Foi apenas há alguns dias que a Ala dos Livros nos presenteou com o lançamento de Uma Estrela de Algodão Preto, dos autores Yves Sente e Steve Cuzor. Este era um livro que eu não conhecia, mas que logo me deixou muito interessado. Até porque, confesso, até à leitura de A Vingança do Conde Skarbek, lançado pela Arte de Autor, que foi um dos meus livros preferidos do ano passado, eu não catalogava mentalmente o trabalho do Yves Sente como "espetacular". E se calhar isso era uma injustiça da minha parte. É certo que aquilo que tinha lido do autor em séries clássicas como XIII, Blake e Mortimer ou Thorgal não tinha sido mau, mas também não tinha sido fantástico. Foi, portanto, depois de ler A Vingança do Conde Skarbek que fiquei agradavelmente surpreendido com as boas ideias narrativas do argumentista.
Como tal, devido a este meu background de leitor, parti com boas expetativas para este Uma Estrela de Algodão Preto que, convenhamos, nada tem a ver com aquilo que eu lera do argumentista até então. A história acontece em dois tempos, no séc. XVIII, nos Estados Unidos, por alturas em que George Washington e os seus apoiantes tentam criar um país independente; e no séc. XX, em plena Segunda Guerra Mundial.
A história é deveras peculiar. Começa em Filadélfia, em 1776, quando George Washington encomenda a Betsy Ross a feitura da primeira bandeira dos futuros Estados Unidos. Uma bandeira é sempre uma afirmação política e um elemento distintivo de um qualquer Estado que se quer independente. Como tal, a tarefa é de sobeja relevância para todos os envolvidos. Entretanto, Angela Brown, uma negra que representa as tarefas de empregada doméstica de Betsy Ross, vive dias de angústia na sua condição de negra que vê, diariamente, um cem número de injustiças a serem perpetradas por uma sociedade controlada pelos brancos. A situação ultrapassa os limites do aceitável quando os seus dois irmãos são vítimas de mais uma injustiça oriunda de um profundo sentimento de racismo. Como retaliação silenciosa, mas também como statement político, Angela decide prestar um tributo secreto a toda a comunidade negra que, goste-se ou não, é parte integrante na conceção do próprio projeto dos Estados Unidos da América. E esse atributo assenta na secreta tarefa de coser uma estrela de algodão preto por baixo de uma das estrelas brancas da famosa bandeira. É uma afirmação silenciosa – e quase poética – mas de extrema relevância para a raça negra nos Estados Unidos.
Entretanto, passam-se quase dois séculos e estamos em plena Segunda Guerra Mundial. Pelo lado dos EUA, os negros também são chamados à guerra, mas, ao contrário dos brancos, apenas assumem funções menos dignas e menos heroicas ao serviço do exército norte-americano. Lincoln, Tom e Johnson são três negros que estão fartos destas missões menos relevantes e que querem ter um papel mais preponderante na Grande Guerra. E é quando um deles, Lincoln, recebe uma carta da sua irmã, Johanna, que fica a saber desta misteriosa estrela preta bordada na bandeira dos Estados Unidos. Caberá depois, aos três soldados, que são comandados por um quarto soldado de etnia branca, levar a bom porto uma missão de resgate à referida bandeira que, miraculosamente, caiu nas mãos de um oficial das SS. Se aquilo que os três soldados queriam era ter alguma ação, certamente as suas preces são ouvidas porque esta missão que, à partida, parece uma causa perdida e irrelevante a muitos dos soldados com quem se cruzam pelo caminho, leva os quatro soldados ao coração do conflito, passando por Paris e pelas Ardenas, num clima de constante perigo e destruição.
Yves Sente constrói uma boa narrativa, interligando muito bem as peças deste Uma Estrela de Algodão Preto. No fundo, estamos perante um cativante drama de guerra que oferece uma mistura de ficção histórica e intriga. A obra acaba por ter o potencial de agradar aos fãs do drama histórico, mas também aos fãs dos livros de guerra e ação. Está cá tudo.
E até uma aura política está contida na obra, já que aqui é retratada a luta racial dos negros nos Estados Unidos da América e a maneira como foram marginalizados, mesmo quando desempenharam um papel fundamental, muitas vezes oculto, na formação da nação. Mesmo hoje em dia – e isso talvez seja o sentimento mais triste que o livro passa ao leitor – esta luta está longe de estar terminada e as injustiças perante a raça negra continuam a existir nos EUA. Por esse motivo, pode-se dizer que o livro está mais que atual e que traz consigo uma boa reflexão. Não só sobre o passado, mas também sobre o presente e sobre o futuro.
Quanto ao ilustrador desta obra, Steve Cuzor, embora certas séries do autor já tenham prendido o meu interesse, como Blackjack ou O’Boys, apenas tinha apreciado com mais critério o trabalho do autor numa das histórias que compõem a antologia Go West – Young Man, que a Gradiva publicou recentemente por cá. Contudo, agora que li com rigor este Uma Estrela de Algodão Preto, que tem quase 200 páginas, pude constatar os belos dotes do autor enquanto ilustrador, conseguindo um bom equilíbrio entre o chamado desenho mais clássico franco-belga, mas conseguindo também, uma boa dose de modernismo, com um desenho estilizado onde as tramas assumem papel relevante na criação de boas sombras.
Posso, pois, dizer que em relação às ilustrações constantes na obra, Steve Cuzor dá-nos um trabalho de exclência, muito competente e bem conseguido. Em Uma Estrela de Algodão Preto, o seu traço é semi-realista e a versatilidade de desenho do autor é excelente, quer nas cenas de maior ação bélica, onde sentimos a tenção latente a um cenário de guerra, quer nas cenas mais calmas e históricas. Curioso é o facto de as personagens principais masculinas nos remeterem, de forma muito direta, para a fisionomia dos atores Denzel Washington e Forest Whitaker. Mesmo assim, se me posso queixar de algo é que, por vezes, tive alguma dificuldade em distinguir algumas das personagens masculinas.
Gostei particularmente das cores do álbum – que são asseguradas por Meephe Versaevel – que, nas cenas de guerra, variam entre tons mais esverdeados nas partes que se passam na base militar e entre tons mais azulados e frios nas partes que se passam em cenários repletos de neve. Nas cenas mais históricas, as ilustrações apresentam tons mais amarelados e acastanhados, estilo sépia. A mistura cromática entre estes diferentes momentos da narrativa acaba por funcionar muito bem e dar harmonia visual ao livro.
Em termos de edição, a Ala dos Livros volta a fazer um trabalho imaculado. O livro apresenta capa dura baça, com lombada arredondada e bom papel brilhante no miolo. A qualidade da impressão e da encadernação também são excelentes. No final, são ainda incluídas sete grandes ilustrações, de página dupla, que dignificam a edição portuguesa.
Em suma, Uma Estrela de Algodão Preto é um impactante (e preocupante) romance histórico que explora temas de patriotismo, identidade e sacrifício, entrelaçando dois períodos distintos da história norte americana que não foram propriamente bons para os negros. Mas, lá está, que período é que o foi? Não é que este livro ou as personagens do mesmo resolvam a questão do racismo. O mundo não funciona dessa maneira simples, infelizmente. Todavia, através do que é mostrado, Sente e Cuzor mostram-nos bem o quão ridículo e infundamentado é o racismo. Especialmente num país que se alicerçou no esforço conjunto de tantas raças – incluindo a negra – para se afirmar como uma super potência mundial. Uma excelente leitura que se recomenda vivamente!
NOTA FINAL (1/10):
9.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Uma Estrela de Algodão Preto
Autores: Yves Sente e Steve Cuzor
Editora: Ala dos Livros
Páginas: 192, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato:235 x 310 mm
Lançamento: Setembro de 2023
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