Foi com uma “entrada a pés juntos”, no melhor sentido da expressão, que a Levoir inaugurou a sua sétima coleção de Novelas Gráficas, editada em parceria com o jornal Público.
Depois de mais de dois anos de interregno, é com enorme prazer que testemunho este regresso a uma coleção tão relevante na formação de novos leitores portugueses de banda desenhada. E sim, inaugurar esta sétima coleção com uma obra de Chabouté, foi, a priori, uma vitória já consumada.
No caso, a Levoir lançou, em dois volumes, a obra Moby Dick, a adaptação para banda desenhada do clássico da literatura de Herman Melville. Acredito que todos os que me leem já conhecem a emblemática obra original de Melville, já muitas vezes adaptada para o cinema e mesmo para a banda desenhada, mas, ainda assim, permitam-me uma muito breve sinopse.
Moby Dick é uma obra-prima da literatura americana originalmente publicada em 1851. A história é narrada por Ishmael, um marinheiro que se junta à tripulação do navio baleeiro Pequod, comandado pelo obcecado Capitão Ahab. A missão de Ahab é caçar e vingar-se de Moby Dick, uma enorme baleia branca que lhe arrancou a perna num encontro que ambos tiveram anteriormente.
Um dos temas centrais do livro é a obsessão, representada principalmente pela busca por vingança de Ahab face a Moby Dick. O capitão Ahab torna-se, com efeito, numa figura trágica, consumida por sua busca implacável, o que levanta questões sobre os limites da obsessão humana. O livro explora também a relação complexa entre o homem e a natureza, descrevendo a majestade e a crueldade do oceano, bem como a fragilidade da humanidade em relação à imponência da natureza.
Aquilo que movia os tripulantes do navio Pequod, bem como toda uma indústria baleeira que florescia na primeira metade do século XIX, era o óleo de baleia. Este óleo era extraído da gordura das baleias e servia, especialmente, para fornecer combustível para a iluminação pública e privada, embora também fosse utilizado numa grande variedade de produtos, tais como no fabrico de sabão e outros cosméticos, ou mesmo no fabrico de margarina. Claro que pescar uma baleia não era, à altura, uma atividade nada fácil ou que não acarretasse enormes riscos para toda a tripulação que, nestas viagens, chegava a estar mais de três anos em alto mar. Mas o Homem sempre foi pródigo em arriscar tudo e mais alguma coisa em prol do seu enriquecimento. Que o digamos nós mesmos, portugueses, quando recordamos o dourado (?) tempo das longas viagens marítimas que fizemos no passado.
Não obstante o já referido, sendo uma história que nos mostra o quão difíceis eram estas viagens e a caça à baleia, Moby Dick é bem mais do que isso. É um exercício que procura mostrar até onde a vingança e o sentimento de ódio pode levar uma pessoa à obsessão, à loucura e a um final desesperado, arrastando consigo um cem número de indivíduos que são alheios a essa vingança. A cegueira perante o bom senso é, pois, algo que é impossível de tratar e o capitão Ahab é o claro exemplo de alguém que, mergulhado de forma tão profunda numa vingança sem pés (perna?) nem cabeça, há muito se esqueceu daquilo que a sua vida poderia e deveria ter sido. E agora, em plena solidão, tem um único foco: vingar-se de Moby Dick. No matter what.
A adaptação de Chabouté data do ano de 2014, e consegue o belo feito de ser muito fiel ao original, possibilitando ao leitor uma bela imersão na obra e reunindo os momentos mais importantes e essenciais do texto original. Independentemente do belo desenho a preto e branco de Chabouté, do qual falarei mais à frente, julgo ser justo dizer que uma das razões pela qual esta obra funciona muito bem é pelo facto de o autor ter dado tempo narrativo – leia-se páginas – para deixar a história fluir e os momentos ganharem profundeza. Nisso, este Moby Dick de Chabouté é um verdadeiro exemplo. Porque, se analisarmos bem, a obra original até é daquelas que podem ser sintetizadas num ou dois parágrafos. Apesar disso, o autor foi inteligente ao verificar que a história precisaria de tempo e espaço para melhor impactar o leitor. Só dessa forma o livro teria a valência de também ser contemplativo e de conseguir trazer várias e pertinentes conclusões acerca daquilo que move a humanidade. Se poderia ser uma história contada em metade das páginas deste duplo volume? Sim! Até em menos! Agora, se poderia ser igualmente marcante se tal tivesse sido feito? Ah, seguramente que não!
O ritmo, demarcadamente lento, permite que o mistério que rodeia as personagens, e em particular a baleia Moby Dick e o capitão Ahab aumente e mantenha o leitor mergulhado na história, mesmo que, tal como foi o meu caso, o referido leitor já esteja farto de conhecer a obra original.
Assim, a narrativa visual acaba por ser uma parte fundamental desta adaptação. Chabouté utiliza o poder das imagens para transmitir a vastidão do oceano, a grandiosidade da baleia e a angústia do capitão Ahab, que é maravilhosamente retratado. O universo talhado a preto e branco pelo autor amplia a sensação de isolamento e desespero que habita a história original. Chabouté é conhecido pela sua habilidade única para contar histórias visuais, e esta adaptação não é, portanto, exceção, com o seu estilo artístico a criar uma atmosfera sombria e intensa, que combina perfeitamente com a narrativa original carregada de emoção e complexidade. As imagens detalhadas e as expressões inequívocas das personagens ajudam a transmitir as emoções e os conflitos subjacentes à história.
O preto e branco puro do autor, onde não existe espaço para meios tons cinzentos, é verdadeiramente admirável. Os jogos de negro e claro que o autor faz e a maneira como utiliza o espaço negativo que a opção por camadas a preto na ilustração possibilita, é verdadeiramente apaixonante. Incrível também é como o autor consegue, apenas através das suas ilustrações, sem o recurso a texto, transmitir-nos cheiros, sons, ambientes, sentimentos. São muitas as páginas onde não há um único balão de texto, mas que, por oposição a isso, nos passam inúmeras informações para a compreensão da história. Que maestria de Chabouté!
Se me posso queixar de algo é que, mais ou menos a meio da história, a personagem de Ishmael começa a ficar um pouco “esquecida”, com o autor a centrar-se mais em Ahab, e esquecendo os sentimentos e vivências que Ishmael experiencia. Não é nada de muito grave, mas creio que, tendo em conta que a primeira parte da história até se centra mais em Ishmael, o facto da mesma personagem quase desaparecer de cena durante a segunda parte da obra, traz uma certa incoerência que o texto original de Melville não tem.
Relativamente à edição da editora Levoir - que, relembro, já havia editado numa outra coleção de novelas gráficas a obra Acender Uma Fogueira, de Chabouté -, esta está em linha com aquilo a que já nos habituámos na coleção: capa dura, papel com pouca espessura (embora decente), boa impressão e boa encadernação. Como extra, é apresentado um prefácio que, neste caso, é feito por Pedro Bouça.
Muito se tem dito sobre a qualidade da edição, especialmente no caso deste Moby Dick que, sendo percecionado, e bem, como uma obra de qualidade superior, merecia, para muitos, uma edição mais cuidada. Não nego isso. E até vou mais longe: num paraíso de edições para os adeptos de banda desenhada, é lógico que cada livro - não só este - deveria ter os mais nobres materiais, um bom punhado de extras, com esboços, entrevistas sobre a obra, formato maior, papel com maior gramagem, etc. É óbvio que sim. Uma verdade La Palisse. Tal como é óbvio que toda a gente deveria conduzir um Mercedes ou um BMW topo de gama, em vez de um Fiat Punto ou de um Citroen AX. No entanto, tendo em conta que esta é a forma que a editora Levoir tem para editar a obra por cá, aceita-se. Não denigre, não destrói e não invalida esta edição. E, às tantas, é preferível que tenhamos a edição publicada em Portugal nestes moldes, do que não termos, sequer, edição portuguesa. Tal como é melhor andar de Fiat Punto ou de Citroen AX do que andar a pé. Mesmo que a nossa preferência possa recair num Mercedes ou num BMW.
Vi também vários comentários na internet exaltando que a Levoir deveria ter lançado a obra num só volume. Mais uma vez, digo: “pois, eu também preferia que a obra fosse lançada num só volume”. Até porque gosto imenso de edições integrais que, em geral, são mais belas, ocupam menos espaço na prateleira e permitem, num só objeto, ter a obra completa. Também é verdade que, no passado, já vimos a Levoir cometer alguns erros de edição ridículos, devido a "invenções" estranhas na altura na forma de dividir uma obra. No entanto, desta vez, acho injustas estas críticas à divisão da obra em dois. Por uma razão muito simples: a obra foi originalmente lançada em dois volumes. Portanto, ela não foi dividida, sequer. É verdade que, depois da edição integral, a obra tem sido publicada desse modo. No entanto, ela não foi dividida pela Levoir, repito. Esta é uma obra originalmente concebida em dois volumes. Ponto, parágrafo. Logo, não se pode acusar a Levoir de estar a “inventar” ou de estar a desrespeitar a obra. Foi desta forma, em dois volumes, que Chabouté lançou originalmente a obra, não esqueçamos. Preferia que este Moby Dick fosse lançado num luxuoso único volume? Sim. Mas o que é certo é que, durante praticamente 10 anos, nenhuma editora portuguesa se tinha chegado à frente para lançar a obra por cá. Foi a Levoir que o fez. E fê-lo à sua maneira, da forma possível. Não é uma edição de sonho, mas não considero que seja uma edição que não dignifique a obra.
Em suma, e olhando para o todo, a adaptação em banda desenhada de Moby Dick por Chabouté oferece uma perspetiva visual única e emocionante da obra clássica de Herman Melville. A habilidade artística e narrativa de Chabouté torna a história acessível a um novo público, ao mesmo tempo em que homenageia o trabalho original. Esta adaptação é um dos livros do ano e representa uma perfeita maneira para (re)descobrir a épica busca de Ahab por Moby Dick e todos os temas profundos que a história aborda. Imprescindível!
NOTA FINAL (1/10):
9.8
-/-
Moby Dick - Volume 1
Autor: Chabouté
Editora: Levoir
Páginas: 128, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 280 mm
Lançamento : Agosto de 2023
Autor: Chabouté
Editora: Levoir
Páginas: 144, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 280 mm
Lançamento: Setembro de 2023
Boa tarde Hugo, relativamente á impressão lamento mas tenho que discordar consigo - o papel é de má qualidade (embora com um pouco mais de gramagem) e isso reflecte-se na falta de profundidade do preto. Se tiver oportunidade de comparar com outras edições (espanhola, brasileira...) verá que os pretos são muito menos profundos, quase baços. Esta obra merecia melhor edição, num só volume e por editor que a valorizasse o objecto gráfico. Uma oportunidade perdida...
ResponderEliminarPois, não discordo. A qualidade da edição, incluindo da impressão, poderia ser melhor. Mas acho aceitável e digna. Quanto a ser uma oportunidade perdida... depende do ponto de vista. Para quem valoriza ter a edição da obra em português de Portugal - e não o tinha, foi uma oportunidade ganha.
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