Começo este texto com uma questão: como é possível que o livro Gentlemind, da autoria de autores consagrados como Juan Díaz Canales (Blacksad e Corto Maltese), Teresa Valero (Contrapaso) ou Antonio Lapone (Greenwich Village) ainda não tenha sido publicado em Portugal? Andarão as editoras portuguesas distraídas ou já estarão os direitos para esta obra assegurados?
Espero que sim, mas é algo de que, infelizmente, não tenho qualquer confirmação. Bem sei que há muita coisa para editar e que as editoras precisam de fazer as suas escolhas com cabeça, tronco e membros. De qualquer maneira, acho que é justo dizer: Gentlemind é um dos melhores livros de banda desenhada que pude ler nos últimos meses.
O argumento é verdadeiramente soberbo, oferecendo-nos uma história de amores e desamores, de sucessos e insucessos numa América em ebulição, em termos económicos e sociais, após o crash da bolsa de 1929, onde os emigrantes porto-riquenhos ocuparam uma importância maior do que aquela que, habitualmente, os livros de história lhes concedem. Mas se o argumento é bom, que dizer das ilustrações de Antonio Lapone que são frescas, originais, estilizadas e verdadeiramente impactantes? Sim, este livro deveria (mesmo) ser editado por cá. Os leitores portugueses de banda desenhada merecem-no.
O livro que tive oportunidade de ler, e que comprei na livraria Cult, é, na verdade, um integral, em castelhano, publicado pela Norma Editorial, que reúne os dois volumes que foram originalmente lançados em separado. São 150 páginas de um argumento bem intrincado e congeminado por Díaz Canales e Teresa Valero.
A história começa por nos apresentar Navit (Gina Majolie) e Arch. Ele é ilustrador e ela é dançarina de cabaret. Eventualmente, os seus caminhos acabarão por separá-los. Estamos em 1939, com a Segunda Guerra Mundial a eclodir na Europa. Nos Estados Unidos o ambiente é outro. São muitos os emigrantes, vindos de todas as partes do mundo, que tentam estabelecer-se nas mais diversas áreas possíveis. Nomeadamente nas artes e no jornalismo. As revistas mantêm uma grande relevância na vida dos americanos, pois são fonte de entretenimento, conhecimento e do contacto dos leitores com as novidades.
Uma dessas revistas é Gentlemind. No seu início, esta até era uma revista de baixa qualidade, mas quando a morte do seu proprietário, Horace Powell, coloca a revista nas mãos da sua jovem viúva, Navit / Gina Majolie, tudo parece mudar para a revista, já que Gina tem grandes planos para a mesma. Começa então uma forte remodelação com o intuito de dar aos leitores, não só os temas que estes procuram, mas, também, produzir conteúdos com cariz artístico, através da publicação de texto ficcional e fotografia e ilustração de autor. Mais do que uma revista de trivialidades, Gina procura que a sua Gentlemind seja um retrato da América do momento, mas também um meio que veicule a criação artística.
Deixem-me dizer-vos que embora Gina tenha passado de dançarina de cabaret a esposa de milionário e, consequentemente, diretora de uma proeminente revista, esta mulher jovem não esquece a história de amor que viveu com Archer Parker. O destino e as opções de vida de cada um afastou-os um do outro, mas os seus percursos ainda se vão cruzar muitas vezes. E atormentá-los até mais não.
Entra também em cena Waldo Trigo, um hábil e inteligente advogado (que não o queria ser, mas que o seu pai o “obrigou” a ser) de Porto Rico, que não só se torna no braço direito de Gina, a vários níveis, como simboliza o retrato da situação dos imigrantes Porto-riquenhos nos Estados Unidos. Os americanos consideravam-nos estrangeiros, por um lado, e os seus conterrâneos consideravam-nos pouco Porto-riquenhos, por outro, contribuindo para que estes imigrantes não se sentissem como pertencentes a lado nenhum.
A revista Gentlemind começa então a ter muito sucesso, rivalizando com a revista Esquire e acompanhando as mudanças político-sociais que vão acontecendo durante 30 anos nos Estados Unidos, a partir da cidade de Nova Iorque.
E, claro, à medida que vamos conhecendo os vários elementos da redação, vamos começando a nutrir um gosto especial pelas suas vidas. No entanto, tal como os acontecimentos deste período histórico, também a vida destas personagens e, especialmente, o seu passado mal resolvido, vai acabar por mudá-las, marcando-as profundamente e, consequentemente, alterando a própria revista Gentlemind. Não necessariamente de um modo positivo.
O fulgor narrativo é muito bem pensado e construído pelos argumentistas, acrescentando vários níveis de interpretação, pois estas não são personagens lineares e isso leva o leitor a moldar a sua perceção das mesmas, à medida que vai lendo o livro. Esta é, afinal de contas, uma autêntica novela (no bom sentido da palavra) em que as paixões, as desilusões amorosas, as traições, os ciúmes, os egos, os orgulhos marcam a forma como a trama se vai movimentando. Por isso, não é de admirar que quando fechamos o livro, fiquemos com pena de deixar estas personagens impactantes. A vontade que dá é recomeçar a ler o livro, garanto-vos.
No final, e pesando tudo aquilo que estas personagens viveram, é difícil não conter uma certa comoção após o magnífico fim do livro. Em termos de argumento, está tudo bem feito, da primeira à última página do álbum.
Se o argumento é exímio, os desenhos com que Antonio Lapone nos brinda, são verdadeiramente sensacionais. Em primeiro lugar, porque são ilustrações muito originais e que não são nada comuns de encontrar em banda desenhada. Lembram os desenhos clássicos dos anos 40 e 50 das publicidades, moda e publicações ilustradas americanas. O que faz, aliás, todo o sentido, visto que estamos perante a história de uma dessas revistas.
Admito que não seja um estilo de desenho que possa agradar a toda a gente. Com formas super estilizadas, com as personagens a apresentarem traços faciais muito geométricos, imagino que nem todos consigam apreciar estes desenhos convenientemente. Mas, quanto a mim, estes são desenhos fabulosos em que Lapone nos enfeitiça ao longo da leitura com todas as suas possibilidades gráficas. Em certos momentos, o estilo de Lapone até me lembrou o igualmente fabuloso trabalho de Darwyn Cooke na série Parker.
O próprio desenho das muitas capas da revista Gentlemind, que vão acompanhando e contando a história, são maravilhosos do ponto de vista estético e gráfico. E isto já para não falar nas belíssimas cores, em aguarela, que dão ainda mais classe e personalidade às belas pranchas que habitam neste livro. Outra coisa onde as ilustrações de Lapone brilham é no facto de conseguirem captar plenamente o espírito e vida de Nova Iorque.
Se há uma única(?) coisa de que me posso queixar neste livro é que como as personagens têm traços simplistas e "cartoonizados", por vezes são confundíveis entre si. Não as personagens principais masculinas, que têm características distintivas mais demarcadas, mas algumas das personagens femininas e/ou secundárias.
A edição da Norma Editorial é de excelente qualidade. Com capa dura brilhante, o livro apresenta papel brilhante de boa qualidade e uma boa impressão e encadernação. Há ainda um prefácio que nos dá uma bela introdução ao período que a América vivia durante a altura em que a história acontece. Nota de destaque para o grande caderno de extras, com 24 páginas, onde podemos observar vários dos esboços e estudos de ambientes e personagens de Antonio Lapone. Uma verdadeira pérola!
Em conclusão, confesso ter sido apanhado de surpresa com este Gentlemind. O nome consagrado dos autores, o tema da história e as ilustrações originais do livro foram as três coisas que me levaram a querer ler este livro. Mesmo assim, posso dizer-vos que estava (bem) longe de encontrar nesta obra um livro de banda desenhada tão bem feito, a todos os níveis, que o tornam único e um livro indispensável para qualquer amante de boa banda desenhada. Esperava algo bom, mas não tão bom!
NOTA FINAL (1/10):
9.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Gentlemind (Integral)
Autores: Juan Díaz Canales, Teresa Valero e Antonio Lapone
Editora: Norma Editorial
Páginas: 176, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 23,5 x 31
Lançamento: Abril de 2022
O que dizer? Comprei este mesmo título no ano passado e não me arrependi. Apenas mostra que já aqui ao lado a curadoria editorial na 9ª Arte não anda a dormir e não só seleciona excelente títulos como se preocupa com a apresentação final do produto. Mas como este há centenas (milhares?) de outros títulos que escapam á conservadora "peneira" das editoras locais e, por arrastamento, aos leitores nacionais. Dommage...
ResponderEliminarLavennder - Giacomo Bevilacqua, se as editoras passarem por aqui, fica a sugestão.
ResponderEliminarJá ando para ler esse Lavennder há bastante tempo. As ilustrações que vi do livro, agradaram-me muito! Obrigado pela sugestão!
Eliminar