segunda-feira, 3 de abril de 2023

Análise: Nick Cave: Mercy on Me

Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist - Minotauro (Almedina)

Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist - Minotauro (Almedina)
Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist

Foi com uma dose dupla de surpresa e de satisfação que, sensivelmente a meio do ano passado, tomei conhecimento de que a Minotauro – uma chancela do Grupo Almedina – iria lançar banda desenhada. E, digamos, fê-lo logo com duas obras de qualidade inegável: Johnny Cash: I See a Darkness e Nick Cave – Mercy On Me. Ambas as obras são biografias de músicos e ambas são da autoria do autor alemão Reinhard Kleist de quem, por cá, já foi publicada, pela editora Polvo, a sua obra O Pugilista.

O livro dedicado a Johnny Cash já eu bem conhecia por ter a edição inglesa do mesmo. De qualquer maneira, num futuro próximo, publicarei também a minha análise a esse livro. Por agora, analisarei Nick Cave – Mercy On Me que ainda não tinha lido até há alguns meses.

Antes de qualquer coisa mais, permitam-me desde já dissipar algumas críticas incautas que li, por esse mundo da internet, que se queixavam de que o título da obra não tinha sido traduzido para português. Meus caros, os títulos das músicas não se traduzem. E Mercy On Me é uma das músicas mais célebres de Nick Cave. Bem, tecnicamente, a música chama-se apenas “Mercy”, mas o seu verso mais marcante é exatamente “Mercy on Me”. Traduzir o nome da música – ou mesmo o verso – seria um erro, quanto a mim. E, já agora, I See a Darkness, é o título de uma música cuja versão de Johnny Cash se tornou célebre.

Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist - Minotauro (Almedina)
Não obstante, concedo que talvez a Minotauro pudesse ter colocado uma nota a dizer "edição portuguesa" na capa. Isto para que o público perceba, de forma inequívoca, que se trata de uma obra em português.

Mas, avancemos.

Muitas vezes, quer no cinema, quer na literatura, quer, até, na banda desenhada, as biografias de pessoas que se tornaram célebres pelos seus feitos são apenas um pretexto e/ou um engodo para lançar uma obra de qualidade medíocre e tentar recolher os dividendos da mesma. Ora, não é nada disso que se passa com este Nick Cave: Mercy on Me

Pelo contrário, estamos perante uma obra de qualidade superior. E se é justo dizer que os apreciadores da obra musical e poética de Nick Cave poderão mergulhar com mais fulgor nesta narrativa corajosamente arquitetada por Reinhard Kleist, a verdade é que o livro também vale muito por si. Mesmo que uma pessoa não goste das músicas de Nick Cave ou que, se tal for possível, não conheça nada sobre o músico australiano, é bem provável que, sendo um adepto de boa banda desenhada, muito aprecie esta bela obra.

Nesta biografia, que traça o percurso de Nick Cave desde os seus tempos de criança na Austrália, passando pelos seus primeiros anos de artista, primeiro nos The Birthday Party e depois nos The Bad Seeds, Kleist não nos oferece apenas um conjunto de momentos chave na vida do artista. Ao invés, mergulha com forte ímpeto na vida e na psique do autor. Este é, afinal de contas, um livro pesado, sério e adulto, que nos mostra que lutas Nick Cave teve que travar ao longo do seu percurso. E não só com a sua envolvente mas, de forma interior, consigo mesmo. E essas são sempre as batalhas mais difíceis de travar.

Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist - Minotauro (Almedina)
Nick Cave não foi apenas um músico. Foi um poeta, um romancista e até chegou a ser ator. A sua criação nunca foi "mais do mesmo". O autor tinha muita consciência de que queria ser um artista e marcar as pessoas de alguma forma. E, através de uma busca incessante, por vezes polémica, foi acabando por conseguir ser impactante e original na arte contemporânea. Ainda hoje é considerado um dos nomes maiores no seu género.

A narrativa deste livro não é muito linear - por vezes até é algo caótica - avançando e recuando no tempo. Com efeito, aqui e ali, a leitura torna-se um pouco confusa, reconheço. E soma-se ainda uma outra coisa à narrativa, que o autor já havia feito no livro que dedicou à biografia de Johnny Cash, que são as interpretações visuais, em jeito de "mini-história", que o autor faz das canções do músico. Daquelas que são mais icónicas. Isso é algo que, por vezes, consegue ser maravilhoso e carregado de uma enorme poesia visual e nos faz sorrir perante a capacidade de “contador de histórias” que Nick Cave tem e a capacidade de "intérprete de histórias" que Reinhard Kleist tem.

Ora, se isto pode ser considerado como algo positivo para o livro, também há o reverso da medalha. É que, por vezes, pareceu-me que Kleist se deixa levar em demasia nas suas próprias conjeturas sobre as músicas e o lirismo de Nick Cave. Como se “navegasse em demasia na maionese”, vá. 

É claro que, se Nick Cave tivesse oficializado estas interpretações de Kleist faz como sendo certas, este meu comentário estaria redondamente equivocado. Mas como não foi isso que aconteceu, os leitores que conheçam bem a obra de Nick Cave poderão sempre franzir as sobrancelhas e dizer: “Humm… não foi assim que interpreto essa música”. E será legítimo que o façam. Como, lá está, também é legítimo que Kleist tenha interpretado as músicas à sua maneira. Até porque esta é a sua visão sobre o artista. Mas, claro, será sempre um “pau de dois bicos”. Quanto a mim, adoro algumas das interpretações que Kleist faz – até porque as mesmas são sempre acompanhadas por uma alteração ao nível visual – mas, noutros casos, considero que Kleist divaga um pouco em demasia.

Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist - Minotauro (Almedina)
Em termos gráficos, o livro é sublime. Com um excelente domínio do preto e branco – e do bom aproveitamento do espaço negativo que isso implica – Kleist oferece-nos uma obra que é um mimo para o olhar. A representação física e facial de Nick Cave capta-o de forma exímia e, claro, mesmo as outras personagens que vão aparecendo na história estão todas muito bem representadas.

A planificação é dinâmica e cinematográfica, com cada a página a ter a disposição certa para aquilo que importa passar ao leitor. O livro dedicado a Johnny Cash já é muito bonito, mas não tenho dúvidas de que, visualmente falando, este Mercy on Me ainda o consegue superar, pois temos um Reinhard Kleist mais confiante, inspirado e consciente das suas capacidades de desenho.

Em termos de ilustração, há ainda espaço para algumas variações no estilo de desenho, onde passamos de um registo a preto e branco puro para um estilo onde os cinzentos também marcam presença. Estas variações ocorrem nas partes em que o autor interpreta as músicas. As tais "mini-histórias". Isto vem sublinhar, ainda mais, o forte arsenal de soluções gráficas - e sempre inspiradas – do autor. Um verdadeiro mimo para os olhos!

Quanto à edição da Minotauro, o livro apresenta capa mole baça, com detalhes a verniz e com badanas. O papel é baço e de uma qualidade bastante aceitável, embora me pareça que poderia ser um pouco mais espesso. Tirando esse pormenor, o livro apresenta bom grafismo, boa encadernação e boa impressão. Que estes dois livros de Kleist que a editora portuguesa publicou por cá, sejam apenas o início de uma aposta continuada em banda desenhada de qualidade!

Em suma, Nick Cave: Mercy on Me é uma obra espetacular em diversos níveis e que já merecia estar editada em Portugal há muito tempo! Felizmente apareceu a Minotauro para colmatar essa falha no nosso mercado. Quer na história, intensa e profunda, que nos é dada, quer nas belíssimas ilustrações, este livro é obrigatório!


NOTA FINAL (1/10):
9.4


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Nick Cave: Mercy on Me, de Reinhard Kleist - Minotauro (Almedina)

Ficha técnica
Nick Cave: Mercy on Me
Autor: Reinhard Kleist
Editora: Minotauro
Páginas: 328
Encadernação: Capa mole
Lançamento: Outubro de 2022

2 comentários:

  1. I see a darkness é uma cover feita pelo Johnny Cash... Nunca percebi ao certo porque usaram esse titulo numa bio dele.

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    1. Tens razão, Ricardo. Já me tinham dado essa informação que ainda não corrigi no meu texto. Pois, ainda assim, mesmo sendo uma cover, julgo que este título foi escolhido porque simboliza muito bem a personagem negra e soturna de Johnny Cash. Bem e porque a sua cover da música também foi emblemática.

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