terça-feira, 8 de julho de 2025

Entrevista a Kim: "Já não são os típicos fãs de cowboys ou super-heróis que vêm ter comigo. O romance gráfico tem ganhado terreno e já vende muito bem."



Recentemente, a propósito da vinda ao Maia BD do autor espanhol Kim, tive a oportunidade de ter uma longa conversa com ele!

Kim já tem quatro obras editadas em Portugal, todas pela editora Levoir, que, passando a mencionar, são A Arte de Voar, Asa Quebrada - estas duas com argumento de Antonio Altarriba - Neve nos Bolsos e o mais recente Fouché, o Génio Tenebroso

E foi a propósito desta última obra, mas não só, que pude ter uma conversa muito interessante com o autor. Para tal, tenho que agradecer publicamente a Silvia Reig, responsável da editora, que teve a amabilidade de me endereçar o convite para uma longa conversa com Kim. 

Foi um prazer e acho que o resultado deste diálogo foi bastante interessante, como podem ler mais abaixo.





Entrevista com Kim


Queria começar por falar do teu percurso profissional. Quando é que decidiste que ias ser autor de banda desenhada? Foi um percurso académico que te levou até aí ou nem por isso? 

Não, não foi. Eu gostava de banda desenhada, mas nunca me atrevia a tentar fazê-la. Pintava. Estudei Belas Artes, mas não terminei o curso. Aconteceu que um amigo me ligou um dia a dizer que estavam a organizar uma revista de música rock - uma revista muito bem feita, em bom papel - e em Espanha, nessa altura, havia poucas coisas assim. Estávamos nos anos 70 e Franco ainda não tinha morrido. Eu conhecia um pouco os autores underground americanos, e disse a esses meus amigos que talvez pudéssemos fazer algo assim. Que poderíamos tentar. Passados uns anos, o Franco morre e tudo muda. Começam então a aparecer revistas por todo o lado. E todos me ligavam, porque a revista em que eu colaborava era muito boa, era muito bem feita, e todos gostavam dos desenhos... Bem, no fim, eu não podia dizer que sim a todos, mas acabei por ficar com uns amigos e fizemos uma revista de humor.


Referes-te à revista El Jueves?

Sim, a El Jueves, que durou 50 anos. E ainda existe.


O início da tua carreira em banda desenhada é marcado pelas histórias curtas, mas a primeira obra de grande fôlego é com o António Altarriba em A Arte de Voar. Como é que nasceu este projeto? Vocês já se conheciam ou foi o António que te procurou?

Foi uma coisa casual... Bem, para mim foi casual. O Altarriba queria escrever a história do pai. Tentou em formato romance, mas não gostou.


Ah, como livro em prosa? Não sabia.

Sim. Queria escrever um livro porque pensava que a BD talvez não fosse suficientemente séria para tratar um tema desses. Mas depois pensou: “Porque não?” E decidiu fazer em BD. E contactou-me. Eu não o conhecia de lado nenhum. Ele vivia no País Basco, eu em Barcelona. Disse-me: “Pensei em ti para fazer este livro.” Explicou-me que era a história do seu pai, que se suicidou, uma história muito dramática... E eu ouvia e pensava: “Este tipo sabe que eu faço humor? Porque é que me está a oferecer este projeto?” Disse-lhe: “Sabes que eu faço humor, não sabes?” E ele respondeu-me: “Claro que sei. Mas eu conheço o teu trabalho e as tuas capacidades". Percebi então que era algo sério e gostei que alguém se tivesse lembrado de mim para uma coisa assim. Disse-lhe: “Vamos fazer uns testes.” Fiz uns desenhos, ele veio a Barcelona, o editor também, e concordámos em avançar.


E quanto tempo demorou o processo?

Quatro anos. Porque nessa altura eu tinha muito trabalho na El Jueves: fazia a capa, a minha personagem, cartazes... Disse-lhes: “Eu faço, mas com calma. Sem pressas.” E saiu assim. Tanto ele como eu pensávamos que seria um livro muito de nicho.


De nicho? Porquê?

Porque era um livro muito forte... Lembro-me que, quando saiu, fui à Fnac em Barcelona e não o vi. Perguntei por ele e disseram-me: “Ah sim, já chegou. Está ali.” E estava lá numa pilha de livros. Lembro-me de pensar: “Ui, não se vai vender nada.”


Mas acabou por ser um sucesso, tanto da crítica como do público. Um livro muito respeitado. 

Sim. E os jornais começaram a falar dele. E nessa altura, os jornais não falavam de BD, mas o El País começou a comentar. E eu liguei ao Altarriba e perguntei-lhe: “Quem publicou este artigo é teu amigo, não é?" E ele respondeu-me: “Não, não os conheço.”


E daí até Asa Quebrada, que é a história da mãe do António Altarriba, foi um passo fácil, depois do sucesso do primeiro livro?

Sim, porque fomos muito a França, e também a Espanha, para promover o livro. E perguntavam sempre ao Altarriba: “E a tua mãe? E a história dela?” E ele ficou a pensar nisso. Passado um tempo, disse-me que tinha que fazer algo sobre a sua mãe, pois sentia remorsos. E eu perguntei: “Mas a tua mãe tem uma história que dê para fazer um livro?” E ele: “Sim, sim. Foi criada doméstica...” E fizemos o livro. Eu gosto muito do Asa Quebrada, porque a história militar é real. No final, acaba de uma forma um pouco mais romântica, mas é um livro de que gosto muito.


Na minha perspetiva, os dois livros têm uma componente política e histórica, mas também muito pessoal. Por isso, pergunto: foi difícil retratar graficamente essa carga emocional, estando mais habituado a fazer outro tipo de histórias?

Ao fazer A Arte de Voar, havia desenhos de que gostava e outros que não. Então, em Asa Quebrada, tentei trabalhar de forma mais profissional. Eu não estava muito habituado a este tipo de trabalho. O guião do A Arte de Voar chegou-me inteiro. E eu pensei: “Meu Deus, onde me fui meter?” E comecei a desenhar sem o ler. Nunca o li por inteiro, fui lendo aos poucos. Quando contei isso ao Altarriba, ele respondeu: “Mas como é que consegues trabalhar sem ler tudo?” E eu disse-lhe que lia quatro páginas de cada vez e que depois deixava que isso inspirasse os meus desenhos. E agora sei que ele manda 10 páginas, de cada vez, aos desenhadores. É muito melhor para o desenhador não ler toda a história, porque se não gostares... pensas logo que não vai funcionar.


Depois destes dois livros fazes também A Neve nos Bolsos, também editado pela Levoir, e essa é uma história diferente, mais autobiográfica. Aqui, escreveste o argumento e fizeste os desenhos. Como surgiu a ideia? 

Nunca tinha pensado fazer uma história minha. Foi uma coisa quase mágica, um feitiço. Estava em Angoulême e ao meu lado sentou-se um rapaz alemão. Começámos a conversar e eu disse: “Morei um ano na Alemanha.” Ele perguntou-me onde tinha morado e eu respondi-lhe “Em Reinfeld.” Disse-me que era um lugar horrível, pois nunca há sol, só há fábricas e neve todo o inverno. Eu disse-lhe que tinha lá estado a trabalhar. Ele ficou espantado e disse: “Tens de fazer uma novela gráfica sobre isso, então!”. Nunca me tinha ocorrido, mas ele insistiu. Depois, chego a Barcelona, e a secretária da El Jueves diz-me que tinha ligado um senhor a perguntar se eu era o Kim que esteve na Alemanha nos anos 60. Esse senhor referiu que era meu amigo e deixou o seu número. Liguei de volta e percebi que era um amigo de Pamplona, muito próximo. Tínhamos estado 50 anos sem falar. E pensei: “Isto são os astros a alinharem-se.”


Pensaste: “tenho mesmo de fazer este livro!”

Sim! Tinha muitos blocos de desenho. Não tinha nada escrito. Mas com os desenhos fui-me lembrando de tudo o que lá vivi. E é incrível, porque tinha esquecido completamente aquela época. Era uma história trancada numa gaveta que nem os meus amigos conheciam. Quando comecei a puxar o fio, tudo voltou... a memória é incrível!


Foi difícil expor esse lado mais íntimo, mais pessoal? Porque é uma história dura também...

Sim, é dura, mas diferente das outras duas que fiz com o Antonio altarriba. O Altarriba passou muito mal. Os pais eram analfabetos, acho. O meu pai era médico. Muito diferente. O Altarriba teve uma juventude dura para chegar à universidade. Eu fui à universidade e não acabei por vontade própria. Acho que o meu livro tem algo mais alegre, que os do Altarriba não têm. E ele próprio mo disse: “És anarquista, mas és um homem feliz.”


E agora estamos perante Fouché, O Génio Tenebroso, o teu mais recente livro, que é agora lançado pela Levoir em Portugal. Como surgiu a ideia para este livro?

O Fouché surgiu de uma forma peculiar. Eu estava na minha casa no campo, a 100 km de Barcelona, quando disseram na televisão: “Estamos em pandemia e vamos estar confinados 15 dias". Lembro-me de ter pensado: “15 dias enterrado aqui? Pode ser divertido.” Nessa altura, eu estava a ler um livro do meu pai, editado nos anos 40, de Stefan Zweig. Gostei tanto do livro que, quando acabei, pensei: “Isto dava uma excelente novela gráfica.” E como o confinamento tinha sido aumentado para mais 15 dias... comecei a desenhar.


É a tua primeira adaptação de um romance para BD, pois, no caso dos livros com o Altarriba era diferente, porque já havia um guião pensado para BD. Já o Neve nos Bolsos partiu de uma experiência e texto pessoal. Como foi adaptar um livro já existente?

Sim, foi diferente daquilo que eu já tinha feito. Como tinha gostado muito do livro, comecei a sublinhar frases para usar na adaptação para BD, pensando: "Isto funciona, é fácil." Comecei a desenhar, sem dizer nada a ninguém. Mas tinha de pôr muito texto em cada vinheta. Não gosto muito disso. E a partir de Napoleão, tudo muda. Há 20 batalhas por página. Foi nessa altura que percebi que não podia pôr tudo no meu livro. Teria de resumir. A partir dessa parte de Napoleão foi difícil sintetizar a história, mas diverti-me e acredito que ultrapassei bem essa fase.


E como é uma obra mais histórica, tiveste de pesquisar sobre uniformes, roupas e armamento?

Claro. Mas hoje, com o computador, encontra-se tudo. Também vi filmes sobre Napoleão. O problema é que o desenho tinha de ser pequeno. E eu gosto de trabalhar em grande. Mas depois havia muito texto... Mesmo assim, muita gente me disse que tinha adorado, pois, como tem tanto texto, demora-se dois dias a ler. Uma BD normal lê-se em duas ou três horas. Esta, não.


Achas que a figura de Fouché está esquecida na história?

Em França todos o conhecem. Em Espanha, ninguém. Ele começou a espionagem política. Sabia tudo sobre todas as famílias. Pagava a criadas, a espiões, a polícias. Fouché conhecia tudo sobre os ricos e, para tal, criou uma rede como o americano do FBI, J. Edgar Hoover, haveria de fazer mais tarde.


E a recepção ao livro em Espanha foi positiva?

Sim, sim. Muito positiva. Já está na segunda edição e até estive na televisão espanhola a falar sobre o livro.


Falando agora sobre o mercado de banda desenhada: como está a banda desenhada em Espanha? Consideras que, hoje em dia, o autor espanhol de BD é mais respeitado, tem mais aceitação pelo público e maior reconhecimento profissional? 

Houve uma grande mudança que me deixou surpreendido. E aconteceu de forma muito rápida. Antes, na El Jueves,  íamos ao Salón del Cómic e vinham muitas pessoas, mas sobretudo jovens rapazes… Mas, por exemplo, na Feira de Madrid apercebi-me de algo: A Arte de Voar e A Neve nos Bolsos, continuam a vender-se, e sou abordado por pessoas muito diferentes. Pode ser, por exemplo, um arquiteto, adulto, que gostou muito do meu trabalho. E durante muitos anos isto não acontecia em Espanha. Já não são os típicos fãs de cowboys ou super-heróis que vêm ter comigo. O romance gráfico tem ganhado terreno e já vende muito bem.


Tens alguns autores de banda desenhada que sejam referências para ti?

Bom, tenho uma certa idade - sou mesmo velho - mas gostava dos comics americanos dos anos 40 e 50.  Flash Gordon, Príncipe Valente… esses eram os meus favoritos. Hoje em dia há muitos autores de que gosto, mas não quero ver mais BD, porque há tanta gente boa que fico quase doente (risos).


(risos) Projetos futuros, novos livros, tens alguma novidade preparada ou a ser preparada?

Bem, neste momento, tenho um livro acabado. Há uns anos, encontrei um diário de uma jovem mulher num mercado de velharias, em Barcelona. Custou dois euros. Gostei da letra desta jovem de 18 anos. Mas foi quando li o diário que fiquei sem palavras: é uma história de amor terrível entre esta jovem e um homem casado, durante a Guerra Civil Espanhola. Não sabia a data em que o diário tinha sido escrito e até pensava que fosse dos anos 70, mas de repente a autora menciona a guerra, e percebi que se tratava da Guerra Civil Espanhola. Encontrei este diário há 10 anos e reli-o várias vezes. Todas as raparigas que vêm cá a casa leem-no e todas elas choram com o diário. O livro é constituído por páginas de diário e desenho. Assim, o diário procura ser fiel ao que ela escreveu, enquanto vou fazendo os desenhos, embora haja muitas partes românticas que não consigo representar.



Conseguiste encontrar mais informações sobre essa mulher?
Sim, comecei a investigar e acho que ela me estava a empurrar para contar a sua história. Descobri onde viveu, numa casa muito bonita, numa rua importante de Barcelona. Alguns amigos e colegas pesquisaram na internet - eu não sou bom nisso - e encontraram mais informações. Acabei por falar com uma senhora que conheceu esta mulher e que queria ler o diário, pois tinha sido amiga dela durante esse período. Na altura, essa amiga não sabia nada do caso desta mulher com este homem casado. É uma história muito longa e complicada. A grande pergunta é se o que fiz neste livro consegue transmitir tudo isto. Já o terminei e sai em Outubro em Espanha. E a última coisa que descobri recentemente é que uma amiga me disse que encontrou o seu túmulo.


Eu acho que ainda vai haver um segundo livro! (risos)
(risos) Não, não. Apenas pensei em terminar o processo com a visita ao seu túmulo. Fica em Barcelona, no Montjuïc. É um mausoléu da família Meyer. Gostava de ir ver a tumba.


E a Levoir vai editar este livro em Portugal?

Talvez. Está apalavrado, mas ainda está a ser negociado. Mas agora é esperar para ver o que acontece. Não sei se este livro vai resultar, sabes? Não sei. Mas espero que resulte, claro.




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