Se há bandas desenhadas que são bons convites para trazer para o universo da 9ª arte pessoas que não têm o hábito de ler BD, este Não Eras Tu Quem Eu Esperava, de Fabien Toulmé, recentemente publicado pela ASA, é um ótimo exemplo.
Esta é uma obra autobiográfica que conta a história do nascimento da segunda filha de Fabien Toulmé, Julia, diagnosticada com trissomia 21 (síndrome de Down). O livro começa com o autor a narrar o momento da gravidez da esposa, os exames médicos, a ansiedade e a expectativa da chegada de um filho saudável. Essa expectativa será comum a todos os pais, diria. No entanto, após o parto, Fabien é confrontado com uma realidade inesperada: a filha nasceu com a condição genética da síndrome de Down, que não foi detectada durante a gestação. É a partir deste ponto que o livro se desenrola, mergulhando o leitor num relato íntimo e sincero sobre a aceitação, o medo e o amor entre pai e filha.
Desde as primeiras páginas, torna-se evidente que Toulmé não pretende adoçar a sua experiência perante o leitor. Longe de oferecer um retrato idealizado da vida com uma criança com necessidades especiais, o autor opta por uma abordagem honesta e, por vezes, brutal. Este posicionamento é, quanto a mim, o que torna a obra tão poderosa: ao invés de criar um conto inspirador repleto de superações milagrosas, Fabien tem a coragem suficiente de partilhar as suas dúvidas, as suas revoltas e as suas falhas com uma franqueza desarmante.
O livro é, pois, especialmente belo, não porque camufla a dor, mas porque a reconhece e lhe dá espaço. O autor descreve momentos em que se sente distante da filha, em que se recusa a aceitá-la, e até em que se envergonha por não conseguir amá-la de imediato. Lembro-me que, enquanto lia o livro, o momento em que o autor nos revela que não tinha coragem de dar banho à sua filha me deixou especialmente impactado. Estes sentimentos, que poderiam ser condenáveis se não fossem partilhados com tamanha transparência, revelam a complexidade da experiência da parentalidade perante uma situação inesperada e transformadora. É possível que um público menos vivido ou mais em linha com a (infeliz) nova mentalidade do "politicamente correto" até possa ficar desavindo com a obra. Mas, creio, isso só acontecerá a quem ler o livro à superfície, sem a maturidade que a verdadeira apreensão do mesmo exige.
Ao longo da narrativa, Toulmé revela-se vulnerável. E isso só dá força inspiradora à própria obra. Lembro-me que tive o privilégio de, na passada Feira do Livro de Lisboa, ter participado no painel de apresentação do livro, onde o próprio autor esteve presente, e Fabien Toulmé ter abordado esta questão dizendo que esta opção de um retrato real, sem tentar ser um pai perfeito ou um herói, foi totalmente intencional, pois não era objetivo de Toulmé ser um exemplo idealizado, mas uma voz realista com a qual outros pais se pudessem identificar.
Essa sinceridade é, sem dúvida, um dos maiores trunfos do livro. Um pai que se vê confrontado com um diagnóstico inesperado para um(a) filho(a) que se prepara para nascer pode encontrar nesta obra um espelho das suas angústias, uma validação das emoções que talvez tenha vergonha de admitir. Fabien Toulmé oferece um caminho, não de superação fácil, mas de transformação interior. Não nega o sofrimento, mas mostra como ele pode ser atravessado com coragem e amor. E tudo isto, meus caros, não é assim tão comum de encontrar num objeto artístico, seja uma música, um filme, um quadro, um ensaio, um romance ou, claro, uma banda desenhada.
A estrutura emocional do livro é muito bem construída. O início é fortíssimo e carregado de tensão e assim que Julia nasce, sentimos a frustração e até um certo desespero por parte do autor. Mas, à medida que Toulmé vai conhecendo a filha e se aproximando dela, a narrativa vai ganhando ternura, empatia e uma calma serena. O final, tocante e comovente, mostra uma família que encontrou uma nova forma de ser feliz, diferente da que esperava, mas não menos bela. Daí que embora o título da obra seja "Não Eras Tu Quem Eu Esperava", o seu título mais completo, conforme disso somos testemunha assim que abrimos o livro, será "Não Eras Tu Quem Eu Esperava... Mas Estou Contente Por Teres Vindo".
Se todo este processo de aceitação e aproximação é o ponto alto da obra, outro aspeto relevante é a forma como o autor aborda a trissomia 21. Embora o livro não seja um tratado científico, consegue explicar de maneira acessível o que é esta condição genética, evitando, ainda assim, um tom demasiado didático. A educação do leitor surge pelas conversas com médicos e especialistas, pelos monólogos do autor e, principalmente, pela convivência com Julia, que vai-se mostrando, gradualmente, como uma criança cheia de personalidade.
As ilustrações, com um traço “cartoonesco”, contribuem para tornar a leitura leve, apesar da carga emocional. A estética simples e expressiva remeteu-me bastante, com as devidas diferenças, para o estilo de Guy Delisle, especialmente pela forma como capta as emoções nos gestos e expressões das personagens e pela utilização de uma cor dominante ao longo dos vários capítulos da obra.
A opção por este estilo gráfico acessível também reforça o caráter universal da história. Não estamos perante uma biografia pesada ou sombria, mas sim uma narrativa fluida, que se lê com facilidade mesmo deixando marcas profundas. A leveza visual serve de contraponto ao peso emocional, equilibrando a leitura e permitindo que o leitor prossiga sem se sentir sobrecarregado.
O livro também nos faz refletir sobre as expectativas que projetamos nos nossos filhos antes mesmo de nascerem. O título Não Eras Tu Quem Eu Esperava é profundamente simbólico, pois espelha a decepção inicial do autor que não é tanto com a filha em si, mas com a quebra de uma idealização. Com o desmoronamento de um sonho. No fundo, é uma narrativa sobre como o amor verdadeiro nasce quando deixamos de lado as idealizações e aprendemos a amar quem está realmente diante de nós.
Apesar do tom confessional e das emoções cruas, este é um livro profundamente positivo. A mensagem final é clara: o amor de um pai ou de uma mãe não nasce necessariamente no instante do parto, mas pode crescer aos poucos, superar obstáculos e florescer de forma inesperada e poderosa.
Em termos de edição, o livro apresenta capa mole baça com badanas. No interior, o papel é bom e a encadernação e a impressão também estão bem feitas. Relembrando que no estudo feito pelo Vinheta 2020 a mais de 600 pessoas, há coisa de três anos, este livro ocupou o TOP 15 dos livros mais desejados pelos leitores portugueses, é sempre bom ver que as editoras não "dormem" e estão atentas às apetências do mercado nacional. Sim, o livro chegou-nos com mais de 10 anos de atraso, mas chegou. E isso, no fim de contas, é o mais importante.
Em suma, Fabien Toulmé oferece-nos com este Não Eras Tu Quem Eu Esperava um livro comovente e necessário. Um testemunho corajoso, que educa, emociona e provoca reflexão. É uma leitura essencial para pais, educadores e todos aqueles que acreditam que o amor, mesmo nas vezes em que não vem no formato esperado, é capaz de transformar vidas. Uma verdadeira pérola da banda desenhada e uma ótima entrada para quem não lê BD.
NOTA FINAL (1/10):
9.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Não Eras Tu Quem Eu Esperava
Autor: Fabien Toulmé
Editora: ASA
Páginas: 256, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 240 x 173 mm
Lançamento: Maio de 2025
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