segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Análise: Lendas Japonesas

Lendas Japonesas, de José Ruy - Editora Polvo

Lendas Japonesas, de José Ruy - Editora Polvo
Lendas Japonesas, de José Ruy

Pegar neste álbum póstumo de José Ruy, autor essencial da banda desenhada portuguesa, com quem tive a oportunidade e o privilégio de ter uma longa conversa, a propósito da atribuição do Prémio Carreira dos Prémios VINHETAS D’OURO 2021, alguns meses antes do seu falecimento, foi uma experiência bastante emotiva e que, naturalmente, me remeteu para essa bela tarde que passámos juntos.

Na verdade, quando visitei José Ruy na sua residência onde, já depois dos noventa anos de idade, se mantinha extremamente ativo, trabalhando diariamente nas suas bandas desenhadas, fiquei boquiaberto com o amor que o autor demonstrava perante a 9ª Arte. E pela forma como se mantinha dinâmico, tentando modernizar o seu estilo e adaptando-se às técnicas mais atuais. Contou-me como passou a utilizar o photoshop na sua arte ou como passou a habituar-se à utilização de uma mesa de desenho digital. Eu estava maravilhado! E foi com gosto que, naquele momento, até o vi a colorir algumas páginas deste Lendas Japonesas que a editora Polvo lançou há uns meses.

Lendas Japonesas, de José Ruy - Editora Polvo
Como qualquer leitor português de banda desenhada, já vários álbuns do José Ruy passaram por mim. Mesmo assim, acho que sou sincero quando vos digo que Lendas Japonesas pode muito bem ser o culminar, com chave de ouro, de uma vida dedicada à banda desenhada que se explanou por mais de 50 álbuns de banda desenhada. Embora não devamos esquecer, que antes de falecer, José Ruy também trabalhava num segundo álbum, sobre os Templários, que a Polvo pode vir a editar no futuro.

Lendas Japonesas é composto por um conjunto de onze histórias curtas, que se baseiam em algumas das histórias populares da cultura japonesa, e que apareceram referenciadas na obra de Wenceslau de Moraes, autor de vários livros sobre assuntos ligados ao Oriente, em especial ao Japão, onde viveu por cerca de três décadas. Cada uma destas pequenas histórias conta-nos uma parábola, sempre com uma mensagem moral, mergulhando-nos no universo e ambiente oriental do Japão. Mas, lá está, se são histórias ambientadas na cultura japonesa, as suas conclusões e mensagens são universais a qualquer cultura.

Lendas Japonesas, de José Ruy - Editora Polvo
Algumas destas curtas histórias têm mais humor do que outras, umas têm mensagens mais rebuscadas, e outras até apresentam um certo grau de violência. De forma global, são histórias simples, mas carregadas de boas mensagens, que se leem muito bem. O texto utilizado será, por vezes, algo arcaico e ancestral, o que nos remete para a banda desenhada de estilo mais clássico a que o autor nos foi habituando ao longo de uma carreira de muitas décadas.

Salta à vista a forma airosa e, até mesmo, poética como José Ruy narra as histórias, passando um misto de sensações para o leitor e mergulhando-o no universo cultural japonês.

Em termos de ilustrações, temos um José Ruy que se revela em boa forma, oferecendo-nos desenhos que conseguem ter aquela aura do país do sol nascente. Transportar-nos para lá. De resto, os desenhos apresentam o estilo do José Ruy a que já todos nos habituámos e, mesmo sendo verdade que haja um enorme espaço temporal entre algumas das histórias que compõem este Lendas Japonesas – relembro que a conceção da obra durou qualquer coisa como 70 anos! –, esta antologia consegue reunir homogeneidade e harmonia entre todas as histórias que nos oferece. Outra coisa interessante é que, como as histórias frequentemente passam para o cômputo da fantasia, há espaço para que o autor nos apresente algumas figuras mitológicas cativantes do ponto de vista visual, como uma serpente de oito cabeça, duas rãs falantes e outros monstros.

Lendas Japonesas, de José Ruy - Editora Polvo
A planificação também se apresenta bem ao jeito daquilo a que o autor nos habituou noutros livros: em vez de cada página ser composta por três ou quatro tiras de vinhetas, como é mais frequente em banda desenhada, normalmente é construída por duas tiras, apenas. Isto faz com que encontremos mais vinhetas ao alto, estilo portrait, do que no formato horizontal, estilo landscape. Mesmo assim, José Ruy não repete sempre a mesma fórmula e, ao longo do livro, somos surpreendidos várias vezes na vertente da planificação.

Quanto às cores, devo dizer que, encaixando bem no estilo e características da obra, as mesmas apresentam aquele estilo clássico a que associamos à obra do autor. Mesmo assim, estou convencido de que um álbum a preto e branco de José Ruy, poderia funcionar igualmente bem. Se calhar, até melhor.

A edição da Polvo está um autêntico mimo: não só a editora teve a capacidade e engenho de conseguir entusiasmar José Ruy de forma a que ele acabasse esta enorme empreitada com várias décadas de preparação, como, já depois do falecimento do autor, conseguiu reunir todas essas histórias numa excelente edição que tem capa dura baça, bom papel brilhante, boa encadernação e boa impressão. 

O livro reúne ainda um texto de José Ruy que nos explica todas as atribulações com que se deparou na feitura destas Lendas Japonesas e onde nos são mostradas algumas das primeiras pranchas que foram publicadas em 1950 na revista O Papagaio. É-nos dado ainda outro texto sobre um outro projeto do autor – que não chegou a ver a luz do dia – que era o livro Uma Espingarda Portuguesa no Japão. Depois, já no final do livro, para além das notas biográficas de José Ruy e de Wenceslau de Moraes, temos ainda uma pequena história, numa prancha, que procura ser a biografia de Wenceslau de Moraes, assinada por José Ruy. Nota ainda para as lindíssimas guardas do livro que o embelezam e que, quanto a mim, deveriam ser comercializadas em poster. São belíssimas! Em suma, esta é uma das edições do ano e acho que a editora Polvo está de parabéns pelo seu excelente e valioso trabalho nesta obra.

Em jeito de conclusão, Lendas Japonesas é dos livros mais equilibrados e bem conseguidos que tive a oportunidade de ler de José Ruy, um dos autores mais relevantes da banda desenhada portuguesa, que nos deixou, lamentavelmente, no ano passado. E, também por isso, é um livro que se assume como uma ótima forma de celebrar a vida e obra do Mestre José Ruy!


NOTA FINAL (1/10):
7.0



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Lendas Japonesas, de José Ruy - Editora Polvo

Ficha técnica
Lendas Japonesas
Autor: José Ruy
Basedado na obra de Wenceslau de Moraes
Editora: Polvo
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Lançamento: Julho de 2023

6 comentários:

  1. Grata Hugo Pinto, foi com lágrima no olho que li o seu texto.
    Eu como admiradora nº um de José Ruy concordo consigo. Só lastimo imenso que na ficha técnica e no que respeita à capa não esteja mencionado o nome do José Ruy. O original é dele. Era para ser corrigido mas não foi. Não há bela sem senão. Maria Fernanda Pinto



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    1. Cara Maria, muito obrigado pelo seu comentário e partilha! Pois, fe facto, é pena essa questão da ficha técnica. Mas acredito que não belisca a qualidade da obra. Um forte abraço!

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  2. Muito sensibilizada, Hugo Pinto, por este texto de análise de Lendas Japonesas e simultaneamente de homenagem a José Ruy. Uma breve nota para esclarecer que todas as Lendas ora publicadas foram desenhadas em finais de 2020 e primeiros meses de 2021, algumas inéditas e as outras com uma interpretação completamente nova. Continuou a produzir até outubro de 2022. Obrigada. Teresa Pinto

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    1. Cara Teresa, agradeço-lhe pelo seu comentário e nota explicativa sobre o desenho das lendas. Vou corrigir o meu parágrafo que pode dar uma ideia errada sobre a feitura das mesas. Um abraço.

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  3. Pessoalmente, reconheço que o trabalho de cor de José Ruy não é consensual. De qualquer forma, não deve impedir os leitores da descoberta desta obra extraordinária. Sobretudo ao nível da composição (da prancha e da vinheta), é do melhor que a BD portuguesa pode oferecer, exigindo um mestre para apresentar algumas das soluções técnicas aqui reunidas (mesmo se o José Ruy rejeitava sempre o tratamento por mestre). É um livro para ser lido, mas é também um manual técnico para ser revisitado. Num país com outro tipo de mercado, haveria uma "tirage de tête" com tiragem limitada, a preto e branco e, se calhar, em formato A3, que seria um verdadeiro sonho. Neste país que é o nosso, temos esta edição aqui analisada pelo Hugo, que permite o mais importante: manter viva a memória de José Ruy, um dos autores mais importantes da história da banda desenhada portuguesa.
    Abraços,
    Pedro Mota

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    1. Obrigado pelo excelente comentário, Pedro Mota. Um abraço

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