terça-feira, 25 de agosto de 2020

Análise: Operação Overlord (Coleção Completa)



Operação Overlord, de Michaël Le Galli, Bruno Falba, Davide Fabbri e Christian Dalla Vecchia

A Operação Overlord foi a mais recente coleção de banda desenhada lançada pela ASA, em parceria com o jornal Público. Quando o Vinheta 2020 anunciou em primeira mão que a editora portuguesa iria lançar esta série, levantou-se um clima de entusiasmo por parte dos leitores de banda desenhada. Mas, agora que a série chegou ao fim e, depois de cuidadosamente lida, o sentimento é de alguma desilusão perante este lançamento.

A ASA seguiu a fórmula de Airbourne 44, da autoria de Philippe Jarbinet, que foi uma série que a editora lançou em 2017 e que tinha como cenário, os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. Também esta Operação Overlord se passa durante a mesma guerra. Mas ao contrário da primeira coleção, marcada por um desenho de extrema qualidade, munido de um enredo e uma narrativa bem consistentes, Operação Overlord desilude em todas essas vertentes.

E é uma pena, porque a ideia base da série até foi bem congeminada. 

A história desta coleção remete-nos para a grande ofensiva que os Aliados fizeram a partir da Normandia, com o intuito máximo de vencer a Guerra, libertando a Europa do domínio nazi. Foi uma operação de uma magnitude sem precedentes, já que implicava o desembarque de mais de 160.000 soldados em cinco praias do Canal da Mancha. Sendo, portanto, uma operação tão grandiosa em termos de diferentes frentes e acontecimentos que contribuíram para o sucesso das tropas dos Aliados, a série Operação Overlord tenta cobrir os eventos mais importantes que sucederam durante os primeiros dias de Junho de 1944. Assim, entre tomar de assalto a cidade de Sainte-Mère-Église, o desembarque em Omaha Beach, o desmantelamento da bateria de Merville, o assalto a Ouistreham, o assalto a Pointe du Hoc e, finalmente, os acontecimentos vividos por Hitler no Berghof – o seu Refúgio –, esta série tenta dar aos leitores uma visão global desta incrível operação estratégico-militar.

E de certa forma, consegue fazê-lo com sucesso. Os amantes de banda desenhada histórica, de cariz bélico, dificilmente resistirão esta coleção, estou certo.

As narrativas que nos são dadas saltitam entre os relatos históricos e subnarrativas ficcionais que os acompanham. Em cada um dos livros, conhecemos personagens diferentes que nos mostram como pessoas de origens tão díspares acabaram neste enorme cenário de guerra. Estas histórias paralelas têm o objetivo de tornar a leitura mais acessível, para que as páginas dos livros não sejam unicamente marcadas por cenários de guerra. 

Já em termos de arte, a série que é desenhada por Davide Fabbri e Christian Dalla Vecchia, mostra-se muitas vezes audaz, com a utilização de grandes imagens, que impressionam pela magnitude dos acontecimentos retratados. As cores são utilizadas de forma mais moderna e, mesmo sendo esta coleção de estilo franco-belga, a aplicação de cores remete-nos para alguns lançamentos americanos. Por vezes, funcionam perfeitamente. Outras vezes, as mesmas não conseguem colmatar a falta de detalhe de certas ilustrações. 

E isto leva-me àquele que é o grande problema desta coleção: a inconsistência, resultante de uma certa falta de rigor. O que, por conseguinte, leva a que Operação Overlord, em última análise, revele falta de personalidade. E este problema é refletido não só na arte, como no argumento. Se o Tomo 1 anda um pouco aos tropeções em termos narrativos, ora tentando ser um livro histórico, que nos dá informações sobre os factos que aconteceram, ora contando-nos, ao mesmo tempo, as histórias (demasiado) pouco desenvolvidas de 5 soldados americanos; o Tomo 2, Omaha Beach, por oposição, é de longe o melhor da série, apresentando muito mais assertividade no argumento. E a razão para tal, é que Omaha Beach é talvez o livro em que a parte ficcional ficou mais de fora e onde o retrato dos acontecimentos ficou mais bem retratado. 

Estarei, então, a dizer que a parte ficcional não deveria existir? Nem por sombras. Acho, até, que as subnarrativas ficcionais utilizadas para contar acontecimentos históricos, sejam eles bélicos ou não, costumam ser sempre uma mais-valia para que o leitor mergulhe na história e se identifique com os seus protagonistas, que acabam por humanizar e particularizar o indivíduo que vivenciou acontecimentos de grande magnitude. Não obstante, em Operação Overlord, essa utilização de histórias paralelas para emoldurar os acontecimentos históricos, é sempre parcamente explorada pelos argumentistas (Michael Le Galli no primeiro tomo e Bruno Falba nos restantes cinco volumes). E é por esse motivo que o melhor livro da série é o segundo volume. Porque é mais straight to the point, não se perdendo em subnarrativas ocas que pouco acrescentam à narrativa global.

Também em termos de arte visual, a tal inconsistência é clara quando temos desenhos verdadeiramente fascinantes e, se for preciso, na página seguinte, temos um desenho rabiscado meio à pressa, em que as expressões das personagens parecem feitas em cima de um guardanapo de café. Ilustrações onde as cores tentam salvar a arte mas em que um olhar atento, compreende sem grande dificuldade, que aquele desenho foi feito à pressa. Falta o tal rigor. Nos tomos 4 e 5 então, a arte desce ainda mais níveis de qualidade, parecendo até ter sido desenhada por outra pessoa. O que, insisto, parece ser uma manifesta falta de tempo e/ou de inspiração dos autores. 

Um ponto que interessa referir ainda, é que os ilustradores da história não conseguem diferenciar suficientemente bem as suas personagens. São demasiado parecidas entre si, o que leva a uma clara falta de fluidez na leitura, se tivermos em conta que, na maioria das vezes, nos são dadas cenas de ação ou diálogos com personagens vestindo o uniforme de soldado. É algo mais marcante nuns álbuns do que noutros mas, de forma geral, está presente ao longo de toda a série e acaba por ser uma das maiores fraquezas da mesma.

Olhando agora, de forma muito breve, para cada um dos tomos, o volume 1, Sainte-Mère-Église (cuja análise mais detalhada pode ser encontrada aqui) conta-nos a história de como a tomada de assalto da cidade Sainte-Mère-Église era determinante para as aspirações dos Aliados. E vamos acompanhando a história através de cinco soldados, de origens diferentes, que vieram parar a esta guerra, de formas muito distintas entre si. Como já mencionei, essas cinco histórias paralelas são demasiado fugazes e esquecíveis. Teria sido mais benéfico se, em vez das cinco histórias, os autores tivessem optado por uma ou duas subnarrativas e a(s) tivesse(m) explorado mais convenientemente.

O tomo 2, Omaha Beach, é conforme já amplamente sublinhado, o melhor da série. Desta vez, somos remetidos para aquele que será, certamente, o desembarque bélico mais conhecido na história da civilização, em Omaha Beach, que originou igualmente, uma sangrenta batalha entre alemães e americanos, com milhares de mortes. Os autores fazem uma coisa que considero muito positiva, que é mostrarem-nos não só o lado americano, como também o lado alemão, revelando que - expectavelmente! - o comum do cidadão que tinha que se alistar no exército, quase nunca tinha qualquer ódio pelo exército adversário. Em termos narrativos, o livro também faz uma outra coisa muito interessante. É que a primeira parte do mesmo – sensivelmente metade da história – mostra-nos a preparação da operação, revelando-nos dificuldades inerentes a esta empreitada bélica e contextualizando muito bem os acontecimentos. E à semelhança do que, muitas vezes, é feito no cinema, esta demonstração da operação, aumenta o interesse e ansiedade(?) do leitor em relação aos acontecimentos que se avizinham. Depois, quando o desembarque é iniciado, temos ação total em muitas páginas, ora mostrando o lado americano, ora mostrando o lado alemão.

E se o tomo 2 é o mais bem conseguido da série, o terceiro tomo, A Bateria de Merville - que, aliás, tem uma certa continuação narrativa no sexto e último tomo -, apresenta algumas ideias interessantes. Também neste volume concreto, o desenho parece feito com mais cuidado e rigor. Aqui o objetivo militar é o desmantelamento da bateria de Merville, peça fundamental para o exército alemão. Neste caso, a tal utilização de histórias ficcionais, paralelas aos acontecimentos históricos é a mais bem conseguida de toda a série. Não chega a ser perfeita mas é interessante, mudando o cenário dos acontecimentos da guerra para a cidade londrina. Aqui acompanhamos Adrien Bellefontaine, voluntário canadiano e artista nos tempos livres, que se vê forçado a deixar a sua amada em Londres. É aqui que a componente de "romance" mais aparece na série. Embora surja de forma algo vaga e insuficientemente explorada, julgo ser justo admitir que é uma lufada de ar fresco positiva. 

Que infelizmente não é repetida no tomo 4, Comando Kieffer, onde nos é contada a história do único comando francês no desembarque da Normandia. Aqui, quer no argumento, quer na arte, a desinspiração ainda é mais relevante, com uma lamentável desconexão dos autores em relação ao que estão a produzir. Parece um daqueles exemplos em que um álbum já está encomendado pela editora e os autores se limitam a "cumprir calendário". O mais fraco da série.

No tomo 5, Pointe du Hoc, a desinspiração parece em par com o álbum anterior. Também aqui as histórias paralelas recebem pouco esforço narrativo, focando-se o álbum em cenas de ação de guerra que parecem desfilar, perante os olhos do leitor, sem grande fundamento ou (bom) encadeamento. Destaque negativo para as ilustrações que, neste álbum, e um pouco incompreensivelmente, parecem mudar no estilo de traço e na própria aplicação de cores. Não é que sejam desenhos maus… mas são desenhos que revelam inconsistência em relação aos álbuns anteriores. Se tivessem sido outros autores a desenvolver este volume, ainda seria (talvez) compreensível. Assim, parece apenas falta de inspiração. Todavia, também é justo assinalar que, a meu ver, este tomo 5 será aquele que tem a melhor capa. Muito bem conseguida.

Finalmente, o tomo 6, Uma Noite no Berghof, merece destaque pela positiva. Depois de dois volumes pouco inspirados que nos deram mais do mesmo, mas diminuindo (ainda mais) o rigor dos três primeiros álbuns, o sexto e último volume da série consegue, pelo menos, dar-nos algo novo e refrescante do ponto de vista do argumento. Aqui quase que saímos dos cenários de guerra na totalidade, sendo este um álbum muito mais político do que militar. Coloca-nos no Berghof, o refúgio de Adolf Hitler, mostrando-nos como foram vividos estes acontecimentos dos primeiros dias de Junho de 1944 e como, os alemães, e acima de tudo Hitler, acabaram vencidos mais pelo poder estratégico dos Aliados do que, propriamente, pela força militar. Mostrando-nos um Hitler expectavelmente petulante e confiante em si mesmo, este álbum tem o dom de nos revelar um outro lado dos eventos amplamente conhecidos. Mesmo assim, o argumento dá alguns tropeções em si mesmo, ao querer demonstrar de forma por vezes mal explanada, as reações de outros militares de alta patente do exército alemão. Julgo também que o fim, não sendo mau, poderia ter sido mais bem trabalhado de forma a servir de redenção a Operação Overlord.



Acima de tudo, esta é uma série que parece querer fazer mais do que consegue. Dar um passo maior do que a perna. Ao querer ser uma série de eventos ficcionais e, ao mesmo tempo, de carácter histórico, fica algures a meio caminho, denotando dificuldades na construção de um bom argumento e não conseguindo fazer verdadeiramente bem nada daquilo a que se propõe. Mas também não é justo dizer que faz mal tudo aquilo que tenta fazer. Há coisas interessantes, quer na arte, quer nos intuitos do argumento. Infelizmente, o facto de ficar a "meio caminho", deixa-nos com a ideia que esta série é apenas isso: mediana. Não é má mas está longe de ser boa. Diria que é uma banda desenhada recomendada apenas a amantes do género. Esses, certamente apreciarão a série, aceitando as fraquezas da mesma. Para os leitores não tanto do género histórico de guerra, será mesmo o Tomo 2: Omaha Beach aquele que (mais) se recomenda para conhecimento da série.


Nota final do Livro 1 - Sainte-Mère-Église: 7.8
Nota final do Livro 2 - Omaha Beach: 8.5
Nota final do Livro 3 - A Bateria de Merville: 8.3
Nota final do Livro 4 - Comando Kiefer: 6.9
Nota final do Livro 5 - Pointe du Hoc: 7.0
Nota final do Livro 6 - Um Noite no Berghof: 8.2



NOTA FINAL DA SÉRIE (1/10):

7.7




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020 



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Fichas técnicas
Operação Overlord Vol: 1 - Sainte-Mère-Église
Autores: Michaël Le Galli e Davide Fabbri
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores 
Encadernação: capa dura
Lançamento: Julho de 2020

Operação Overlord Vol: 2 - Omaha Beach
Autores: Bruno Falba, Davide Fabbri e Christian Dalla Vecchia
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores 
Encadernação: capa dura
Lançamento: Julho de 2020

Operação Overlord Vol: 3 - A Bateria de Merville
Autores: Bruno Falba e Davide Fabbri 
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores 
Encadernação: capa dura
Lançamento: Julho de 2020

Operação Overlord Vol: 4 - Comando Kieffer
Autores: Bruno Falba e Davide Fabbri
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores 
Encadernação: capa dura
Lançamento: Agosto de 2020

Operação Overlord Vol: 5 - Pointe du Hoc
Autores: Bruno Falba, Davide Fabbri e Christian Dalla Vecchia
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores 
Encadernação: capa dura
Lançamento: Agosto de 2020

Operação Overlord Vol: 6 - Uma Noite no Berghof
Autores: Bruno Falba, Davide Fabbri e Christian Dalla Vecchia
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores 
Encadernação: capa dura
Lançamento: Agosto de 2020

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