Por alturas em que, há pouco mais de dois meses, a Ala dos Livros lançava por cá o fabuloso livro O Meu Irmão, de JeanLouis Tripp, a editora Casterman lançava para o mercado franco-belga a mais recente obra do autor francês, que dá pelo nome de Un Père e que volta a centrar-se no passado autobiográfico de Tripp, com especial ênfase na relação deste com o seu pai.
É mais uma obra em que JeanLouis Tripp mergulha novamente com coragem na memória e na emoção, oferecendo ao leitor um álbum profundamente humano e comovente. Após a aclamação de um livro tão especial como O Meu Irmão, que abordava a perda trágica do seu irmão mais novo, Tripp vira agora o olhar para a complexa e delicada relação que teve com o seu pai. O resultado é uma obra de uma maturidade emocional impressionante, onde a ternura, a dor e a procura de sentido se entrelaçam numa narrativa que, embora fragmentada, nos conduz a uma experiência envolvente.
A história parte de uma infância marcada por um amor pleno e exclusivo: Jean-Louis, quando em criança, viveu como filho único nos primeiros anos, experienciando um tempo dourado sob o carinho e a atenção do pai. Brincavam juntos, tinham momentos ternos a sós. No entanto, com o nascimento dos irmãos e com a degradação do casamento dos pais, essa fase idílica deu lugar a um afastamento gradual. O livro procura, qual catarse, compreender como esse vínculo inicial foi sendo corroído. E não é que tenham existido desentendimentos ou tensões tão grandes assim. Nesse ponto, a relação de ambos até foi semelhante a todas as relações de pai e filho, com os seus bons e maus momentos. E o próprio divórcio dos pais do autor, nunca sendo bom, claro, talvez também não tenha sido o responsável pelo crescimento desta alienação mútua. O que terá sido, então?
Tripp oferece-nos uma abordagem intimista, misturando lembranças aparentemente dispersas, mas que, juntas, constroem uma manta emocional sólida e sincera. A narrativa desta obra é feita de episódios, por vezes longos e marcantes, outras vezes breves e subtis, que nos transportam por várias épocas e locais, como as férias da família na Alemanha de Leste e na Roménia, espelhos da ideologia e do ativismo político do pai, um professor orgulhosamente comunista. Esses momentos, longe de meras curiosidades históricas, revelam o pano de fundo ideológico e afetivo em que se desenrolou a infância do autor.
O álbum pode, por vezes, parecer retalhado em demasia, com uma sucessão de memórias sem uma ordem muito concreta. Nesse ponto, afasta-se bastante de O Meu Irmão, que é um livro de narrativa mais direta, que gravita todo à volta do trágico falecimento do irmão de Tripp e das eventuais consequências desse momento fatídico. Em Un Pére, tão depressa somos brindados com um momento marcante, como uma discussão mais forte entre pai e mãe, como a seguir seguimos rumo para um momento mais mundano nas férias em família dos protagonistas. E, parece-me, é precisamente nessa estrutura aparentemente solta e algo desconexa que encontramos reflexo na nossa própria memória e afeto. É que, tal como nos lembramos dos nossos entes queridos em lampejos e sensações avulsas, também Tripp nos vai contando a sua história. O fio condutor é, pois, emocional e não cronológico. Por vezes, pode parecer uma leitura mais aleatória, mas quando o leitor se deixa levar por esse fluxo, é inevitável ser tocado pela profundidade das revelações.
Se certas partes no enredo podem ser cambaleantes, o livro vai ganhando força - com a tal soma das partes, lá está - à medida que caminha para o final, com a comoção advinda a tornar-se mais densa. A distância entre pai e filho, inicialmente subtil, transforma-se numa dor surda que vai ganhando forma. O crescendo emocional conduz o leitor até à dor do afastamento, tão comum a tantas relações familiares. A força da narrativa da obra reside na capacidade de Tripp em não julgar, em não cair em ressentimentos fáceis, mas em procurar compreender e aceitar a imperfeição humana que habitou essa relação. Há toda uma sensação genuína de tentar superar as dores do passado.
Visualmente, Un Père mantém o estilo gráfico característico do autor, com uma paleta sépia que remete para o passado, e com o uso da cor apenas no tempo presente ou em algum momento mais impactante e estilizado do passado. É um recurso simbólico eficaz, que sublinha a distância entre as memórias e a realidade atual. A arte de Tripp continua a ser um ponto forte, servindo com sensibilidade a natureza intimista do relato. As expressões, os silêncios, os olhares... tudo é tratado com grande aprumo emocional.
Em termos de edição, o livro apresenta capa mole com badanas, bom papel baço no miolo, e um bom trabalho ao nível da impressão e da encadernação, embora mereça comentário o facto de, como se trata de um livro bastante espesso (tem 360 páginas) e em capa mole, ser necessário muito cuidado no manuseamento para que a lombada não fique cheia de vincos. É uma boa edição, mas está bem atrás daquela que a Ala dos Livros nos ofereceu no seu recente O Meu Irmão. Por falar em Ala dos Livros, faço votos para que este Un Père possa ser lançado pela editora portuguesa o quanto antes. E, se não for pedir muito, que os dois livros de Extases, onde o autor aborda de forma autobiográfica a sua vida sexual, também tenham edição portuguesa. O trabalho de JeanLouis Tripp é demasiado bom para não ser integralmente editado em Portugal.
Voltando a Un Père, o grande talento de Tripp está na sua capacidade de tratar emoções complexas com delicadeza e autenticidade, não tentando encobrir as falhas, mas também não transformando os conflitos em tragédias grandiosas. Há, antes, um retrato profundamente honesto do que é crescer, afastar-se, e depois tentar compreender em retrospetiva o que se perdeu... e o que ainda pode ser resgatado, mesmo que apenas na memória.
O livro tem, portanto, o mérito raro de falar ao leitor de forma universal, mesmo sendo profundamente pessoal. Todos os que foram filhos - e, eventualmente, todos os que são pais - encontrarão aqui algo de seu: uma dor antiga, um gesto mal compreendido, uma ausência não verbalizada. Un Père não dá respostas fáceis, mas convida-nos à reflexão, ao perdão e à reconciliação emocional, mesmo que simbólica.
Se O Meu Irmão nos confrontava com a dor da perda súbita, Un Père leva-nos por um percurso mais longo e silencioso: o da erosão lenta de uma ligação que nunca deixou de ser pautada pelo amor. Tripp mostra-nos que, mesmo onde há distância, pode haver também afeto e que, às vezes, compreender e aceitar são os únicos gestos possíveis de reconciliação. É, no fundo, uma carta de amor escrita com maturidade e dor contida, sendo um livro que se lê de uma assentada, mas que permanece connosco durante muito tempo. Pela honestidade, pela beleza do desenho, e sobretudo pela sua verdade emocional, Un Père é uma obra memorável que nos obriga a parar, a olhar para trás e, quem sabe, a repensar a nossa própria história familiar. Não há dúvidas de que JeanLouis Tripp é um dos meus autores favoritos de banda desenhada!
NOTA FINAL (1/10):
9.7
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
-/-
Un Père
Autor: JeanLouis Tripp
Editora: Casterman (edição francesa)
Páginas: 360, a cores
Encadernação: Capa mole, com badanas
Formato: 19,8 x 26,1 cm
Lançamento: Maio de 2025
Sem comentários:
Enviar um comentário