sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Análise: Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad

José Mujica, mais conhecido como Pepe Mujica, é uma das figuras políticas mais singulares da América Latina contemporânea. E, diria até, de toda a política internacional contemporânea. E há muito tempo eu nutria verdadeira admiração por este homem. Recordo que estávamos ainda em 2012 quando lancei, juntamente com os meus colegas da banda Alves Baby, a música Uruguai, que conta com um discurso de Pepe Mujica. Para os interessados, poderão ouvir esta música aqui

Foi, portanto, com muita satisfação que tive conhecimento desta obra, bem como que a Levoir a iria lançar. Com a morte de Mujica em Maio deste ano, a editora não esperou muito tempo até nos disponibilizar a obra, com o lançamento conjunto com o jornal Público.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
A história e, acima de tudo, o exemplo de Pepe Mujica é algo verdadeiramente incrível. Ex-guerrilheiro tupamaro, preso durante anos em condições duríssimas, tornou-se, em 2010, o presidente do Uruguai, ganhando projeção internacional pelo seu estilo de vida simples, desprovido de riquezas e mordomias, e pela defesa da democracia, da justiça social e da simplicidade. A sua trajetória, marcada por momentos de resistência armada, cárcere solitário e liderança política, (ainda) faz dele um símbolo de perseverança e de autenticidade.

E este Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, da autoria de Matías Castro e Leo Trinidad, parte dessa vida complexa e fascinante para construir uma narrativa gráfica que é, ao mesmo tempo, biográfica e um reflexo direto da história recente do Uruguai que, durante a vida de Mujica, atravessou épocas de grande tensão.

Uma coisa que apreciei especialmente neste livro é que, desde o início, a obra surpreenda pela maneira como quebra a chamada "quarta parede". Os autores inserem-se na própria narrativa, comentando o processo de pesquisa e escrita, e mostrando as dificuldades em condensar uma vida tão cheia em páginas de BD. Este recurso funciona muito bem, porque humaniza também os narradores e cria cumplicidade com o leitor. É uma obra sobre Mujica, claro, mas também é uma BD sobre a feitura deste livro sobre Mujica.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Todavia, a experiência de leitura nem sempre é equilibrada. Ao longo da obra, os autores parecem sentir a necessidade de inserir uma quantidade maior do que desejável de acontecimentos políticos, muitos deles secundários na dimensão global da vida de Mujica. Essa sobrecarga acaba por tornar a leitura densa e, por vezes, confusa. Embora seja compreensível a tentativa de contextualizar Mujica no panorama histórico e político uruguaio, essa insistência em acumular factos e datas fragmenta a narrativa. E, consequentemente, o leitor pode perder o fio à meada, sobretudo quando os cruzamentos temporais não são suficientemente claros ou coesos.

Essa densidade documental contrasta, porém, com algumas soluções narrativas mais dinâmicas, que tornam a leitura menos monótona. A inserção dos autores como personagens, já mencionada, bem como alguns diálogos em tom mais leve, ajudam a equilibrar o peso factual. Ainda assim, a sensação de excesso de factos mantém-se.

O final do livro é um dos pontos altos. Quando Castro e Trinidad finalmente têm a oportunidade de conversar com Mujica, a narrativa atinge um patamar mais íntimo e autêntico. O encontro funciona quase como uma recompensa, quer para os autores, quer para os leitores, ao longo do caminho percorrido e dá uma dimensão emocional mais forte ao conjunto. Vivi três momentos enquanto lia este livro: o início foi positivo, pela dinâmica narrativa; o meio foi um pouco difícil de acompanhar e começou a cansar-me, mas o final do livro, com este encontro dos autores com Mujica, acabou por "salvar" a obra. Termina muito bem.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
E mesmo que a história seja contada de forma fragmentada, mantém interesse. A vida de Mujica é tão rica em episódios significativos que, apesar dos problemas mencionados, o livro acaba por transmitir a essência de uma figura rara na política mundial: um líder marcado pela coerência entre discurso e prática, pelo desapego material e pela devoção às causas coletivas.

Já do ponto de vista visual, os desenhos de Leo Trinidad também se apresentam como uma faca de dois gumes. O estilo "cartoonesco" das figuras, sobretudo nos rostos das personagens, funciona bem, transmitindo expressividade e aproximando o leitor da figura de Mujica. É um recurso estilístico que acrescenta simpatia à narrativa, podendo fazer lembrar, com as devidas diferenaças, o trabalho de Paco Roca ou Fabien Tolmé.

Contudo, a execução gráfica sofre bastante quando se trata dos cenários e de outros elementos de fundo. A ausência de detalhes em ambientes, edifícios ou veículos cria uma sensação de vazio visual e, em alguns casos, dificulta a compreensão espacial e temporal da narrativa.

Essa fragilidade gráfica torna-se mais evidente pela própria densidade factual do texto. Com tantos dados, referências históricas e cruzamentos temporais, a ilustração deveria desempenhar um papel mais forte na clarificação e organização visual. Como isso não acontece, por vezes a obra perde foco e clareza.

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir
Não há como dizer de outra forma: em muitos momentos parecem desenhos feitos "à pressa", sem o primor e nível de detalhe que mereciam, dando a ideia de que estamos a ler um storyboard. E há que saber diferenciar uma coisa da outra. Há quem diga que storyboards e bandas desenhadas são a mesma coisa. É uma opinião muito redutora e que revela, acima de tudo, desconhecimento sobre os dois meios.

Ainda assim, uma nota positiva tem que ser dada à forma como Leo Trinidade optou por ilustrar a parte da história em que Pepe Mujica está preso. Os desenhos ganham uma nova vida nessa parte, sendo impactantes.

A edição da Levoir, contrariamente às outras edições estrangeiras do mesmo trabalho, dividiu a obra em dois volumes. Ora, se já defendi a editora quando, por exemplo, no caso de Moby Dick, de Chabouté, optou por editar a obra em dois volumes, tal como a mesma havia sido originalmente editada - mesmo que, depois, houvesse várias edições estrangeiras integrais e mais bem conseguidas - neste caso, tenho que afirmar que esta opção neste Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha foi um desserviço à obra. Talvez a "culpa" desta opção não deva recair na própria editora, pois, segundo a informação que a mesma me deu, esta opção de dividir a obra em dois, foi do próprio jornal Público que preferiu o lançamento desta forma. Fica a nota.

De resto, os dois livros apresentam capa dura baça, bom papel baço no miolo e uma boa encadernação e impressão. O esquema de cores que diferencia os dois livros - sendo um a vermelho e outro a azul - até acabou por funcionar bem em termos visuais.

Em síntese, Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha deixa sentimentos mistos. É positivo que exista uma BD que traga Mujica a novos públicos, valorizando uma vida que merece ser conhecida. A originalidade da narrativa e a força do final equilibram parte das fragilidades. Porém, o excesso de factos, a fragmentação do enredo e a pobreza de detalhes nos desenhos impedem que o livro atinja todo o seu potencial. Fica, no entanto, como uma obra válida, sobretudo pelo testemunho de um homem que desafia os modelos tradicionais de poder. Fossem todos os políticos como Mujica e talvez as opiniões ultra polarizadas que os regimes democráticos do mundo ocidental enfrentam não tivessem tanta expressão.


NOTA FINAL (1/10):
7.0


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Fichas técnicas
Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha - Volume 1 (de 2)
Autores: Matías Castro e Leo Trinidad
Editora: Levoir
Páginas: 144, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha, de Matías Castro e Leo Trinidad - Levoir

Pepe Mujica e as Flores da Guerrilha - Volume 2 (de 2)
Autores: Matías Castro e Leo Trinidad
Editora: Levoir
Páginas: 128, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270 mm
Lançamento: Maio de 2025

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