terça-feira, 12 de setembro de 2023

Análise: O Mangusto

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart
O Mangusto, de Joana Mosi

Por vezes, dá-me gosto pegar em duas obras de um autor, separadas por alguns anos, e compará-las entre si, verificando, deste modo, que alterações e que crescimento foi havendo no autor, entre o lançamento de uma e outra obra. Faço-o no cinema, na literatura, na música e, também, claro está, na banda desenhada.

E comparar o trabalho de Joana Mosi no seu mais recente livro, O Mangusto, publicado pel’A Seita e pela Comic Heart, com aquilo que a autora portuguesa nos tinha dado nas suas obras anteriores, como Altemente ou Nem Todos os Cactos têm Picos, por exemplo, é como comparar o dia e a noite. Quase parecem obras de autoras diferentes. Isto porque, hoje em dia, parece que Joana Mosi percorreu um longo percurso desde os seus primeiros livros. A maneira de contar histórias da autora modificou-se, amadurecendo e alcançando uma melhor noção narrativa da história, assim como os próprios desenhos para ilustrar a referida história, sofreram mudanças capitais. Mas já lá iremos.

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart
Em primeiro lugar, centremo-nos na história deste O Mangusto, que nos apresenta a personagem de Júlia, que tem que lidar com uma enorme catástrofe quando se apercebe que a pequena horta que cultiva no seu jardim de casa, parece ter sido destruída por um mangusto. Não sabem o que é um mangusto? É um pequeno mamífero, semelhante a uma suricata, que pode ser encontrado em África ou na Península Ibérica, por exemplo.

Ora, numa breve frase sintética e superficial, esta parece ser a síntese da obra: "Júlia começa a desconfiar que um mangusto destruiu a sua horta e procura livrar-se do bicho". Pronto. There you go, como dizem os ingleses. No entanto, e é nesse ponto que, a meu ver, Joana Mosi mais brilha, toda a questão do mangusto é um engodo para aquilo que realmente importa. Na verdade, não é o mangusto o ponto fulcral da história. O mangusto não passa de uma manobra de diversão. Quer para a personagem, quer para a autora, quer para os leitores. Na vida adulta, muitas vezes não admitimos a presença de elefantes nas nossas salas, de coisas que precisam (e têm) de ser alteradas, corrigidas, anuladas, ultrapassadas, esquecidas. E escudamo-nos com pequenas nuances, pequenas manobras de diversão para nos fazer esquecer o elefante e o big problem e podermo-nos concentrar somente no small problem e na coisa mundana que é tão mais fácil de gerir. E que faz com que achemos que, desse modo, estamos a ganhar tempo e adiar o problema maior.

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart
O Mangusto
é, acima de tudo, uma história sobre o luto e sobre como é difícil - e por vezes até parece ser impossível - que avancemos com a nossa vida depois de perdermos uma peça fundamental para a nossa existência. É, pois, comum que entremos em negação e procuremos não encarar o problema que temos à nossa frente. Após perder Paulo, Júlia fica num estado apático e alienado perante a vida, e toda a sua energia parece concentrar-se em encontrar e exterminar – de uma forma suave – este mangusto. Ela nunca o viu e até pode muito bem não existir, mas o foco neste pequeno bicho serve como um pretexto para a sua vida, naquele momento.

A juntar a essa demanda pelo mangusto, Joana Mosi faz surgir outras personagens deveras interessantes: Joel, o irmão de Júlia, que passa a vida mergulhado em videojogos e que, estando já perto dos quarenta anos, se vê desempregado de repente; e a mãe de ambos que, procurando ajudar, acaba muitas vezes por não ter a melhor abordagem ou sensibilidade para tal.

E sensibilidade também é algo que o leitor necessita para bem mergulhar em O Mangusto. Porque o início do livro até pode parecer estranho e algo non sense. No entanto - e mais uma vez, Joana Mosi, revela qualidades na forma como gere os momentos narrativos -,  a obra vai-se abrindo aos poucos até que desabrocha totalmente e nos permite perceber o quão também estávamos enganados, se inicialmente achámos que o cerne da questão era algo tão ordinário como a caça a um bicho que estragou uma horta. Como se a autora conseguisse fazer surgir no leitor, o exato sentimento que a protagonista da história experiencia. Fantástico!

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart
A juntar a isso, também gostei de como a autora trata o leitor como alguém inteligente, não lhe dando a “papinha" toda feita, mas fazendo-o perceber/adivinhar aquilo que realmente se passou. A parte em que Júlia e Joel vão a uma festa de anos de familiares e de como as conversas na diagonal que aí se encetam nos permitem ir dando luz ao que realmente se passou, é especialmente bem conseguida e um dos melhores momentos do livro, a meu ver. Tal como é o momento em que Júlia conversa com a psicóloga em que, abrindo-se a ela, também revela ao leitor o “big problem” já sem pudores ou reservas.

De resto, esta é uma história triste e profundamente madura, onde Joana Mosi, revela uma boa escrita e uma boa gestão do tempo narrativo. Os diálogos são verossímeis e, parecendo, por vezes, irrelevantes, servem, acima de tudo, para tornar real e possível a história. Para que a obra se aproxime do leitor. A crueza da verdade e da vida acaba por desaguar em cima do leitor, à medida que a leitura vai avançando. O nó no coração instala-se e é difícil que não nos identifiquemos com algo do que nos é dado. Ou que não nos lembremos daquela vez em que a vida nos tirou o tapete do chão e nos fez cair, ou das diversas vezes em que, sem capacidade de avançarmos, insistimos em desviar o olhar do verdadeiro problema e centramo-nos em coisas pequenas e sem importância do dia-a-dia.

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart
Se a história me encheu as medidas, devo dizer que as ilustrações da autora, que são radicalmente diferentes das que a autora nos tinha dado em Altemente, Nem Todos os Cactos têm Picos ou em O Outro Lado de Z (com argumento de Nuno Duarte), não me agradaram tanto como nas obras que acabo de referir. A influência do mangá e do sketching desapareceu e os desenhos deste O Mangusto são de traço mais simplista, com as personagens a apresentarem caras vazias, que as fazem parecer meros pictogramas. Também os cenários são, na maior parte das vezes, bastante vazios. Não será um “defeito”, note-se. É mais um “feitio” que, naturalmente, pode agradar a muitos leitores e onde Joana Mosi, goste-se mais ou menos, também assume a sua maturidade. Até porque, se estes novos desenhos num preto e branco sem espaço para cinzentos, se podem assumir como mais vazios e menos detalhados, é inegável que são eficazes a traçar o mood pretendido para o tema. A minha teimosia faz-me achar que gostaria de ler esta obra com ilustrações ao género de O Outro Lado de Z, mas o meu sentido de objetividade e justiça para com a obra, obriga-me a considerar que texto e desenho casam muito bem neste O Mangusto. E, vai na volta, a autora até acertou em cheio nesta nova abordagem visual.

O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart
Com efeito, parece-me até que este estilo simplista, moderno e clean, muito apreciado por uma nova vaga de leitores, pode ser comparado, no estrangeiro, a Bastien Vivès e, em Portugal, a Bernardo P. Carvalho (autor de Desvio e de Mar Negro) ou a Joana Estrela (autora de Pardalita). Tudo com as devidas distâncias, claro está, porque, já se sabe, cada autor tem o seu próprio estilo e personalidade gráfica.

Não esqueçamos também que, quando a personagem de Júlia, se abre com a sua psicóloga, Joana Mosi nos dá um “rebuçado” e nos apresenta ilustrações (que procuram ser fotografias do passado) com mais detalhe e sombreados, onde os cinzentos marcam presença. Chamo a estas ilustrações de “rebuçado” pois apresentam mais detalhe e, por conseguinte, e quanto a mim, um desenho mais belo.

Quanto à planificação com que a autora nos brinda, também tenho que fazer um comentário. As vinhetas são dispostas de forma muito livre, podendo, nuns casos, estar rodeadas por um enorme espaço livre, em branco, ou, noutros casos, estar mais encavalitadas umas nas outras, não havendo sequer espaço para uma margem branca. Admito que, por vezes, achei que a leitura se tornava algo confusa ou claustrofóbica, mas creio que não foi algo que a autora tenha feito sem pensar. Aliás, Joana Mosi parece ter pensado em tudo porque, entre história, narrativa, desenhos, planificação e tudo o mais, há uma grande harmonia. As coisas encaixam umas nas outras, tornando a obra mais coesa. Até mesmo na capa, que não me agradou especialmente, por ser algo insípida e com cores pouco chamativas (para os meus gostos, claro está), tenho que admitir que, mais uma vez, se consegue uma harmonia com a restante obra.

Em termos de edição, este livro d’A Seita e da Comic Heart, que foi financiado pela Bolsa de Criação Literária da DGLAB, apresenta capa dura baça, com bom papel baço e boa impressão e encadernação.

Em resumo, O Mangusto é um dos livros relevantes da banda desenhada nacional de 2023! Joana Mosi aparece quase irreconhecível em relação ao que tinha feito no passado e dá-nos a sua obra mais madura e de maior fôlego. É um livro que nos pede para pararmos para pensar na melhor forma de enfrentarmos os “elefantes na sala”, que todos temos, de uma forma ou de outra, mas aos quais fazemos vista grossa.


NOTA FINAL (1/10):
9.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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O Mangusto, de Joana Mosi - A Seita e Comic Heart

Ficha técnica
O Mangusto
Autora: Joana Mosi
Editora: A Seita e Comic Heart
Páginas: 184, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 20,5 x 27 cm
Lançamento: Maio de 2023

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