quarta-feira, 2 de julho de 2025

Análise: Danificada

Danificada, de M.L. Vieira - Iguana - Penguin Random House

Danificada, de M.L. Vieira - Iguana - Penguin Random House
Danificada, de M.L. Vieira

Uma das mais recentes apostas da Iguana, uma chancela do grupo editorial Penguin Random House, foi este Danificada, que hoje vos trago, que marca a estreia em livro (de grande fôlego) de M.L. Vieira.

Trata-se de uma história distópica, com um forte cunho social, que nos faz parar um pouco para pensar.

E há que dizer que Danificada se apresenta como uma estreia corajosa e singular no panorama da banda desenhada portuguesa, aliando a estética visual à ficção científica num registo distópico futurista que remete, inevitavelmente, para clássicos como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Ou também poderia ser um episódio da série da Netflix Black Mirror.

Ambientado numa fábrica do futuro onde clones femininas, numeradas e despersonalizadas, trabalham arduamente, este é um livro que oferece uma crítica subtil – mas pertinente – sobre o apagamento da individualidade num mundo (cada vez mais) automatizado e impessoal.

Danificada, de M.L. Vieira - Iguana - Penguin Random House
A protagonista, cujo nome é 2518, funciona como ponto de ruptura neste sistema fechado e desumanizado em que vive juntamente com tantas outras clones iguais a si mesma. Mas mesmo sendo, aparentemente, igual a todas as outras, 2518 começa a ter a sua própria individualidade e a ganhar consciência de si mesma, da sua diferença, da sua singularidade e do mundo que a rodeia. Porém, e como em qualquer regime totalitário que se preze, não há espaço para o livre pensamento. E assim que 2518 começa a sonhar com a liberdade, com um sentido de propósito e identidade, desencadeia uma série de eventos que perturbam a lógica fria e maquinal do universo em que vive. Esta rutura interior, por mais ténue que seja, ganha relevo num mundo onde o sonho é uma anomalia e a introspeção é uma ameaça ao equilíbrio imposto.

Se, dito assim, o interesse da obra se mantém nos píncaros, devo dizer que, infelizmente, a execução da boa ideia apresenta algumas fragilidades, pois ainda que o universo e tema de Danificada sejam bem moldados, a trama, propriamente dita, parece depois cair em demasiados lugares comuns, oferecendo personagens pouco desenvolvidas. Se os eventos vividos por 2518 fossem mais rentabilizados em termos narrativos, talvez estivéssemos perante uma obra mais marcante. Continua a ser uma obra bem-vinda, um bom cartão de apresentação de M.L. Vieira, mas abstém-se de ser mais impactante para o leitor. O que é uma pena. A narrativa, embora envolvente, deixa algumas pontas soltas que poderiam ter sido mais bem exploradas. Existem momentos em que os diálogos parecem não fazer a história avançar nem recuar, tornando certas passagens redundantes ou excessivamente vagas. Essa indefinição acaba por comprometer, em parte, o impacto dramático da obra.

Danificada, de M.L. Vieira - Iguana - Penguin Random House
Mesmo assim, o facto de o discurso narrativo nos ser dado na primeira pessoa, funciona bem para que o leitor crie mais facilmente uma experiência direta com a protagonista. E embora sendo um texto simples, há alguns momentos mais líricos na forma como o pensamento da personagem está estruturado, que contrastam com o ambiente cinzento e mecânico da narrativa. Essa oposição entre forma e conteúdo contribui para o tom melancólico da obra, conferindo-lhe alguma profundidade.

Outra questão que aparenta ser interessante, reside na opção pela escolha de clones femininas como força operária, que pode acentuar a dimensão simbólica da obra de trazer uma crítica implícita às normas de género, à exploração do corpo feminino e à homogeneização imposta às mulheres na sociedade contemporânea. 

A uniformização não é apenas física - é também mental, emocional e social. Ou, pelo menos, foi essa a leitura que fiz.

Danificada, de M.L. Vieira - Iguana - Penguin Random House
Do ponto de vista do desenho, o trabalho da autora apresenta-se intermitente. Agradou-me especialmente a conceção da protagonista e reconheço que há algumas páginas/vinhetas no livro que, visualmente falando, são belas e onde a inspiração estética contribui para a imersão no mundo da narrativa. Noutras páginas, porém, nota-se uma abordagem mais arcaica e simplificada, que quebra o ritmo visual e diminui o efeito emocional de algumas cenas-chave. Talvez um maior equilíbrio entre os estilos e uma revisão de composição ajudassem a manter a coesão visual da obra.

A edição do livro por parte da Iguana apresenta-se em capa dura baça, com bom papel baço no interior e um bom trabalho ao nível da encadernação e impressão. Apesar destes bons apontamentos, há algo bastante negativo no trabalho de edição deste livro que tem que ser referido: a sua legendagem que, infelizmente, está bastante mal trabalhada. Tanto o tipo de letra utilizado - completamente desajustado - quer a balonagem amadora comprometem a legibilidade e distraem o leitor da história. Numa obra em que o conteúdo e a forma precisam de caminhar lado a lado, estes elementos tornam-se demasiado dissonantes, tirando força à leitura e empobrecendo a experiência estética. O que é uma pena. E relembro que até me considero uma pessoa benevolente em relação ao tema da legendagem. Para eu falar da legendagem... é porque há algo de grave na mesma. Caso contrário, costumo "deixar passar". Mas, neste caso, não há como não o assinalar negativamente.

Em suma, Danificada é uma obra promissora sobre resistência, identidade e liberdade. Não obstante, apresenta várias fragilidades que a impedem de ser mais positivamente impactante. Seja como for, a autora portuguesa M.L. Vieira estreia-se com coragem e sensibilidade, e é com expectativa que se aguardam futuras obras suas, talvez mais depuradas, mas igualmente ousadas. 


NOTA FINAL (1/10):
6.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020



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Danificada, de M.L. Vieira - Iguana - Penguin Random House

Ficha técnica
Danificada
Autora: M.L. Vieira
Editora: Iguana
Páginas: 88, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Maio de 2025

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