade da trama, o leitor não se perde e consegue prosseguir com a leitura. No final de cada livro também há um texto sobre uma personagem ou um evento que permite dar profundidade ao universo desenvolvido.

Em suma, As 5 Terras é mais do que uma série de banda desenhada: é um épico em construção, com identidade própria, mas capaz de dialogar com universos como o de Game of Thrones. Ao longo dos seis volumes que compõem este primeiro ciclo, a série revelou-se como uma das propostas mais sólidas e envolventes da banda desenhada atual em Portugal. A coesão da narrativa, a capacidade de surpreender e a riqueza temática conferem-lhe uma dimensão rara, que a aproxima das grandes sagas da literatura e da televisão. Verdadeiramente impressionante.


NOTA FINAL (1/10):
9.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-


As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

Fichas técnicas
As 5 Terras #3 - O Amor de um Imbecil
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Janeiro de 2025
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras #4 - A Mesma Ferocidade
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Janeiro de 2025
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras #5 - O Objeto do Vosso Ódio
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Julho de 2025
As 5 Terras - Volumes 3, 4, 5 e 6, de Lewelyn e Lereculey - ASA - LeYa

As 5 Terras #6 - Não Terei Forças
Autores: Lewelyn e Jérôme Lereculey
Editora: ASA
Páginas: 56, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 318 x 225 mm
Lançamento: Julho de 2025

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Análise: Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad

José Mujica, mais conhecido como Pepe Mujica, é uma das figuras políticas mais singulares da América Latina contemporânea. E, diria até, de toda a política internacional contemporânea. E há muito tempo eu nutria verdadeira admiração por este homem. Recordo que estávamos ainda em 2012 quando lancei, juntamente com os meus colegas da banda Alves Baby, a música Uruguai, que conta com um discurso de Pepe Mujica. Para os interessados, poderão ouvir esta música aqui

Foi, portanto, com muita satisfação que tive conhecimento desta obra, bem como que a Levoir a iria lançar. Com a morte de Mujica em Maio deste ano, a editora não esperou muito tempo até nos disponibilizar a obra, com o lançamento conjunto com o jornal Público.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
A história e, acima de tudo, o exemplo de Pepe Mujica é algo verdadeiramente incrível. Ex-guerrilheiro tupamaro, preso durante anos em condições duríssimas, tornou-se, em 2010, o presidente do Uruguai, ganhando projeção internacional pelo seu estilo de vida simples, desprovido de riquezas e mordomias, e pela defesa da democracia, da justiça social e da simplicidade. A sua trajetória, marcada por momentos de resistência armada, cárcere solitário e liderança política, (ainda) faz dele um símbolo de perseverança e de autenticidade.

E este Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, da autoria de Matías Castro e Leo Trinidad, parte dessa vida complexa e fascinante para construir uma narrativa gráfica que é, ao mesmo tempo, biográfica e um reflexo direto da história recente do Uruguai que, durante a vida de Mujica, atravessou épocas de grande tensão.

Uma coisa que apreciei especialmente neste livro é que, desde o início, a obra surpreenda pela maneira como quebra a chamada "quarta parede". Os autores inserem-se na própria narrativa, comentando o processo de pesquisa e escrita, e mostrando as dificuldades em condensar uma vida tão cheia em páginas de BD. Este recurso funciona muito bem, porque humaniza também os narradores e cria cumplicidade com o leitor. É uma obra sobre Mujica, claro, mas também é uma BD sobre a feitura deste livro sobre Mujica.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Todavia, a experiência de leitura nem sempre é equilibrada. Ao longo da obra, os autores parecem sentir a necessidade de inserir uma quantidade maior do que desejável de acontecimentos políticos, muitos deles secundários na dimensão global da vida de Mujica. Essa sobrecarga acaba por tornar a leitura densa e, por vezes, confusa. Embora seja compreensível a tentativa de contextualizar Mujica no panorama histórico e político uruguaio, essa insistência em acumular factos e datas fragmenta a narrativa. E, consequentemente, o leitor pode perder o fio à meada, sobretudo quando os cruzamentos temporais não são suficientemente claros ou coesos.

Essa densidade documental contrasta, porém, com algumas soluções narrativas mais dinâmicas, que tornam a leitura menos monótona. A inserção dos autores como personagens, já mencionada, bem como alguns diálogos em tom mais leve, ajudam a equilibrar o peso factual. Ainda assim, a sensação de excesso de factos mantém-se.

O final do livro é um dos pontos altos. Quando Castro e Trinidad finalmente têm a oportunidade de conversar com Mujica, a narrativa atinge um patamar mais íntimo e autêntico. O encontro funciona quase como uma recompensa, quer para os autores, quer para os leitores, ao longo do caminho percorrido e dá uma dimensão emocional mais forte ao conjunto. Vivi três momentos enquanto lia este livro: o início foi positivo, pela dinâmica narrativa; o meio foi um pouco difícil de acompanhar e começou a cansar-me, mas o final do livro, com este encontro dos autores com Mujica, acabou por "salvar" a obra. Termina muito bem.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
E mesmo que a história seja contada de forma fragmentada, mantém interesse. A vida de Mujica é tão rica em episódios significativos que, apesar dos problemas mencionados, o livro acaba por transmitir a essência de uma figura rara na política mundial: um líder marcado pela coerência entre discurso e prática, pelo desapego material e pela devoção às causas coletivas.

Já do ponto de vista visual, os desenhos de Leo Trinidad também se apresentam como uma faca de dois gumes. O estilo "cartoonesco" das figuras, sobretudo nos rostos das personagens, funciona bem, transmitindo expressividade e aproximando o leitor da figura de Mujica. É um recurso estilístico que acrescenta simpatia à narrativa, podendo fazer lembrar, com as devidas diferenaças, o trabalho de Paco Roca ou Fabien Tolmé.

Contudo, a execução gráfica sofre bastante quando se trata dos cenários e de outros elementos de fundo. A ausência de detalhes em ambientes, edifícios ou veículos cria uma sensação de vazio visual e, em alguns casos, dificulta a compreensão espacial e temporal da narrativa.

Essa fragilidade gráfica torna-se mais evidente pela própria densidade factual do texto. Com tantos dados, referências históricas e cruzamentos temporais, a ilustração deveria desempenhar um papel mais forte na clarificação e organização visual. Como isso não acontece, por vezes a obra perde foco e clareza.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Não há como dizer de outra forma: em muitos momentos parecem desenhos feitos "à pressa", sem o primor e nível de detalhe que mereciam, dando a ideia de que estamos a ler um storyboard. E há que saber diferenciar uma coisa da outra. Há quem diga que storyboards e bandas desenhadas são a mesma coisa. É uma opinião muito redutora e que revela, acima de tudo, desconhecimento sobre os dois meios.

Ainda assim, uma nota positiva tem que ser dada à forma como Leo Trinidade optou por ilustrar a parte da história em que Pepe Mujica está preso. Os desenhos ganham uma nova vida nessa parte, sendo impactantes.

A edição da Levoir, contrariamente às outras edições estrangeiras do mesmo trabalho, dividiu a obra em dois volumes. Ora, se já defendi a editora quando, por exemplo, no caso de Moby Dick, de Chabouté, optou por editar a obra em dois volumes, tal como a mesma havia sido originalmente editada - mesmo que, depois, houvesse várias edições estrangeiras integrais e mais bem conseguidas - neste caso, tenho que afirmar que esta opção neste Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha foi um desserviço à obra. Talvez a "culpa" desta opção não deva recair na própria editora, pois, segundo a informação que a mesma me deu, esta opção de dividir a obra em dois, foi do próprio jornal Público que preferiu o lançamento desta forma. Fica a nota.

De resto, os dois livros apresentam capa dura baça, bom papel baço no miolo e uma boa encadernação e impressão. O esquema de cores que diferencia os dois livros - sendo um a vermelho e outro a azul - até acabou por funcionar bem em termos visuais.

Em síntese, Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha deixa sentimentos mistos. É positivo que exista uma BD que traga Mujica a novos públicos, valorizando uma vida que merece ser conhecida. A originalidade da narrativa e a força do final equilibram parte das fragilidades. Porém, o excesso de factos, a fragmentação do enredo e a pobreza de detalhes nos desenhos impedem que o livro atinja todo o seu potencial. Fica, no entanto, como uma obra válida, sobretudo pelo testemunho de um homem que desafia os modelos tradicionais de poder. Fossem todos os políticos como Mujica e talvez as opiniões ultra polarizadas que os regimes democráticos do mundo ocidental enfrentam não tivessem tanta expressão.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Fichas técnicas
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha - Volume 1 (de 2)
Autores: Matías Castro e Leo Trinidad
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha - Volume 2 (de 2)
Autores: Matías Castro e Leo Trinidad
Editora: Levoir
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Análise: O Silêncio de Malka

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero

Inserida na Coleção Angoulême, que a editora Devir tem vindo a lançar durante este ano, está esta obra do argentino Jorge Zentner e do espanhol Rubén Pellejero, intitulada O Silêncio de Malka e que chegou às livrarias portuguesas há algumas semanas.

Este é um belo livro que nos conta a história de uma família judia que, vítima das perseguições que marcaram a Rússia no final do século XIX, é forçada a abandonar a sua terra natal e a procurar um novo futuro na Argentina. Logicamente, e esse será um dos principais focos desta obra, essa mudança não é apenas geográfica, mas também cultural e espiritual, pois contrariamente ao que poderiam desejar, estes recém-chegados da Rússia à Argentina, enfrentam a dureza do trabalho agrícola e a adaptação a um território desconhecido, onde os migrantes são tratados com desdém pelos locais. Infelizmente, é algo que, passe o tempo que passar, parece continuar a assolar a sociedade. Se calhar, é algo que está adjacente ao facto de os humanos não serem tão humanos assim, diria eu.

Mas avancemos.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
O Silêncio de Malka
 é constituído por seis histórias distintas, cada uma centrada num momento ou período específico, que em conjunto formam um retrato profundo da experiência dos imigrantes russos na Argentina. No centro do enredo, está Malka, uma criança cuja inocência contrasta com as duras realidades que a vão rodeando desde tenra idade. A sua voz - ou melhor, o seu silêncio - funciona, pois, como símbolo da sua vulnerabilidade, mas também da sua resiliência, já que, convenhamos, se resistir a um destino malfadado não é tarefa fácil, imaginem fazê-lo sem poder falar. Há silêncios que são mais ruidosos do que muitas palavras ocas e insípidas e essa é a metáfora mais presente neste O Silêncio de Malka.

Os seis capítulos que compõem a obra, mesmo fazendo parte de um todo, apresentam alguma independência narrativa, podendo até ser lidos de forma isolada. À primeira vista, o leitor poderá ficar com a ideia de que Zentner não tinha uma estrutura narrativa fechada quando começou a escrever a obra e que foi acrescentando episódios ao longo do tempo. Consequentemente, essa fragmentação inicial pode dar a sensação de que não existe uma orgânica muito forte entre todas as partes. Confesso-vos que dei comigo a sentir isso à medida que lia a obra. Mas uma segunda leitura, com mais atenção a algumas pistas deixadas pelo argumentista, permitiu-me constatar que cada capítulo tem uma ligação subtil com os outros, compondo, no fim, um quadro muito mais coeso do que se poderia supor.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
Esse aspeto faz com que a leitura seja enriquecedora, sendo possível encontrar ecos, símbolos e pequenos detalhes que estabelecem pontes entre pequenos eventos que poderiam parecer soltos ou independentes. Este é, portanto, um daqueles casos em que a narrativa ganha profundidade ao ser revisitada, demonstrando que a fragmentação aparente é, na verdade, uma forma de refletir a própria condição das personagens, feita de momentos dispersos que só no tempo se consolidam num todo mais profundo.

Outro elemento notável deste O Silêncio de Malka é a forma como a obra equilibra fantasia e realidade. Quem acompanha as minhas análises já se deve ter dado conta que, por vezes, eu tenho uma certa tendência a considerar que "demasiada fantasia" pode arruinar os intentos narrativos de uma obra. Como o "céu é o limite" na utilização da fantasia, dou-me conta de que muitos autores se deixam levar por essa atratividade mas deixando, depois, que as suas obras fiquem inverossímeis ou demasiado imberbes. Em O Silêncio de Malka há fantasia, sim, mas de um modo temperado e equilibrado, abrindo o véu para uma reflexão mais profunda, mas através de uma postura credível ou, pelo menos, sensata. Há, de facto, momentos em que elementos mágicos, inspirados tanto pela tradição judaica da Torá como pelas crenças populares da Argentina rural, atravessam a narrativa. Esses episódios não são meras fugas para o irreal, mas funcionam como metáforas das esperanças e medos das personagens. E ao conjugar o fantástico com o registo mais histórico e informativo do livro, Zentner constrói um retrato complexo que ultrapassa a simples crónica da migração dos russos.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
Este equilíbrio entre fantasia e realidade também contribui para que a obra seja envolvente sem perder densidade. Por um lado, mergulha o leitor na experiência concreta dos migrantes russos que procuraram uma vida melhor na Argentina; por outro, abre espaço para a imaginação e para o intangível, como se nos sugerisse que toda a experiência humana é atravessada por forças invisíveis, sejam elas religiosas, culturais ou emocionais. Gostei desta profundidade temática.

O livro peca apenas, na minha opinião, por ser algo curto. Fico com a ideia que, com mais algumas páginas, certos eventos poderiam ter sido mais bem retratados.

O traço de Rubén Pellejero é outra das coisas que merece destaque absoluto. O estilo daquele que haveria de se tornar no ilustrador da atual série Corto Maltese, é, nesta obra, original e familiar ao mesmo tempo, conseguindo criar empatia imediata com o leitor. As expressões faciais, os cenários e a caracterização das personagens são muito belos e conseguem transmitir uma humanidade palpável. Além disso, as cores utilizadas são belíssimas, conferindo uma atmosfera particular a cada capítulo. É um trabalho de cores que não serve apenas para embelezar a obra, mas também para reforçar o tom emocional de cada episódio. Aprecie especialmente esta vertente cromática da obra.

O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir
A beleza dos desenhos faz com que, mesmo nos momentos mais duros da narrativa, haja sempre um espaço para a contemplação estética. Pellejero consegue transformar a dor, o desespero ou a solidão em imagens de grande impacto, sem nunca resvalar para a gratuitidade. 

Em termos de edição, o livro apresenta capa dura baça e bom papel baço no interior. O trabalho de encadernação e impressão também é bom. O livro é ainda composto por um epílogo de três páginas, alguns esboços de Pellejero e um texto sobre a obra, da autoria de Benoit Mouchart. Há também um texto introdutório à obra por parte de Zentner. São generosas 26 páginas de extras. A edição continua ter o formato de 17 por 24 cms. Um formato que muitos consideram pequeno em demasia. Não diria que seja grande, mas no caso em concreto, sinto que a leitura não sei prejudicada pela escolha deste formato.

Em suma, O Silêncio de Malka é uma obra comovente e sofisticada, que combina narrativa histórica, fantasia simbólica e belos desenhos de Pellejero. A parceria entre este e Zentner resulta num livro belo e melancólico, que fala da dor do exílio, da força da memória e da capacidade de resistência das comunidades perseguidas. Eis um livro que espero que não orbite fora dos radares dos leitores portugueses.


NOTA FINAL (1/10):
8.7



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-


O Silêncio de Malka, de Jorge Zentner e Rubén Pellejero - Devir

Ficha técnica
O Silêncio de Malka
Autores: Jorge Zentner e Rubén Pellejero
Editora: Devir
Páginas: 112, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Junho de 2025

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Análise: Akira – Livro 1

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House
Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo

Sem desprimor para as restantes obras editadas pela Distrito Manga, uma chancela do grupo Penguin, a recente publicação da obra-prima do autor Katsuhiro Otomo, intitulada Akira, reveste-se como a melhor aposta da editora até à data!

Este clássico intemporal do mangá e da cultura popular japonesa, que desde o seu lançamento original já teve eco em todo o mundo, até já havia sido integralmente publicado em Portugal pela Meribérica durante os anos noventa. Nessa altura, optou-se por publicar a série com o sentido de leitura ocidental, da esquerda para a direita, e numa versão a cores que havia sido especialmente (e originalmente) produzida para o mercado americano por se acreditar, à época, que essa seria a melhor forma de fazer chegar um mangá ao mercado norte-americano. Talvez por esse motivo - desta obra ter sido lançada em Portugal nessa mesma versão a cores - eu e muitos dos leitores portugueses, tivemos o primeiro contacto com a série desse modo. Mas, quanto a esse ponto, já lá irei.

Situada numa Neo-Tóquio distópica após a destruição nuclear de 1982, a história acompanha Kaneda, Tetsuo e outros jovens mergulhados num turbilhão de conspirações militares, experiências secretas e no despertar de poderes psíquicos devastadores. Aquando do seu lançamento, Akira conseguiu romper com a estética mais convencional dos mangás da altura, introduzindo um traço detalhado, urbano e incrivelmente cinematográfico, que teve repercussões em todo o mundo, sublinho. 

A cidade de Neo-Tóquio, uma metrópole erguida sobre as ruínas de Tóquio após uma explosão misteriosa que desencadeou a Terceira Guerra Mundial, e um local onde as ruas passaram a estar abarrotadas de gangues, corrupção política e marginalidade, é um cenário que respira inquietação e que se afirma como uma personagem per se. Nesta distopia carregada por um ambiente caótico e opressivo, são as personagens Kaneda e Tetsuo, dois jovens rebeldes, que, juntamente com os seus amigos do  gangue, montam velozes motas, vagueando pelas ruas em busca de velocidade, adrenalina e confrontos com outros grupos rivais. 

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House
O eixo central da narrativa reside, pois, na amizade  - e posterior confronto - entre Kaneda e Tetsuo, dois adolescentes que acabam por simbolizar diferentes respostas à marginalidade que se faz viver na cidade. Kaneda é carismático e impulsivo, encarnando o espírito da juventude rebelde que prefere agir em vez de refletir. Já Tetsuo, é alguém inseguro e sempre na sombra do amigo, que encontra nos seus novos poderes adquiridos uma oportunidade de afirmação. 

De resto, o "enigma de Akira", ainda apenas meramente sugerido neste primeiro volume, funciona como motor narrativo. Este enigma não é apenas uma força destrutiva do passado, mas também uma ameaça latente, algo que todos temem, mas ninguém compreende inteiramente. Essa presença invisível ecoa a ideia de que a verdadeira catástrofe nunca está distante, e de que o ser humano, ao brincar com forças que não controla, arrisca a sua própria autodestruição.

Akira apresenta-se como uma obra de entretenimento puro e duro, mas que traz consigo uma alegoria política e existencial. E que, mais de três décadas depois, permanece uma referência incontornável, não apenas pela sua estética revolucionária, mas pelo modo como articula caos, poder e humanidade através de uma narrativa que continua atual e provocadora. O seu impacto foi tal que, quando o anime estreou em 1988, já havia uma base de fãs global. O próprio anime haveria de constituir um marco no cinema de animação e no anime, em particular, passando a ser uma obra de culto. Contudo, e obviamente, o mangá original vai muito além do filme, tanto em profundidade narrativa quanto em densidade temática. 

Por falar em densidade temática, convém ainda dizer que outro dos trunfos de Akira é o facto da série ser um dos pilares do cyberpunk. A fusão entre tecnologia avançada e decadência social, a crítica ao autoritarismo, a presença de poderes paranormais como metáfora para forças incontroláveis e a representação da juventude como resistência contra estruturas opressivas são elementos que influenciaram não apenas outros mangás, mas também várias outras obras da literatura, do cinema e dos videojogos. 

O estilo visual de Otomo é um dos grandes trunfos de Akira. Desde as primeiras páginas, o desenho expressivo, dinâmico e minucioso constrói uma cidade vibrante, mas sufocante, onde cada rua, cada veículo e cada detalhe arquitetónico transmite verosimilhança. Mais do que um simples pano de fundo, a cidade é o reflexo de uma sociedade em colapso, onde a juventude procura escape em motas potentes e confrontos violentos. A própria iconografia das motas tornou-se tão emblemática que hoje é indissociável do imaginário da obra.

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House
E, também por isso, há uma sensação de velocidade que está sempre presente em Akira. Otomo utiliza enquadramentos cinematográficos, linhas de movimento e sequências longas de perseguições para transmitir essa urgência quase palpável que arrasta o leitor para este ritmo acelerado, como se estivesse dentro das corridas nocturnas pelas ruas de Neo-Tóquio. 

Falando dos desenhos e da componente visual da obra, e mesmo que possa chocar o leitor mais purista que me leia, tenho que referir que teria preferido que a obra fosse reeditada a cores. E quando digo isto, não é apontando alguma falha à edição da Distrito Manga. Até porque a editora portuguesa se limitou a ser fiel à edição original da obra, editando-a a preto e branco, da forma que foi originalmente concebida por Otomo, e com o sentido de leitura japonês. Nada de negativo pode, portanto, ser dito acerca dessa opção. Além de que também compreendo que se esta obra fosse lançada a cores, possivelmente teria um preço muito mais avultado. E talvez as cores ainda necessitassem de um tratamento especial. No entanto, e admitindo que talvez o meu julgamento seja condicionado pelo primeiro contacto que tive com esta série na sua versão a cores, quando penso em Akira, penso numa banda desenhada a cores. E era essa que, teimosamente, eu gostaria que voltasse a chegar às livrarias portuguesas. Deste modo, sou-vos sincero quando vos confesso que reler esta série a preto e branco me deixou saudades da edição a cores.

Quanto à edição da Distrito Manga, o livro tem capa mole e uma sobrecapa baça. No interior, o papel é de boa qualidade e a impressão e encadernação são boas. As guardas do livro, a cores, são particularmente impactantes e bonitas.

Em suma, a Distrito Manga merece uma vénia pela aposta neste mangá. Relevante ainda hoje, Akira mantém a sua frescura pela forma como aborda questões universais: a luta pelo poder, a fragilidade da amizade, o medo do desconhecido e a desconfiança nas instituições. A estética visual continua impressionante, e a narrativa, carregada de urgência, não perdeu intensidade com o passar das décadas. A mestria de Otomo está em equilibrar o seu espetáculo visual com uma reflexão profunda sobre o poder e a violência. Essa combinação garante que Akira permaneça, ainda hoje, não apenas uma leitura “apetecível”, mas um clássico indispensável da banda desenhada mundial.


NOTA FINAL (1/10):
9.4



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



-/-

Akira – Livro 1, de Katsuhiro Otomo - Distrito Manga - Penguin Random House

Ficha técnica
Akira – Livro 1
Autor: Katsuhiro Otomo
Editora: Distrito Manga
Páginas: 352, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 178 x 256 mm
Lançamento: Junho de 2025

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Análise: Toxic West

Toxic West, de João Gil Soares - Escorpião Azul

Toxic West, de João Gil Soares - Escorpião Azul
Toxic West, de João Gil Soares

Uma das mais recentes novidades no catálogo da editora Escorpião Azul dá pelo nome de Toxic West e é da autoria do português João Gil Soares, de quem a editora já havia publicado o livro Forgoth: A Cidade Esquecida. E posso dizer-vos que são livros bastante diferentes entre si.

Toxic West assume-se como um western pós apocalíptico com uma premissa tão inusitada quanto cativante: depois da extinção da humanidade, os mutantes tentam sobreviver num mundo arrasado pela poluição e pelo legado destrutivo dos humanos. Nesse cenário árido, onde desertos cobertos de lixo funcionam como pano de fundo, já não temos pessoas, mas apenas animais. Acompanhamos Patti Graves, uma guaxinim fora-da-lei, e Sierra Bloom, uma ratazana psíquica, na sua jornada rumo à cidade de Zion. A narrativa propõe, desde o início, uma mistura de aventura, crítica ecológica e humor ácido, estabelecendo o tom para o universo bizarro e caótico em que a ação se desenrola.

Toxic West, de João Gil Soares - Escorpião Azul
Sendo que um dos aspetos mais interessantes da história é o modo como o autor recorre a estereótipos clássicos dos westerns - forasteiros, duelos, caçadores de recompensas, gangues e cidades sem lei, só para mencionar alguns - para depois os distorcer através da lente do (seu) pós-apocalipse. Este "guisado" de elementos resulta num mundo familiar e, ao mesmo tempo, estranho, onde há espaço para que também apareçam soldados robot que são parte do exército controlado pelo vilão, Warden, um tubarão. É neste antagonista especialmente divertido que João Gil Soares introduz um comentário satírico à lógica capitalista, colocando-o como arquétipo de um mafioso que quer expandir os seus negócios a todo o custo.

A dupla de protagonistas, Patti e Sierra, funciona como o fio condutor da narrativa, com a guaxinim a encarnar o espírito do fora-da-lei clássico e Sierra a servir-se dos seus poderes psíquicos. Esta complementaridade entre personagens, por vezes a fazer lembrar o road movie Thelma e Louise, oferece algum espaço para o humor, embora nem sempre isso seja convenientemente explorado pelo autor.

O uso de animais antropomórficos como personagens também se revela uma escolha que acentua esta vertente mais cómica da obra, aproximando-a do universo indie da banda desenhada mais alternativa, ao mesmo tempo que reforça o tom lúdico e satírico da narrativa. 

Toxic West, de João Gil Soares - Escorpião Azul
Visualmente, este é um livro com uma personalidade muito própria, que ganha força devido ao estilo de desenho adotado, baseado num traço simples e rápido, pouco detalhado e com uma aura “rough on the edges”, que lhe oferece um caráter mais independente. No meu caso, este tipo de desenho remeteu-me para os desenhos animados da era dourada da Nickelodeon em que séries como Ren & Stimpy, Rugrats, Hey Arnold ou CatDog  , só para mencionar algumas, faziam furor. Esse paralelismo é feliz, já que evoca uma nostalgia que pode agradar a leitores mais adultos que cresceram nesse período. 

No entanto, e apesar das boas ideias que a obra traz, o desenvolvimento narrativo deixa a desejar em alguns pontos. A sensação é de que o autor se perde, a meio caminho, na própria história. A progressão de eventos, em vez de seguir uma linha coerente, apresenta-se dispersa, deixando o leitor com a impressão de que partes do enredo se diluem num nonsense acidental. E, lá está, até poderia ser um nonsense procurado pelo autor, mas parece-me que não é o caso, pois, apesar dos elementos cómicos da história, há uma tentativa de progressão narrativa linear e clássica. E é nesse ponto que a obra mais peca, quanto a mim. Ou bem que era totalmente nonsense e audaz por isso, ou bem que a sua história era mais bem afinada. Acaba por ficar no meio dos dois caminhos sem conseguir ser especialmente bem sucedida em nenhuma dessas opções.

Toxic West, de João Gil Soares - Escorpião Azul
Outro aspeto problemático está na oscilação entre públicos-alvo. Há momentos em que o livro claramente se dirige a um público infantil, com humor simples, situações caricatas e um ritmo acessível. Contudo, noutras partes, como no pendor mais retro-indepedente visual da obra ou na sua crítica subjacente, parece querer dialogar com um público adulto. Esta indefinição acaba por fragilizar o impacto global da obra: se a intenção era criar uma narrativa madura disfarçada de fábula, o argumento necessitaria de maior solidez e coesão, quanto a mim.

Quanto à edição da Escorpião Azul, o livro apresenta capa mole baça, com detalhes a verniz, e com badanas. O papel é de boa qualidade e a impressão e a encadernação também são boas. No final, há um caderno de extras, com 8 páginas, com ilustrações adicionais. À semelhança do que a editora tem vindo a fazer em edições recentes, as margens das folhas do livro são coloridas a verde, o que dá um aspeto diferenciado e apelativo ao mesmo.

Em suma, Toxic West é uma obra algo irreverente, que chama especialmente a atenção pela originalidade e audácia da sua proposta de nos apresentar um western pós-apocalípico, com personagens antropomorfizadas, numa proposta gráfica bastante crua e, por outro lado, infantil. É uma leitura peculiar e bem-vinda, mas que deixa também a sensação de que, com um maior amadurecimento do argumento, o livro poderia ter alcançado um patamar mais sólido e marcante. É, ainda assim, uma obra que merece atenção, sobretudo de quem aprecia banda desenhada alternativa e universos que arriscam sair do comum.


NOTA FINAL (1/10):
6.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

-/-

Toxic West, de João Gil Soares - Escorpião Azul

Ficha técnica
Toxic West
Autor: João Gil Soares
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 136, a core
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
PVP: 29,00€

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Análise: Ditirambos #4 - Noite

Análise: Ditirambos #4 - Noite, de Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira

Análise: Ditirambos #4 - Noite, de Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira
Ditirambos #4 - Noite, de Vários Autores

Foi recentemente que chegou às livrarias o quarto volume da antologia Ditirambos! Desta vez, passou-se um pouco de mais tempo entre o lançamento do último volume e o atual, cerca de 3 anos, mas posso dizer-vos que a espera foi compensada com mais um belo lançamento.

Para quem ainda não sabe, Ditirambos é uma antologia de banda desenhada que junta autores já com provas dadas em termos qualitativos. Uns são mais conhecidos ou ativos do que outros, mas todos eles já nos ofereceram obras de BD relevantes.

A antologia volta a manter a sua matriz: um mote único - que, neste caso, é o da Noite - e um constrangimento formal rigoroso de quatro páginas por história, o que, naturalmente, força cada um dos autores participantes a uma certa "ginástica" de síntese narrativa e de soluções visuais inventivas. 

Análise: Ditirambos #4 - Noite, de Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira
A coesão que depois a obra consegue adquirir não é, pois, conquistada pela continuidade visual ou narrativa, mas antes por esse tema comum que, sendo neste caso algo tão abrangente como a "Noite", permite variadíssimas interpretações narrativas. O estilo visual, claro está, revela-se ricamente heterogéneo, sendo facilmente inidentificáveis os estilos dos autores Joana Afonso, Ricardo Baptista, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira, Sofia Neto e Carla Rodrigues. E todos eles se apresentam em boa forma.

Já quanto às histórias, cada autor escolhe uma inflexão distinta sobre o tema, indo desde o onírico ao social, da fantasia ao slice of life, passando até pelo humor ou pelo horror. Como tal, é justo dizer que este quarto volume da antologia apresenta um andamento que, quer em termos de argumento, quer em termos de desenho, consegue ser pertinente e evitar qualquer tipo de monotonia. São histórias que não têm problema em captar a atenção do leitor.

Análise: Ditirambos #4 - Noite, de Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira
É claro que, naturalmente, há histórias que ressoam mais do que outras em nós, consoante as nossas preferências, que serão sempre pessoais. No meu caso, devo dizer que, mesmo tendo gostado de todas as histórias, gostei especialmente das histórias A Esfinge, de Ricardo Baptista; Caçadores, de Raquel Costa e Nuno Cancelinha; Presas, de Francisco Ferreira e Sónia Mota; e Pesadelo, de Carla Rodrigues.

Não obstante as boas sensações que a leitura deste quarto Ditirambos me ofereceu, devo dizer que, desta vez, senti que algumas histórias careciam de maior desenvolvimento para se tornarem mais relevantes. Estou ciente, claro, da regra das quatro páginas por história, mas mesmo assim pareceu-me que alguns destes mini-contos precisariam de mais páginas para que os seus temas fossem melhor explanados. É, pois, interessante notar que, em volumes anteriores, certas histórias pareceram mais bem resolvidas dentro da mesma restrição, atingindo um equilíbrio mais feliz entre concisão e clareza narrativa.

Análise: Ditirambos #4 - Noite, de Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira
Mesmo assim, não tenho dúvidas de que Ditirambos se mantém como uma das melhores antologias de banda desenhada em Portugal, com todos os autores a apresentarem-se num bom nível. 

Também em termos de edição, o livro volta a apresentar as mesmas características das edições passadas, envergando capa mole com badanas, bom papel baço no interior e boa encadernação e impressão. Volto a dizer: para um projeto independente, Ditirambos tem tudo de profissional e nada de amador.

Em suma, este quarto volume de Ditirambos confirma a iniciativa como uma das melhores antologias de banda desenhada em Portugal. Todos os autores apresentam trabalhos num bom nível, e o resultado global transmite uma rara sensação de profissionalismo, quer na escrita, quer na ilustração. O projeto contribui, inclusive, para desarmar um preconceito recorrente em certos espaços de discussão sobre BD: a ideia de que as antologias falham em consistência ou qualidade. Pelo contrário, Ditirambos mostra que um trabalho rigoroso e cuidado pode produzir uma antologia sólida e exemplar. Que o projeto continue a sua caminhada!


NOTA FINAL (1/10):
7.8


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


-/-

Análise: Ditirambos #4 - Noite, de Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira

Ficha técnica
Ditirambos #4 - Noite
Autores: Joana Afonso, Ricardo Baptista, André Caetano, Nuno F. Cancelinha, Diogo Carvalho, Raquel Costa, Francisco Ferreira, Sónia Mota, Sofia Neto e Carla Rodrigues
Editora: Edição Independente
Páginas: 52, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 168 x 258 mm
Lançamento: Maio de 2025