Análise: Os Contos de Miguel Torga: Um Roubo | Natal

Os Contos de Miguel Torga: Um Roubo | Natal, de Jorge Marinho

Foi no ano passado, no Coimbra BD, que dei de caras com este curioso projeto de banda desenhada independente que, cedo, prendeu a minha atenção.

Jorge Marinho é um pintor já com uma vasta experiência, mas que, em matéria de banda desenhada, apenas se estreou no ano passado com esta adaptação dos contos de Miguel Torga. Convém aqui dizer que o autor já confirmou que pretende fazer não só este álbum, mas sim uma coleção de livros com mais adaptações dos contos originais de Miguel Torga para a banda desenhada.

Neste primeiro volume, o autor começou por adaptar os dois contos Um Roubo e Natal.

São duas histórias que nos remetem para uma atmosfera de ruralidade que tanto marcou o Portugal do Estado Novo. Bem, em boa verdade, (re)lendo estes dois contos, até ficamos com a ideia que, pelo menos, parte dessa ruralidade do interior de Portugal ainda se mantém presente nos dias de hoje, já volvidos quase 50 anos desde que o país se abriu ao estrangeiro e a uma cultura mais global.

Tal como é referido no prefácio assinado por A. M. Pires Cabral, os dois contos que este livro nos apresenta até têm algo em comum entre si. Até porque, as duas personagens que protagonizam cada uma das histórias, têm como ponto similar o facto de serem velhos e a viver em condições de miséria.

Em Um Roubo, Faustino assalta a caixa de esmolas da capela de Nossa Senhora da Saúde. Mas uma empreitada que parece fácil acaba por se mostrar mais difícil para Faustino que, no fundo, dará consigo a amaldiçoar a própria igreja. No segundo conto, Natal, acompanhamos o percurso de um pedinte, Garrinchas, que, curiosamente, também busca conforto numa capela para se abrigar de uma tempestuosa, fria e chuvosa noite de natal. Se parece haver uma clara crítica de Miguel Torga à igreja na primeira história, no segundo conto, sente-se a procura por uma tentativa de redenção, já que a igreja também pode ser um porto de abrigo para os dias mais gélidos da vida dos homens e das mulheres.

O texto apresentado nesta adaptação é fielmente transcrito do texto original de Torga, conferindo a esta banda desenhada um certo grau de homenagem e deferência perante a obra de Miguel Torga.

É no cômputo visual que este livro mais brilha, mostrando-nos a bela técnica de ilustração de Jorge Marinho, bem como todo o seu potencial. Utilizando um traço realista, muito riscado e estilizado, num registo a preto e branco puro e com uma planificação muito aberta, onde as ilustrações, quase sempre de grande dimensão, se fundem umas nas outras, pondo de parte a divisão clássica das pranchas em vinhetas, é quase impossível não invocarmos a arte de Sergio Toppi quando lemos esta obra de Jorge Marinho.

De facto, se o virtuosismo técnico dos desenhos, cheios de pormenores e repletos de uma aura épica de Sergio Toppi é algo apreciado por um grande conjunto de leitores, a verdade é que os desenhos de Jorge Marinho, bebendo dessa mesma fonte, também nos conseguem surpreender e encantar ao longo deste livro.

É, pois, tão promissora e vibrante a maneira como Jorge Marinho desenha, que me faz desejar que o autor nos possa dar algo mais do que a adaptação de textos de Miguel Torga. E quando afirmo isto não estou, de forma alguma, a descurar a beleza e relevância cultural dos textos originais do escritor transmontano Miguel Torga. Nada disso! A sua obra é indispensável e merecedora de uma adaptação para banda desenhada. Disso não tenho dúvida. Não obstante, também considero que Jorge Marinho tem talento e “armas” para ir mais longe, desamarrando-se do texto original de Torga e criando uma banda desenhada com um argumento escrito para a mesma e, quiçá, carregado de mais contemporaneidade. É que, estes belos desenhos merecem um texto escrito de propósito para banda desenhada tal como alguns bons argumentos de banda desenhada merecem um desenho tão bom como o de Jorge Marinho.

Em termos de legendagem, convém dizer que é notória a inexperiência do autor. O tipo de letra escolhido não é o mais feliz e a própria dimensão e colocação do texto, bem como das legendas, poderia ter sido feita de forma mais satisfatória.

Mesmo assim, em termos de edição, há que dizer que o livro tem uma apresentação muito agradável, com acabamento em capa dura brilhante e papel brilhante de boa qualidade. A impressão e a encadernação também revelam um bom trabalho. Creio que, em termos de papel, os belos desenhos de Jorge Marinho teriam sido beneficiados se impressos em papel baço.

Em suma, parece-me justo dizer que Jorge Marinho é um autor que todos devemos ter em atenção, já que a sua capacidade para um desenho virtuoso, de claras influências em Sergio Toppi, faz prometer (ainda) melhores bandas desenhadas no futuro. Sejam elas adaptações, ou não, da obra de Miguel Torga.

NOTA FINAL (1/10):

7.0

Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020

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Ficha técnica

Os Contos de Miguel Torga: Um Roubo | Natal

Autor: Jorge Marinho

Editora: Independente (Edição de Autor)

Páginas: 54, a preto e branco

Encadernação: Capa dura

Formato: 30 x 23 cm

Lançamento: Março de 2022

O livro pode ser encomendado, diretamente, através deste e-mail