quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Análise: Como Flutuam as Pedras

Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita

Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita
Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira

Foi ainda durante o Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, que A Seita lançou o livro Como Flutuam as Pedras que junta, em livro, e pela primeira vez, dois nomes incontornáveis da banda desenhada portuguesa: Pedro Moura e João Sequeira.

Não vos vou mentir (até porque nunca o faço): Como Flutuam as Pedras não é um livro simples, de leitura fácil. É um livro denso, pesado (enquanto objeto-livro, mas também enquanto obra) e que exige do leitor que este mergulhe, de forma bem profunda, na trama que nos é dada.

Há aqui outra coisa relevante: a junção de Pedro Moura – um verdadeiro teórico, de belas palavras caras e eruditas – a João Sequeira – cuja imagética que advém das suas ilustrações é tão abstrata e, também, poderosa – fazem deste duo criativo uma autêntica força nacional da banda desenhada abstrata, profunda, densa que, não sendo para todos, almeja conquistar – e fá-lo com distinção – um público de banda desenhada, quiçá, mais erudito e intelectual. E isto é uma boa nova porque defendo que a criação nacional deverá ser capaz de originar banda desenhada para todos os tipos de público.

Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita
É verdade que se esta história de Pedro Moura fosse desenhada por um outro ilustrador, que não o João Sequeira, poderia ser mais leve e fácil para absorver, tal como também é verdade que se João Sequeira fizesse uma obra que não fosse escrita por Pedro Moura, esta seria mais fácil de interpretar. Mas, mesmo por esse motivo, repito: este duo criativo é quase como uma super-team da banda desenhada nacional intelectual, destinada a um público mais erudito.

Quanto à história arquitetada por Pedro Moura, Como Flutuam as Pedras dá-nos uma viagem da misteriosa protagonista Constança a uma terra aparentemente diferente daquela em que vive. São dois mundos que parecem estar separados por um rio. Ou será uma lagoa? A história está carregada de várias alegorias e elementos simbólicos e místicos, que aumentam o mistério perante os acontecimentos que vamos testemunhando.

No início, nada é claro e Pedro Moura deixa-nos à deriva durante grande parte do livro. Só lá mais para o meio, e a conta-gotas, o autor vai abrindo o véu, mostrando-nos possíveis caminhos para a interpretação do seu construto narrativo. E sim, são possíveis caminhos e dados que o autor nos oferece, cabendo depois ao leitor a tarefa de interpretá-los com base na sua perceção pessoal. É, portanto, um livro de interpretação que, por ventura, será diferente de leitor para leitor. Claro que, de forma mais sintética, podemos dizer que Como Flutuam as Pedras traça o paralelismo entre o mundo dos vivos e dos mortos. E a forma como, aparentemente, são os vivos quem tem as ferramentas para criar pontes entre os dois mundos. Se o fazemos tantas vezes como seria desejável, isso já é uma outra conversa. Mas esta, claro, é a minha interpretação da obra que, volto a dizer, acaba por ser pessoal e, portanto, corre o risco de ser enviesada.

Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita
De resto, sente-se uma própria crítica social a certas desigualdades que existem em qualquer mundo que seja habitado por humanos. Mesmo que seja o universo dos mortos. Não há volta a dar: a ação de criar classes, grupos e estratos, com mais ou menos privilégios, é algo recorrente à nossa espécie.

Se Como Flutuam as Pedras é um livro que é complexo aquando a primeira leitura que dele fazemos, é uma obra que, quando a lemos pela segunda vez, já munidos do conhecimento e reflexão que dela retirámos na primeira leitura, se torna mais vívida e percetível.

E como o texto de Pedro Moura é bem escrito e denso, também as ilustrações de João Sequeira são bem concebidas e densas. Com o seu estilo muito pessoal e original, o autor pinta-nos autênticos quadros expressionistas, sob a forma de vinhetas a preto e branco, que nos levam numa viagem onírica ao mundo imaginado por Pedro Moura.

No seu registo muito pessoal, a que já nos habitou em livros como Tormenta e Lugar Maldito (ambos com argumento de André Oliveira) ou na sua mais recente adaptação do conto de Rui Cardoso Martins, Espelho da Água, João Sequeira oferece-nos belas ilustrações a preto e branco, onde saltam à vista as grossas camadas de tinta preta que, se por um lado, preenchem, por vezes, o espaço de forma quase claustrofóbica, também contribuem para o signature style do autor e, por conseguinte, para a afirmação artística de João Sequeira. São desenhos que, de soslaio, poderão parecer simples, mas que uma observação atenta confirma como complexos, densos e detalhados.

Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita
Quanto a mim, e mesmo admitindo que é uma questão de gosto meramente pessoal, considero que são desenhos que, por serem tão repenicados, acabam por se situar em dois polos: por vezes, acho que são das coisas mais maravilhosas que podemos encontrar. E, dando razão a essa afirmação, há várias ilustrações neste Como Flutuam as Pedras que são de cortar a respiração e que, sinceramente, gostaria de ter emolduradas na minha casa. Por oposição, também há algumas ilustrações que considero demasiado cheias e onde tive que semicerrar os olhos para perceber o que se estava efetivamente a passar. Dito por outras palavras, há casos em que, pelo menos para mim, João Sequeira leva nota 20, mas também há outros desenhos onde sinto que “menos seria mais”.

Não obstante, considero Como Flutuam as Pedras o melhor trabalho do autor, pois parece-me que o mesmo está a desenhar de forma completamente livre e confiante – como fazem os Grandes Artistas. E não ousemos sequer pestanejar: João Sequeira é um dos grandes artistas da banda desenhada portuguesa. E prova-o ainda com mais veemência neste livro quando, lá mais para o meio, e de forma a ilustrar o “mundo dos vivos”, chamemos-lhe assim, utiliza uma técnica diferente de desenho, onde a liquidez típica da aguarela se alastra pelas belas páginas. Ficamos, então, com dois tipos diferentes de ilustração em Como Flutuam as Pedras que trazem mais fluidez e, até, um certo tipo de leveza imagética à obra. Ou menos peso imagético, vá.

Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita
E, para isso, também contribui a opção por lançar um livro em grande formato. As ilustrações de João Sequeira precisavam disso para melhor poderem respirar e para que o autor se pudesse recriar mais em termos de planificação, fazendo bom uso de diversas ferramentas narrativas visuais.

Assim, e olhando para o trabalho de edição, tenho que dar uma palavra de apreço à editora A Seita por ter percecionado o potencial que as ilustrações de João Sequeira teriam para um lançamento em grande formato. O próprio editor José de Freitas fez menção a isso aquando a apresentação do livro em Beja, a que tive o prazer de assistir, referindo que teve que, de certa forma, arriscar para proporcionar este formato maior à obra. É claro que, certamente, este grande formato encareceu o livro, mas, parece-me, também tornou mais valiosa a relevância visual da obra, deixando respirar as cheias ilustrações de João Sequeira. Depois de Como Flutuam as Pedras, estou certo de uma coisa: os próximos livros de João Sequeira merecem ser lançados em grande formato para melhor serem apreciados.

Esta generosa edição, em termos de formato, d’ A Seita também me permite dizer que é bom ver que, cada vez mais, as editoras portuguesas não olham para os autores portugueses como “pequenos autores simpáticos” que merecem ver editados os seus “livrinhos”; mas sim como autores tão relevantes ou capazes como os autores de renome internacional. Isto acaba por ser um trabalho de valorização que, quero acreditar, permitirá que se colham frutos a médio/longo prazo. Para além do formato megalómano, o livro apresenta capa dura baça, bom papel baço, boa encadernação e boa impressão.

Em suma, Como Flutuam as Pedras é um livro complexo e que, quiçá, não será para todos os leitores de banda desenhada, mas que, e apesar disso, nos traz uma excelente reflexão sobre a vida e sobre a morte e o quão ténue é aquilo que separa os vivos dos mortos. A sustentar a história, temos um João Sequeira que, possivelmente, nos oferece nesta obra o seu melhor trabalho de sempre.


NOTA FINAL (1/10):
8.5



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Como Flutuam as Pedras, de Pedro Moura e João Sequeira - A Seita

Ficha técnica
Como Flutuam as Pedras
Autores: Pedro Moura e João Sequeira
Editora: A Seita
Páginas: 160, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 325 mm
Lançamento: Maio de 2023

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