Seguindo firme na publicação em volumes integrais da série Fábulas das Terras Perdidas, a editora Arte de Autor editou recentemente o segundo volume da franquia que reúne o segundo ciclo, composto, respetivamente, pelos quatro tomos Moriganes, Guinea Lord, Fada Sanctus e Sill Valt.
Tal como no ciclo anterior, denominado Sioban, neste Os Cavaleiros do Perdão, voltamos a ser mergulhados num universo sombrio, de fantasia medieval, onde a intriga, a violência e o sobrenatural se entrelaçam de forma natural.
A história inicia-se com a apresentação de uma nova ordem de guerreiros, os tais Cavaleiros do Perdão, cuja presença enigmática marca desde logo o tom da história, que se apresenta pesado, denso e profundamente dramático.
Acompanha a ascensão da personagem de Seamus, um jovem noviço destinado a tornar-se cavaleiro, cuja coragem é reconhecida por uma vidente, apesar de haver também uma profecia sombria a pairar sobre o seu futuro. Ao lado do veterano Sill Valt, Seamus enfrenta as terríveis Moriganes, criaturas que espalham terror e morte, e embarca numa jornada marcada por batalhas sangrentas, amores impossíveis e dilemas pessoais.
Entre sacrifícios, traições e revelações, a obra equilibra o drama humano com a fantasia sombria, culminando numa batalha decisiva que sela o destino de Seamus, de Sill Valt e da fada Sanctus. As personagens apresentam-se complexas e atormentadas por paixões e/ou forças maiores que elas próprias, que se vão depois cruzando num enredo que nunca perde de vista a tensão entre poder e espiritualidade, e entre fé e brutalidade. Os elementos de fantasia que se espraiam por toda a trama, como os monstros, as feiticeiras e vários símbolos arcanos são disso exemplo, surgem como manifestações físicas dos medos e desejos mais obscuros, o que faz com que não sirvam apenas de cenário, mas também para intensificar os dilemas humanos.
O ritmo narrativo acelera e conduz o leitor a uma conclusão que, embora previsível dentro da estrutura clássica que Dufaux utiliza, é poderosa e coerente com a atmosfera construída. Diria que não é nas histórias, propriamente ditas, que o trabalho de Dufaux mais brilha, mas sim no world building, na conceção de um universo que se revela credível, rico e carregado de significados.
Não obstante, é no desenho que esta obra atinge o seu auge. Philippe Delaby dá corpo e alma a este mundo com uma mestria rara. A expressividade dos rostos das personagens é impressionante: cada olhar, cada ruga, cada gesto transmite emoções profundas, desde a fúria incontida até à melancolia mais silenciosa. É difícil que não nos sintamos absorvidos por estas expressões e por estas personagens, que elevam a narrativa a um patamar mais visceral.
E isto já para não falar dos cenários que são outro ponto altíssimo: castelos imponentes, florestas ameaçadoras, vilas miseráveis e campos de batalha cheios de movimento e detalhe. Delaby não poupa esforços em transmitir, de forma incrivelmente detalhada, a dureza e a riqueza do mundo medieval-fantástico que Dufaux imaginou. Há um cuidado quase cinematográfico na composição dos desenhos, que transforma cada página numa experiência visual plena.
As vestes, armaduras e ornamentos são tratados com um detalhe minucioso, refletindo tanto a imponência dos nobres como a degradação dos mais pobres. A autenticidade estética, mesmo num contexto fantástico, é notável e dá uma verosimilhança acrescida ao universo representado. É o tipo de trabalho que faz o leitor perder-se na contemplação de uma única vinheta, tal não é a riqueza gráfica.
Também nas cenas de ação, Delaby atinge uma intensidade notável, com as batalhas a revelarem-se brutais, dinâmicas e cheias de energia, transmitindo a sensação de caos e violência de forma quase palpável. Já nas passagens grotescas ou violentas, o impacto é igualmente forte: não há pudor em mostrar a crueza da dor ou da morte. As criaturas parecem surgir das trevas com uma aura de ameaça constante, enquanto as feiticeiras e entidades sobrenaturais são envolvidas numa sensualidade perturbadora. A paleta de cores, vibrante nos momentos de esplendor e sombria nas passagens mais dramáticas, intensifica ainda mais a experiência visual.
Comparando com Rosinski, cujo trabalho no primeiro ciclo já era impressionante, percebe-se como Delaby conseguiu elevar ainda mais a fasquia. Se Rosinski tinha dado vida a este universo com traços vigorosos, Delaby aperfeiçoa a densidade emocional e estética, fazendo com que esta obra supere a anterior. E se a estrutura narrativa de Dufaux permanece clássica e sem grandes riscos, neste ciclo sente-se um autor mais inspirado, mais maduro, a construir um mundo mais consistente e credível. O resultado é um equilíbrio perfeito entre palavra e imagem, que faz de Os Cavaleiros do Perdão uma obra obrigatória para todos o que são fãs de BD de fantasia.
Este ciclo em concreto assume ainda um valor simbólico do ponto de vista artístico, pois trata-se da transição para o traço de Jérémy no último volume, após a morte de Delaby. Apesar da difícil herança, Jérémy consegue manter a qualidade e a coerência gráfica, garantindo uma conclusão digna para o ciclo.
Em termos de edição, a editora Arte de Autor oferece-nos um livro semelhante em tudo ao primeiro volume: capa dura, com textura suave, e verniz localizado na bela ilustração de capa. No miolo, o livro apresenta bom babel brilhante, boa encadernação e boa impressão. Foram mantidas as ilustrações de capa de cada um dos quatro volumes, o que funciona muito bem. Como conteúdo adicional, há ainda 6 páginas que incluem esboços - um pouco menos do que no volume anterior - e um prefácio à obra por Dufaux, que também nos dá um emocionante texto introdutório do quarto volume do álbum, relembrando Delaby.
Em suma, Os Cavaleiros do Perdão oferece-nos uma bela combinação entre a criatividade e profundidade do universo imaginado por Dufaux e o traço inesquecível de Delaby (com Jérémy a concluir o ciclo com competência), que resulta numa obra de fôlego, capaz de prender o leitor tanto pela intensidade da narrativa como pela beleza visual. É uma série que se lê como uma verdadeira epopeia medieval-fantástica, mas que se contempla também como um objeto artístico de grande valor. Se o primeiro ciclo já era bom, este ainda é melhor!
NOTA FINAL (1/10):
9.2
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Fábulas das Terras Perdidas - Ciclo 2 - Os Cavaleiros do Perdão - Edição Integral
Autores: Jean Dufaux, Delaby e Jérémy
Editora: Arte de Autor
Páginas: 232, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 235 x 310 mm
Lançamento: Abril de 2025
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