O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante, que passarei a abreviar como O Crocodilo, foi um dos álbuns independentes que, durante o ano passado, recebeu alguma atenção, tendo chegado a conquistar alguns prémios e nomeações. Trata-se de uma história que foi originalmente escrita para peça de teatro e que, depois disso, foi adaptada para banda desenhada. O texto é de Rui Neto e as ilustrações são de Francisco Valle.
A obra chegou mesmo a arrecadar o Prémio Revelação dos Prémios de Banda Desenhada da Amadora do ano passado e, também nos VINHETAS D’OURO 2022, mesmo não tendo vencido o prémio nessa mesma categoria, acabou como sendo uma das quatro obras nomeadas.
A história deste O Crocodilo baseia-se em Krokodil, um conto inacabado de Fiodor Dostoievski, e centra-se na personagem de Ivan que, de forma algo despropositada, acaba por ser engolido por um enorme crocodilo albino. O fantástico é que, embora vá parar à barriga do grande animal, Ivan não sofre qualquer dano, além, claro, da privação da sua liberdade, já que fica cativo, como um prisioneiro, dentro do estômago animal. São então levadas a cabo várias tentativas para retirar Ivan da barriga do enorme crocodilo, mas todas se revelam sem sucesso.
E é neste ponto que assenta a crítica social da obra. São tantas as burocracias e as políticas adjacentes à sociedade dita contemporânea, que acabam por ser elas mesmo que, acima de tudo, fazem com que não seja possível tirar Ivan da barriga do animal. E, mesmo sendo verdade que a origem desta história remonta à Rússia dos tempos de Dostoievski, é curioso verificar que o enredo, as personagens e as situações que O Crocodilo nos oferecem, encaixam que nem uma luva na sociedade atual portuguesa, quer ao nível da envolvente político-económica em que vivemos, quer ao nível do quadro cultural e da forma de pensar tipicamente portuguesas.
Surgem depois várias personagens, como Helena, a noiva de Ivan, que apenas procura satisfazer os seus caprichos consumistas e realizar a sua viagem de sonho à cidade de Paris, e Nicolai que, sendo próximo de Ivan, vive de amores por Helena e tudo fará para a conquistar para si. É, aliás, ele o narrador deste conto.
O Crocodilo é uma história que, por vezes, pode parecer algo exagerada e sem nexo, mas que, no fundo, procura traçar bem o carácter das pessoas que, de uma forma ou de outra, procuram encontrar vantagens para si próprias, mesmo que isso prejudique os outros à sua volta. Como tal, a crítica está bem presente nas personagens que nos são apresentadas, especialmente as que tentam tirar partido da situação em que Ivan se encontra. Como é uma obra muito assente nos diálogos, compreende-se que funcione especialmente bem enquanto peça de teatro. Mesmo assim, há que dizer que também consegue funcionar bem em banda desenhada, mesmo tendo em conta que, nos diálogos, se sente essa teatralidade habitual das peças de teatro.
Rui Neto gere bem os diálogos e a forma – espaço e tempo - como os mesmos são apresentados ao leitor. Não me pareceu que esta adaptação à banda desenhada fosse forçada. Pelo contrário, até acho que funciona bem, com uma noção de tempo e espaço que, se não fosse a forte predominância do diálogo e do cariz satírico da obra – bem comum às peças de teatro –, não nos faria lembrar que foi originalmente concebida como uma obra para a 2ª arte e não para a 9ª arte.
As ilustrações são da autoria de Francisco Valle, que nos oferece desenhos joviais na forma e que conseguem ser apelativos e diversificados, muito embora pudessem ser um pouco menos estáticos, também. Porém, como não há propriamente momentos de ação, acaba por ser algo menos importante e que só se sente mais nos gestos que as personagens vão fazendo enquanto falam umas com as outras.
Por falar nisso, gostei especialmente das expressões faciais das personagens e também é verdade que há várias vinhetas muito bem concebidas, quer em termos de ambiente visual, quer em termos de enquadramento cinematográfico. Noutros casos, o autor também revela alguma inexperiência, com os desenhos a carecerem de uma pós-produção mais convicta, de forma a favorecerem o livro no cômputo visual. Isso também se nota especialmente na aplicação de cores.
Sendo um estilo de desenho algo juvenil no público a que, aparentemente, parece apelar, e sendo a história de cariz mais adulto, talvez não haja a simbiose pretendida entre a história e as ilustrações. Dito por outras palavras, o público mais adulto pode achar as ilustrações demasiado juvenis e o público mais juvenil poderá achar a história demasiado adulta. Todavia – e se calhar por essa mesma razão - é um livro que funciona bem e que consegue trilhar a sua própria identidade.
A edição do livro é feita pela própria Lobo Mau Produções, produtora que também levou a cena a peça homónima, que nos oferece a obra em capa mole, brilhante, com papel brilhante no miolo. Acredito que a escolha por um papel mais baço poderia ter beneficiado as ilustrações de Francisco Valle. A encadernação do livro é aceitável e a impressão é boa. Lamentavelmente, a lombada do livro não traz o nome da obra.
Tal como já referi, recentemente, na análise que fiz a A Little Girl, de André Caetano, a inscrição do título da obra na lombada é extremamente relevante para que o livro possa ser encontrado mais facilmente em loja ou nas estantes de um colecionador de banda desenhada. Mais do que uma opção estética, é uma necessidade técnica.
Em resumo, O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante é um livro interessante e que brilha especialmente por ser uma proposta diferente do habitual, oferecendo-nos uma narrativa que põe a nu a forma oportunista como a sociedade, e cada um de nós, funciona face à desgraça alheia. Uma agradável surpresa.
NOTA FINAL (1/10):
7.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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O Crocodilo ou o Extraordinário Acontecimento Irrelevante
Autores: Rui Neto e Francisco Valle
Editora: Lobo Mau Produções
Páginas: 52, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Abril de 2022
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