quinta-feira, 24 de julho de 2025

Entrevista a Korky Paul: "Os leitores querem é uma boa história com ilustrações mágicas, não importa se feitas à mão ou num ecrã."

Entrevista a Korky Paul

Hoje trago-vos uma entrevista que sai um pouco fora daquilo a que estão habituados a encontrar por aqui, pois desta feita não estamos perante uma entrevista a um autor de banda desenhada, mas antes a um autor de livros ilustrados.

Os dois meios tocam-se em vários pontos, bem sei, mas, claro está, não são exatamente a mesma coisa.

Ainda assim, e porque lá em casa as minhas filhas são muito admiradoras da série Mimi e Rogério, dos autores Valerie Thomas e Korky Paul, não pude deixar cair a oportunidade de entrevistar o ilustrador Korky Paul, aquando da sua vinda a Portugal, na última Feira do Livro de Lisboa.

Como tal, aproveito para agradecer à editora Gradiva e em especial à Helena Rafael, pela gentileza e amizade que demonstraram ao convidar-me.

Sem mais demoras, deixo-vos então com a interessante conversa que pude ter com Korky Paul.


Entrevista a Korky Paul


Entrevista a Korky Paul
Mimi e Rogério
é uma série que encanta leitores há mais de três décadas. Como explicas o sucesso contínuo da série?

Acho que se deve à originalidade do meu estilo de desenho e às páginas cheias de detalhes, com histórias dentro de histórias. Também creio que o sucesso está no facto de a Mimi não se vestir de preto. Escolhi desenhá-la com cores por causa da forma como ela transformava o Rogério em várias cores. E penso que a ideia genial de lhe dar meias às riscas vermelhas e amarelas foi brilhante. Ela é uma bruxa simpática, excêntrica e maluca... e tudo isso faz parte do seu encanto. Tal como a relação com o seu gato preto, o sofredor Rogério! O humor visual da Mimi e do Rogério é o que lhes dá magia. É a sua originalidade e as páginas panorâmicas, cheias de pormenores, que convido os leitores a explorar. Estes elementos funcionam em dois níveis: os pais divertem-se, e mais importante ainda, as crianças também.


Como te sentes ao saber que alguns dos leitores de hoje são filhos - ou até netos - da primeira geração que se apaixonou pelos livros?

É uma sensação muito, muito reconfortante. Sempre que vou a escolas ou a festivais literários, há pais que me dizem que cresceram com a Mimi e o Rogério. Sempre que encontro pessoas assim, fico surpreendido e, claro, encantado. Pergunto-me sempre como é que um rapaz vindo do mato do Zimbabué conseguiu vender 10 milhões de livros em 47 línguas. Como é que isso aconteceu? Não faço a mínima ideia!


Achas que a longevidade da série se deve mais às histórias, às ilustrações ou a uma combinação mágica de ambos?

Penso que o sucesso reside na combinação entre o texto e as ilustrações. As duas coisas funcionam em conjunto e complementam-se. É uma combinação vencedora, como se costuma dizer.


Entrevista a Korky Paul
Como começou a tua colaboração com a Valerie Thomas?

O meu irmão mais novo, Donald, trabalhava na Oxford University Press, no departamento de vendas para África. Ele disse-me: "Vou arranjar-te uma entrevista com o editor sénior da secção infantil da Oxford University Press." Mandou um memorando ao Sr. Ron Heapy (isto foi antes dos emails!) e marcou a entrevista entre mim e ele. Imaginem a reação do Sr. Heapy: "Há um tipo nas vendas para África que tem um irmão que sabe desenhar? Hmmm...". Então, fui ao seu encontro, ele viu o meu trabalho e disse: “Vamos tirar umas fotocópias do teu trabalho, não nos ligues, nós ligamos-te.” Mas quando saía da reunião ele entregou-me um manuscrito e disse: “Lê a história. É sobre uma bruxa que vive numa casa preta com um gato preto e que tem vários problemas.” Pediu-me três desenhos A4. Era para uma coleção educativa, com capa mole e encadernação com agrafos. Pensei: “Bom, é o que há.” Nessa altura eu vivia em Londres e na viagem de comboio para casa, li a história e fiquei totalmente inspirado. Mas em vez de fazer como ele me tinha pedido, decidi ilustrá-la como se fosse um álbum ilustrado em grande formato. Faz parte da minha formação em publicidade pensar criativamente, pensar em novas formas de fazer as coisas. Por isso, comprei um livro ilustrado da Oxford University Press, fiz três ilustrações 120% maiores do que o tamanho impresso. Um mês depois voltei com os desenhos para me reunir novamente com o Sr. Heapy. Ele olhou para os desenhos grandes e disse: “Não foi isto que te pedi!". Respondi: “Sr. Heapy, não anule já a ideia e veja bem... acho que temos aqui um grande livro…” Bem, o resto é história: 10 milhões de livros vendidos e a Mimi fala em 47 línguas! Quem é que acreditaria que há 35 anos tal sucesso iria acontecer? Ninguém o previu. E isso é espetacular.


E como tem evoluído o vosso processo de colaboração ao longo dos anos?

Para ser honesto, tenho pouco contacto com a Valerie Thomas. Tudo é tratado através dos meus editores. Podemos trocar ideias para histórias novas, mas deixo o desenvolvimento do enredo entre os editores e a Valerie. Depois enviam-me o manuscrito final. Sou defensor de que deve ser o ilustrador a trabalhar a paginação, por isso divido em 12 spreads (24 páginas) com texto e imagem.


Entrevista a Korky Paul
Qual é o segredo para manter as personagens frescas e cativantes ao fim de tantos livros?

Parte do segredo está na variedade. Por exemplo, se eu desenhar uma cozinha num livro e tiver de desenhar uma cozinha noutro livro, faço um desenho completamente diferente da cozinha. Se for o quarto, faço outro quarto completamente diferente também. Nunca desenho a mesma coisa de cada vez e isso é parte do que mantém as ilustrações dos livros vivas. Mantém-me com vontade de trabalhar uma variedade de vistas e composições ou desenhos de cada página. 


Vivemos numa era digital em que as crianças estão cada ver mais imersas nos meios digitais. Que papel ainda têm os livros físicos ilustrados neste contexto?

Acho que os livros ilustrados físicos continuam a ser fundamentais para afastar as crianças dos ecrãs, que são distrativos, pouco recompensadores e não proporcionam uma experiência tão rica. Não há nada como sentarmo-nos ou aconchegarmo-nos com uma criança e ler-lhe um livro ilustrado. Não sinto o mesmo se o fizermos com um iPad: a bateria pode acabar, carrega-se no botão errado ou falta o Wi-Fi. Com um livro, isso nunca acontece.


Que responsabilidade têm os pais e educadores em promover o contacto com os livros tradicionais?

Acho que é essencial que os pais, adultos e professores envolvam as crianças com o livro ilustrado. Não gosto da palavra "tradicional", porque parece que é antiquado. Prefiro apenas chamá-los de livros.


Entrevista a Korky Paul
Já pensaste em adaptar Mimi e Rogério ao formato digital?

A Oxford University Press, a editora original de Mimi e Rogério, tem versões eBook da série, mas penso que não vendem muito. Além disso, não me cabe a mim decidir, mas à editora. E, para ser franco, também não faço força nesse sentido.


És um autor conhecido por preferir ilustrar à mão - com tinta, papel e muita paciência. Porque é que te manténs a usar esse método?

Se trabalhasse digitalmente, perderia a espontaneidade e frescura dos meus desenhos. Não tenho nada contra a arte digital - há trabalhos incríveis! - mas não gosto da experiência. Acho-a monótona e mecânica. E depois há o lado financeiro: cada vez que há uma atualização, temos de comprar novo software, novos dispositivos… É um ciclo caro e que exclui muitos artistas.


Como é o teu processo criativo, desde o esboço inicial até à arte final?

Faço muita pesquisa quando me estou a preparar para um novo livro, tentando encontrar imagens fotográficas de coisas que possa precisar de desenhar. Por exemplo, com Mimi e Rogério no Espaço fui ao website da NASA, que é brilhante, e recolhi muitas fotografias do espaço e fotografias de foguetões e diferentes veículos espaciais, e depois desenhei-os ao meu estilo. Trabalho cada página a lápis com um tamanho 120% maior do que o tamanho publicado. Quando estou satisfeito com os meus desenhos a lápis, desenho a tinta sobre as linhas a lápis com uma caneta "bico de pena". 
Depois de a ilustração estar passada para tinta, coloco-a numa caixa de luz, ponho uma folha de papel de aguarela de alta qualidade por cima e traço-a muito ligeiramente a lápis. Em seguida, retiro a ilustração traçada da caixa de luz e volto a desenhá-la a caneta. Por vezes, ignoro o lápis, uma vez que
é apenas um auxiliar de memória. Há uma grande diferença entre traçar e desenhar - é no desenho que começa a diversão! Mas se forem ao website do jornal Guardian e escreverem "Korky Paul" no motor de busca, verão uma explicação pormenorizada com imagens digitais de todo o processo de desenho de uma página da A Mimi e os Dinossauros. Muitos professores disseram-me que o utilizam como uma explicação clara e simples para as crianças compreenderem como se ilustra um livro ilustrado. 


Entrevista a Korky Paul
Achas que se perde alguma coisa - em termos de expressão ou autenticidade - quando se utilizam ferramentas digitais para a ilustração?

Penso que se trabalhasse digitalmente, as minhas ilustrações perderiam a espontaneidade e a frescura que consigo no meu trabalho. Não sou contra o trabalho digital, mas não gosto do processo, da experiência de estar sentado em frente a um ecrã a clicar em pequenos botões. Sinto que há sempre algo de mecânico no trabalho artístico digital. Quer dizer, sei que há muita arte fantástica criada digitalmente, mas não tem qualquer atração para mim. Acho muito aborrecido estar sentado em frente a um ecrã a clicar em botões para definir o material de desenho. Também acho que a indústria informática é uma porcaria, pois sempre que somos obrigados a fazer uma atualização, temos de atualizar todas as nossas ferramentas, aplicações e software. É um círculo vicioso e dispendioso e penso que exclui muitos artistas que não podem pagar o equipamento incrivelmente caro.



E alguma vez sentiste pressão para mudar para o digital?

Nunca senti. Os editores nunca me pressionaram a passar para o digital. Acho que não se importam muito, desde que se produza o trabalho artístico com o nível que eles querem e que nós queremos. 


Que conselho darias a jovens ilustradores que querem seguir o caminho tradicional da ilustração?

Mantenham-se no papel! É mais divertido e mais barato. Juntem-se aos 20% da elite resistente que ainda desenha com caneta e tinta!


Entrevista a Korky Paul
Há mais aventuras de Mimi e Rogério a caminho?

Sim, há novos livros a serem planeados. Normalmente ilustro um por ano, mas agora fala-se em fazer dois por ano.


Depois de todos estes anos a desenhar as mesmas personagens, como é que continuas a encontrar inspiração para as desenhar?

A Mimi tem roupas diferentes em cada livro. Às vezes desenho-a mais gordinha, outras vezes mais magra - talvez tenha feito dieta! Também nunca desenho a casa da mesma forma, como já expliquei antes. A Mimi vive aventuras mágicas muito diversas e vai conhecendo personagens novas. Penso que é assim que mantenho a frescura e a singularidade da personagem. E claro, as visitas regulares às escolas, aos festivais, e o contacto com crianças e com o mundo à minha volta são fontes inesgotáveis de ideias! A vida à nossa volta inspira-me!


Já pensaste em criar uma nova série?

Claro! Todos os autores e ilustradores sonham com isso. Adorava ter outra personagem de sucesso. Só preciso de alguém que escreva as histórias e depois eu faço a minha magia!


Como achas que será a ilustração de livros infantis daqui a 20 anos... mais digital ou poderá haver um regresso ao trabalho mais manual?

Sinceramente, não sei. Mas acredito que ainda haverá quem desenhe com caneta e papel. E também haverá livros digitais. Acho que os dois formatos vão coexistir. No fim de contas, os leitores querem é uma boa história com ilustrações mágicas, não importa se feitas à mão ou num ecrã.


Obrigado!

Obrigado, também!


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