Uma das mais recentes novidades no catálogo da editora Escorpião Azul dá pelo nome de Toxic West e é da autoria do português João Gil Soares, de quem a editora já havia publicado o livro Forgoth: A Cidade Esquecida. E posso dizer-vos que são livros bastante diferentes entre si.
Toxic West assume-se como um western pós apocalíptico com uma premissa tão inusitada quanto cativante: depois da extinção da humanidade, os mutantes tentam sobreviver num mundo arrasado pela poluição e pelo legado destrutivo dos humanos. Nesse cenário árido, onde desertos cobertos de lixo funcionam como pano de fundo, já não temos pessoas, mas apenas animais. Acompanhamos Patti Graves, uma guaxinim fora-da-lei, e Sierra Bloom, uma ratazana psíquica, na sua jornada rumo à cidade de Zion. A narrativa propõe, desde o início, uma mistura de aventura, crítica ecológica e humor ácido, estabelecendo o tom para o universo bizarro e caótico em que a ação se desenrola.
Sendo que um dos aspetos mais interessantes da história é o modo como o autor recorre a estereótipos clássicos dos westerns - forasteiros, duelos, caçadores de recompensas, gangues e cidades sem lei, só para mencionar alguns - para depois os distorcer através da lente do (seu) pós-apocalipse. Este "guisado" de elementos resulta num mundo familiar e, ao mesmo tempo, estranho, onde há espaço para que também apareçam soldados robot que são parte do exército controlado pelo vilão, Warden, um tubarão. É neste antagonista especialmente divertido que João Gil Soares introduz um comentário satírico à lógica capitalista, colocando-o como arquétipo de um mafioso que quer expandir os seus negócios a todo o custo.
A dupla de protagonistas, Patti e Sierra, funciona como o fio condutor da narrativa, com a guaxinim a encarnar o espírito do fora-da-lei clássico e Sierra a servir-se dos seus poderes psíquicos. Esta complementaridade entre personagens, por vezes a fazer lembrar o road movie Thelma e Louise, oferece algum espaço para o humor, embora nem sempre isso seja convenientemente explorado pelo autor.
O uso de animais antropomórficos como personagens também se revela uma escolha que acentua esta vertente mais cómica da obra, aproximando-a do universo indie da banda desenhada mais alternativa, ao mesmo tempo que reforça o tom lúdico e satírico da narrativa.
Visualmente, este é um livro com uma personalidade muito própria, que ganha força devido ao estilo de desenho adotado, baseado num traço simples e rápido, pouco detalhado e com uma aura “rough on the edges”, que lhe oferece um caráter mais independente. No meu caso, este tipo de desenho remeteu-me para os desenhos animados da era dourada da Nickelodeon em que séries como Ren & Stimpy, Rugrats, Hey Arnold ou CatDog , só para mencionar algumas, faziam furor. Esse paralelismo é feliz, já que evoca uma nostalgia que pode agradar a leitores mais adultos que cresceram nesse período.
No entanto, e apesar das boas ideias que a obra traz, o desenvolvimento narrativo deixa a desejar em alguns pontos. A sensação é de que o autor se perde, a meio caminho, na própria história. A progressão de eventos, em vez de seguir uma linha coerente, apresenta-se dispersa, deixando o leitor com a impressão de que partes do enredo se diluem num nonsense acidental. E, lá está, até poderia ser um nonsense procurado pelo autor, mas parece-me que não é o caso, pois, apesar dos elementos cómicos da história, há uma tentativa de progressão narrativa linear e clássica. E é nesse ponto que a obra mais peca, quanto a mim. Ou bem que era totalmente nonsense e audaz por isso, ou bem que a sua história era mais bem afinada. Acaba por ficar no meio dos dois caminhos sem conseguir ser especialmente bem sucedida em nenhuma dessas opções.
Outro aspeto problemático está na oscilação entre públicos-alvo. Há momentos em que o livro claramente se dirige a um público infantil, com humor simples, situações caricatas e um ritmo acessível. Contudo, noutras partes, como no pendor mais retro-indepedente visual da obra ou na sua crítica subjacente, parece querer dialogar com um público adulto. Esta indefinição acaba por fragilizar o impacto global da obra: se a intenção era criar uma narrativa madura disfarçada de fábula, o argumento necessitaria de maior solidez e coesão, quanto a mim.
Quanto à edição da Escorpião Azul, o livro apresenta capa mole baça, com detalhes a verniz, e com badanas. O papel é de boa qualidade e a impressão e a encadernação também são boas. No final, há um caderno de extras, com 8 páginas, com ilustrações adicionais. À semelhança do que a editora tem vindo a fazer em edições recentes, as margens das folhas do livro são coloridas a verde, o que dá um aspeto diferenciado e apelativo ao mesmo.
Em suma, Toxic West é uma obra algo irreverente, que chama especialmente a atenção pela originalidade e audácia da sua proposta de nos apresentar um western pós-apocalípico, com personagens antropomorfizadas, numa proposta gráfica bastante crua e, por outro lado, infantil. É uma leitura peculiar e bem-vinda, mas que deixa também a sensação de que, com um maior amadurecimento do argumento, o livro poderia ter alcançado um patamar mais sólido e marcante. É, ainda assim, uma obra que merece atenção, sobretudo de quem aprecia banda desenhada alternativa e universos que arriscam sair do comum.
NOTA FINAL (1/10):
6.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Sem comentários:
Enviar um comentário