Começo por dizer que Mar Negro, que traz consigo o muito aguardado regresso da dupla Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho à edição de banda desenhada, responsável pelo aclamado Desvio, que até ganhou um VINHETA D’OURO em 2020, começou por não me agarrar logo à primeira.
Estão a ver os dois longos capítulos que Eça Queiroz ocupa na descrição do Ramalhete no célebre romance Os Maias? Bem, as primeiras 40 páginas de Mar Negro não nos dão mais do que detalhes dos gestos e tarefas mundanas do dia-a-dia de um café de praia. Compreendo que seja uma forma de ambientar o leitor, de apresentar o quotidiano das personagens, de representar os pequenos nadas da vida que fazemos diariamente e, acima de tudo, de mostrar o que Mar Negro tem para nos oferecer. Mas permitam-me dizê-lo: é levado ao extremo. E relembro que sou alguém que, em banda desenhada, até prefere páginas “a mais” do que “a menos”, pois acabo por achar que, muitas vezes, é frustrante que uma boa história, carregada de boas personagens, não tenha o devido espaço para bem explanar as suas ideias e emoções. Mas as primeiras páginas de Mar Negro são, de facto, custosas de superar. Nem os momentos, nem as palavras, nem os desenhos conseguem criar uma relação no leitor.
Mas não julguem um livro pelas primeiras 40 páginas! Tal como não devemos julgar Os Maias pelos primeiros dois capítulos. Depois dessa travessia do deserto, à semelhança do que acontece na obra-prima de Eça de Queiroz, há em Mar Negro toda uma história e universo que nos marca e que cuja leitura da mesma se torna compensadora.
E ainda bem que assim é. Relembrando a proposta de Desvio, Ana Pessoa volta a convidar-nos a mergulhar na existência frugal de um jovem completamente normal. Desta vez, focamo-nos em Inês, que trabalha num café de praia, onde tem como colega JP. Ambos parecem estar em sintonias diferentes, mas quase sempre é assim no meio profissional, não? O que nos levou ali, ao trabalho que fazemos, pelo menos a muitos de nós, foi a procura por uma forma de sustento e, naturalmente, é normal que os nossos colegas tenham sido movidos justamente por essa mesma coisa apenas e, portanto, não tenham assim tanto em comum connosco, certo? Bem, às vezes não é bem assim. Às vezes, encontramos semelhanças ou, melhor ainda, formas de encaixe com pessoas que, à partida, não teriam nada a ver connosco.
Se Inês e JP parecem ser a antítese um do outro, vai-se tornando claro, com a passagem do tempo, que os seus feitios e formas de estar se começam a interligar. Mas, sendo um relato muito vívido e verossímil, de tal forma que esta história poderia ter sido baseada numa história real, não deixa de ser verdade que os adolescentes (ainda) não sabem, sequer, o que querem do mundo e, em última análise, de si mesmos.
Com efeito, Ana Pessoa traz-nos, novamente, mais uma protagonista que parece procurar o seu lugar e a definição de si mesma. E nisso, a autora é exímia na forma como gere tempos, momentos e pensamentos. A história é lenta, sim, mas depois de superadas as 40 páginas, começa a deixar-nos cada vez mais ligados ao enredo e às personagens que nele coabitam. É certo que, quanto a mim, não me parece que, desta vez, as falas sejam tão inspiradas, marcantes ou inspiradoras como foram em Desvio. Pelo contrário, temos alguns diálogos que parecem tão insípidos como os diálogos reais de adolescentes entediados. E, assumindo que isso não será assim tão positivo para o leitor, não deixa de ser impressionante o nível de realismo que a autora consegue colocar naquilo que é dito pelas suas personagens.
Em termos de desenho, Bernardo P. Carvalho mantém o seu registo de traço. A grande diferença, face a Desvio, é que deixámos de ter uma obra a cores, em detrimento de um registo de bicromia. Neste caso, os desenhos não são a preto e branco, mas sim a azul e branco. Há bons momentos de ilustrações e algumas opções estéticas belas, de facto, mas parece-me que, não sendo o traço do autor muito detalhado ou provido de grandes virtuosismos técnicos, os desenhos neste registo de duas cores apenas acabam por ficar mais despidos, com o resultado final a ser menos cativante. É verdade que as cores de Desvio eram, por vezes, algo saturadas demais. Não obstante, acho que possibilitaram que o livro fosse mais cativante.
Continuando a falar do trabalho de Bernardo P. Carvalho neste Mar Negro, há algo que é difícil não reparar que é na planificação da obra. Mar Negro enverga possivelmente uma das planificações mais dinâmicas e audazes que vi nos últimos tempos. O autor já o tinha feito em Desvio, mas, neste caso, fá-lo com muita (talvez demais?) assertividade. As margens entre vinhetas são feitas na cor laranja e apresentam uma espessura muito fina, fazendo com que as mesmas não se pareçam tanto como uma margem entre vinhetas, mas sim uma mera linha delimitadora. Isto faz com que, naturalmente, as ilustrações não respirem tanto, muito embora, o resultado final seja original, claro.
De facto, a planificação chega a ser tão dinâmica, que em vez de olharmos para pranchas de banda desenhada, parece que estamos a olhar para uma parede de alvenaria, ou para uma parede de azulejos, com diferentes formas entre si. Consequentemente, nem sempre se torna uma experiência de leitura fluída ou agradável. Prova disso é que, em alguns casos, o autor tenha sentido a necessidade de colocar umas “setas”, entre vinhetas, para que o leitor não se perca.
Chega a parecer que o autor quis, por capricho, formatar mais as páginas segundo um padrão estético do que para melhor servir a história. Mas, lá está, também há que reconhecer que o resultado final é, mais uma vez, original, moderno e audaz. Não se pode dizer que Bernardo P. Carvalho não faça as coisas à sua própria maneira.
Pensando a quem se destina esta banda desenhada - um público jovem adulto, por ventura arredado da banda desenhada mais clássica - não vejo que, quer no ritmo, quer no teor, quer na componente visual, Mar Negro não seja uma obra que facilmente atrai e causa impacto. E isso merece as minhas vénias. Acho mesmo que seria salutar – até para a afirmação da 9ª Arte nacional enquanto expressão artística moderna e diversificada – que esta dupla continuasse a dar-nos mais bandas desenhadas no futuro.
Mar Negro não consegue, a meu ver, chegar ao patamar a que Desvio chegou, mas é, não obstante, uma boa e original experiência de leitura. Daquelas bandas desenhadas que trazem público novo ao género.
Em termos da edição, merece destaque o facto de este ser o 100º livro da editora Planeta Tangerina. É certo que desses 100 livros não são tantos os que são de banda desenhada. Porém, é um marco muito interessante, que merece os meus parabéns e agradecimentos. O livro apresenta capa mole, com largas badanas e um papel decente. Quer a capa, quer o papel, poderiam ser um pouco mais espessos, ainda assim. De resto, a encadernação e a impressão são de boa qualidade.
Portanto, em conclusão, e depois de ler este Mar Negro, há que admitir uma coisa: Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho parecem estar a jogar um campeonato à parte na banda desenhada nacional. Escrevem e desenham histórias de uma forma que ninguém escreve ou desenha, e parecem direcionar-se para um público diferente do público habitual de banda desenhada. E isso terá todas as desvantagens, para alguns, mas também tem todas as vantagens para outros.
NOTA FINAL (1/10):
7.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Mar Negro
Autores: Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho
Editora: Planeta Tangerina
Páginas: 320, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 174 x 230 mm
Lançamento: Março de 2023
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