sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Análise: Desvio



Desvio, de Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho

Ainda estamos em Agosto, mas acredito que Desvio possa ser a surpresa do ano, no que à produção de banda desenhada nacional, diz respeito. Um autêntico "desvio" para um novo caminho a percorrer na bd portuguesa que estava, até agora, senão virgem, pelo menos parcamente explorado.

Numa altura em que estamos (ainda) a viver as consequências duma nova forma de vida, causada pela Pandemia de COVID-19, este livro pode parecer ainda mais adequado aos dias do presente. No entanto, se a nossa análise for mais profunda, verificaremos que este modo de vida confinado em casa, mantendo relações pessoais que, cada vez mais, se sedimentam através de interações online, já existe há muitos anos, principalmente junto dos jovens da atualidade. Mesmo assim, admito, o lançamento desta obra da Planeta Tangerina, que já nos deu o fantástico e inolvidável Finalmente o Verão, bem como, recentemente, publicou A Época das Rosas, não poderia ter um timing mais adequado.

Desvio
conta-nos a história de um jovem de 18 anos que decide ficar em casa durante o verão, não indo de férias com os seus pais, nem com os seus amigos. Também as coisas com a sua namorada parecem estar frias, tendo em conta a pausa que a mesma lhe pediu. Neste contexto, Miguel tem a casa só para si. E vai ocupando o seu tempo com videojogos, com o livro do Código da Estrada, com as redes sociais e, acima de tudo, com os pensamentos que lhe habitam o ser. Miguel tem em si, um retrato fidedigno dos jovens do nosso tempo, o que revela a capacidade da autora Ana Pessoa para construir e desenvolver uma personagem com que o leitor facilmente se identifica, sem que essa personagem seja, contudo, uma mera representação de lugares comuns. 

A história é abundante em monólogos do protagonista que nos dão a conhecer todas as suas dúvidas, os seus medos, as suas incertezas. Aos poucos, vamos percebendo que, tal como todos nós, em algum momento da nossa adolescência – ou até mesmo, na idade adulta –, Miguel não sabe bem qual caminho seguir. Não sabe o que é que os outros esperam de si. E, mais importante ainda, não sabe o que ele próprio espera de si mesmo. E Desvio toca-nos pela sua forma emocional e pelo vazio, tão cheio de significados, com que nos brinda.

Também importante e extremamente bem conseguido, é que Ana Pessoa não perde tempo a fazer juízos de valor em relação à sociedade atual. O mundo que nos é apresentado, em que os jovens estão rodeados de videojogos, telemóveis, redes sociais e uma mão cheia de nada na sua existência não parece pretender ser, per si, um julgamento ou uma crítica fácil. Ao invés disso, parece querer ser apenas um retrato verossímil do ambiente que nos rodeia. É o mundo como é. Sem moralismos. E sem comiserações. E isso é coisa que revela, a meu ver, uma maturidade de Ana Pessoa enquanto autora. Seria mais fácil partir para uma crítica fácil de caracterizar como negativa, toda esta tecnologia vibrante que envolve as nossas vidas. Mas a autora apenas utilizou essa ambiência para munir a sua história de credibilidade e honestidade.

E há também algo muito bom neste Desvio: o seu ritmo. O domínio desta característica, seja em cinema, seja em banda desenhada, pode arruinar ou imacular uma história que nos é contada. Porque nem sempre o mais importante é o que nos é contado mas, antes, como nos é contado. E um ritmo completamente acertado é o que Desvio nos oferece. Os silêncios, os significados subentendidos, as reflexões a que somos obrigados a recorrer, tudo isso, está feito de forma magnífica, com fluidez e com o tempo narrativo adequado. Seria impossível criar esta história em 50 páginas. Não teria a mesma profundidade e não marcaria o autor da mesma forma. Era necessário um ritmo calmo, com tempo para aprofundar. E felizmente, é isso que nos é dado.

Relevante ainda, é afirmar que Ana Pessoa não nos oferece apenas uma boa história, bem ritmada e com bons objetos de reflexão. Desvio apresenta um cunho literário no texto que, infelizmente, não é muito frequente em banda desenhada. Como diriam os ingleses, há aqui muito material quotable, isto é, frases marcantes que podemos pedir emprestadas ao livro para aplicar nas nossas vidas, nos nossos contextos pessoais. E isso não só é louvável como é, estou seguro, algo que qualquer autor almeja: conseguir escrever algo que possa ser universal. Ana Pessoa tem o dom da palavra e isso só enriquece este livro. 

Mas não é só de palavras que este magnífico livro vive. O trabalho de Bernardo P. Carvalho é igualmente digno de destaque. Com uma ampla experiência em variados projetos e trabalhos de ilustração, Bernando P. Carvalho parece sentir-se como peixe na água a dar imagem às palavras de Ana Pessoa. Aqui, apresenta um estilo de ilustração moderno, jovial e confiante que dá identidade, personalidade e frescura à história que nos é dada. A utilização de cores vivas também torna a obra em algo agradável à vista e que parece ideal para os tempos estivais que vivemos. 

Também a planificação da obra merece menção. Ao longo do livro encontram-se várias páginas que apresentam vinhetas triangulares que, juntas, formam um padrão simétrico, que quase parece o efeito criado em painéis de azulejos, permitindo um resultado muito interessante e original, e que faz com que Desvio também seja um livro bonito em termos de ilustração.

A Planeta Tangerina está de parabéns por esta aposta na banda desenhada tão bem conseguida. Se A Época das Rosas, sendo um dos vencedores do Festival de Banda Desenhada de Angoulême de 2020, tendo recebido 3 prémios, incluindo o Prémio do Público, foi uma sugestão bem-vinda por parte da editora, este Desvio é a grande surpresa da Planeta Tangerina e um livro que todos os amantes de banda desenhada deverão acarinhar. É bom que este género possa emergir na banda desenhada nacional. 

Quanto à edição, em capa mole, apresenta um papel de boa gramagem, adequado para a obra. Como pontos não tão positivos, lamento que a capa não seja dura. Acho que esta obra a mereceria. E também a menção "Recomendado para leitores maiores de 14 anos", na contracapa do livro, me parece um pouco escusada. A meu ver, mais depressa esta menção redutora afasta leitores adultos do que, propriamente, convence leitores jovens – ou os pais dos mesmos – a adquiri-la. Mas isto é apenas a minha opinião. Talvez faça parte duma iniciativa comercial por parte da editora.

Em conclusão, um leitor desatento até poderia dizer "Ah, este Desvio é um bocado entediante". A esse leitor eu diria: "não percebeste aquilo que os autores pretendiam. Não soubeste megulhar nesta obra-prima". Desvio, apresentando-nos o dia-a-dia aparentemente vazio de um jovem, mostra-nos de forma sublime, quão cheia de dúvidas, ambiguidades, incertezas e medo pelo desconhecido, é marcada a vida de um jovem, de quem é sempre esperado tanto, por parte do mundo que o rodeia. 

Desvio pode muito bem ser uma viragem na banda desenhada nacional e a partida para algo novo e inesperado. Um autêntico desvio, portanto. A leitura deste livro arrebatou-me e considero-o, sem pudores, como um dos melhores livros de banda desenhada que a produção nacional já nos deu. Obrigatório.


NOTA FINAL (1/10):

9.1


Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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Ficha técnica
Desvio
Autores: Ana Pessoa e Bernardo P. Carvalho
Editora: Planeta Tangerina
Páginas: 200, a cores
Encadernação: capa mole
Lançamento: Junho de 2020

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