Depois de O Burlão nas Índias, de Alain Ayroles e Juanjo Guarnido, ter-me conquistado ao mais alto nível, numa obra que considero, sem problema algum, "perfeita", devo dizer que estava ansioso para mergulhar nesta mini-série, intitulada A Sombra das Luzes e projetada para 3 volumes, dos quais a Ala dos Livros editou recentemente o primeiro deles, O Inimigo do Género Humano. Desta feita, Alain Ayroles faz-se acompanhar por Richard Guérineau nas ilustrações.
A Sombra das Luzes é uma obra ambiciosa que procura recriar o século XVIII com elegância, sátira e decadência moral, seguindo a tradição epistolar de obras como Ligações Perigosas, de Pierre Choderlos de Laclos. A narrativa é, portanto, construída através de uma teia de cartas escritas pelo cavaleiro de Saint-Sauveur e por diversas figuras do seu círculo social, o que nos permite acompanhar de forma indireta a ascensão social e as manobras traiçoeiras de um autêntico libertino que visa brilhar na corte do rei Luís XIV.
À semelhança do clássico da literatura já mencionado de Choderlos de Laclos, esta obra apresenta-se como um jogo de máscaras e manipulações, em que a linguagem requintada contrasta com as ações praticadas pelas várias personagens, em particular por Saint-Sauveur. Este, procura aproximar-se de uma mulher casada, Eunice de Clairefont, sendo movido pela sua vaidade, pelo seu orgulho e, claro, por um enorme desejo de ascensão social. A sua crueldade é disfarçada pelo charme e inteligência da sua máscara social, e isso torna-o uma figura fascinante e abjeta ao mesmo tempo. O argumento de Ayroles tem pois essa crítica face ao vício dos indivíduos e das instituições, em especial da sociedade aristocrática, embora também haja, naturalmente, uma clara ponte entre a sociedade retratada e a sociedade atual. Algo que é bem-vindo.
Confesso que iniciei a leitura com grande entusiasmo. O livro evocava-me o classicismo romântico de obras como Sambre, de Yslaire, da qual sou grande admirador. A expectativa era alta, e esperava mergulhar num drama profundo e rico em intrigas. No entanto, tenho que admitir que à medida que avançava pelas páginas deste A Sombra das Luzes, o meu entusiasmo foi perdendo força. O que encontrei foi uma obra que, embora bem escrita e visualmente apelativa, se perde um pouco nesta forma de contar a história por cartas, parecendo excessivamente preocupada em preparar terreno para algo que ainda não se concretiza neste primeiro volume. O que, bem vistas as coisas, até pode trazer bons frutos nos dois álbuns futuros da série, embora, pelo menos por agora, isso fragilize este primeiro tomo.
Esta forma narrativa epistolar, que até poderia ser um recurso engenhoso para criar tensão e revelar os meandros da manipulação social, acaba por se tornar, na prática, um obstáculo. A alternância constante de vozes, nem sempre bem assinalada, nas cartas que nos são dadas a conhecer, obriga-nos a retroceder com frequência na leitura para perceber quem escreve a quem e com que intenção. Isso retira fluidez à leitura e prejudica a imersão. Torna-se uma leitura excessivamente - e desnecessariamente! - complexa. As cartas sucedem-se com pouco impacto direto na ação, deixando muitas pontas soltas... talvez de forma propositada - a ver vamos -, mas de forma algo frustrante.
Ayroles apresenta talento enquanto argumentista, claro, mas não atinge ainda, neste primeiro tomo, a mesma sofisticação narrativa que revela, por exemplo, em O Burlão nas Índias, que já mencionei. Falta aqui um ritmo mais bem calibrado entre mistério, revelação e progressão dramática. O que recebemos são fragmentos promissores, mas pouco consolidados. Portanto, não há dúvidas de que o impacto emocional, por agora, fica aquém do potencial que o enredo sugere.
No entanto, não se pode ignorar a qualidade visual do álbum. O desenho de Richard Guérineau é minucioso, elegante e perfeitamente adequado à época retratada. As indumentárias, os cenários aristocráticos, os salões, as carruagens e os gestos da corte são retratados com enorme atenção ao detalhe. Guérineau consegue transmitir aquele charme francês típico do século XVIII, com uma composição visual que nos remete imediatamente para esse mundo de verniz social e podridão moral escondida por detrás do luxo. E, ao mesmo tempo, e apesar desse classicismo, o traço até tem alguma simplicidade e modernidade. Em várias páginas, a beleza estética dos desenhos compensa as dificuldades de leitura, e isso diz muito sobre o trabalho de Guérineau enquanto ilustrador desta intriga.
É importante sublinhar que este é apenas o primeiro tomo de uma trilogia, e tudo indica que muitas das peças aqui lançadas terão continuidade e desenvolvimento nos volumes seguintes. Pode dar-se o caso de este álbum funcionar como uma longa introdução, como uma abertura mais lenta e atmosférica antes de a narrativa ganhar velocidade e peso emocional nos capítulos seguintes. No entanto, enquanto volume isolado, a obra não me convenceu, com pena minha.
Já a edição que a Ala dos Livros nos oferece é, mais uma vez, belíssima. O livro tem um charme muito especial que o torna facilmente apetecível. Para além de editado em grande formato - semelhante ao de O Burlão nas Índias ou do das obras de Patrick Prugne, também editadas pela Ala dos Livros -, a capa dura do livro apresenta uma textura que faz lembrar tecido e que é muito agradável ao toque. Tem ainda um brilho localizado que torna o objeto mais requintado. As próprias guardas do livro, fazendo lembrar papel de parede, são belíssimas. No interior, o papel é brilhante e de boa qualidade, tal como também assim o é a impressão e a encadernação.
Em conclusão, este primeiro volume de A Sombra das Luzes é uma BD ambiciosa, com argumentos morais interessantes e um retrato visual rico do século XVIII, mas que sofre de uma narrativa algo confusa e pouco envolvente, principalmente devido à estrutura epistolar mal integrada com o ritmo da banda desenhada. É uma leitura que exige paciência e atenção redobrada, e que, para já, ficou um pouco aquém das minhas expectativas iniciais. A esperança, no entanto, reside na promessa de que os volumes seguintes consigam atar as pontas deixadas soltas e revelar, enfim, o grande jogo que Ayroles parece estar a construir.
NOTA FINAL (1/10):
6.9
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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