O mais recente livro lançado pela Levoir ainda durante o mês de Março - e, também, a propósito da celebração das Mulheres devido ao Dia Internacional da Mulher - que dá pelo nome de Nellie Bly - A História de uma Pioneira, foi um autêntico tiro certeiro da editora portuguesa, já que a história biográfica de Nellie Bly é muito interessante, valendo muito a pena conhecer, e as ilustrações fazem do livro uma obra bela e singular. Fiquei muito bem impressionado com a aposta e até faço votos para que a Levoir volte a este pendor mais demarcadamente franco-belga!
A autoria da obra é de Virginie Ollagnier-Jouvray e Carole Maurel, ambas francesas, e procura retratar a vida e as realizações de Nellie Bly, uma das primeiras jornalistas de investigação e uma figura emblemática do feminismo no final do século XIX. Nunca tinham ouvido falar de Nellie Bly? Pois, lamentavelmente, eu também não! Agora que li o livro, lamento a minha ignorância que, certamente, será partilhada por muitos. E isso leva-me, logo à partida, a achar que estas obras são relevantes, para assinalar os feitos de tantas Mulheres que ousaram singrar e desafiar as convenções e o papel social que lhes era atribuído, embora a História não lhes tenha reservado um lugar de muito destaque.
Como referia acima, Nellie Bly, ou Elizabeth Cochran Seaman, já que "Nellie Bly" era apenas um pseudónimo, foi uma jornalista, escritora e inventora norte-americana, pioneira do jornalismo de investigação. Ficou especialmente famosa por uma reportagem em que se infiltrou num hospital psiquiátrico - fingindo, portanto, ser louca - para, dessa forma, poder expor os abusos sofridos pelas pacientes. Além disso, também ganhou notoriedade por, inspirada pelo romance A Volta do Mundo em 80 Dias, de Júlio Verne, fazer uma viagem à volta do mundo em 72 dias. Cobriu ainda a I Guerra Mundial a partir da Europa. Mas é nessa sua estadia enquanto paciente do hospital psiquiátrico de Blackwell's Island que este livro mais se baseia.
Não só, mas principalmente, visto que a obra também explora a juventude de Nellie Bly e a sua caminhada até se tornar na mulher forte e sagaz que é. Esta dualidade narrativa, funciona muito bem para dar um ritmo envolvente ao relato, mantendo o leitor interessado ao revelar gradualmente os eventos que moldaram a jornalista, enquanto permite que o relato "respire" melhor.
A investigação de Nellie Bly no asilo é apresentada de forma detalhada e impactante. A obra expõe as condições desumanas e os abusos sofridos pelas mulheres internadas, muitas vezes sem qualquer justificação válida, ressaltando a crítica social presente no trabalho original de Bly, e levando-nos, claro, a uma abordagem ao contexto social e cultural do período, em que são destacadas as limitações impostas às mulheres e os desafios enfrentados por aquelas que ousavam questionar o status quo. Torna-se, pois, um livro pesado no tema, que nos faz engolir em seco várias vezes, tal não é a violência psicológica exercida pelos responsáveis desta instituição psiquiátrica. A determinação de Nellie Bly, contudo, é inabalável e a forma como esta mulher ousou desafiar essas normas é evidenciada ao longo da obra. O trabalho efetuado pela protagonista chegou mesmo a ter consequências sociais e políticas na época, levando a que o estado de Nova Iorque implementasse uma lei para melhoramento dos hospitais psiquiátricos. Com este ato corajoso e ousado, cimentou o seu legado como uma das mais notáveis jornalistas da história.
Além da qualidade artística, a história de Nellie Bly - A História de uma Pioneira é extremamente interessante e muito bem construída. A maneira como os eventos são apresentados, alternando momentos de tensão, descoberta e triunfo, mantém um ritmo envolvente e prende a atenção do leitor do início ao fim. Gostei também da forma como o livro não tenta ser demasiadamente factual e/ou burocrático - neste tipo de obras é algo que, infelizmente, acontece muitas vezes. Ao invés, a história é-nos servida com um belo ritmo, quase cinematográfico, alternando entre flashbacks e momentos de quase fantasia dramática em que os fantasmas dos dramas vividos pelas mulheres naquele asilo rodeiam as personagens. Por todos este motivos, não é apenas uma leitura informativa... é, também, uma leitura emocionante.
As ilustrações de Carole Maurel - autora de quem falei há poucos dias devido ao seu igualmente excelente trabalho em Bobigny 1972 - contribuem significativamente para fazer deste livro uma bela obra de banda desenhada. Com um estilo clássico e elegante, embora moderno, e bastante europeu na abordagem, as imagens em tons quentes para o passado da protagonista e em tons frios para a sua estadia no hospital psiquiátrico captam a essência da época e do espaço, enquanto enfatizam as emoções das personagens, enriquecendo a experiência de leitura em momentos que acabam por ficar na nossa retina.
As ilustrações de Carole Maurel são, por isso, um dos grandes destaques da obra. Os desenhos possuem uma beleza singular, criando uma atmosfera envolvente que transporta o leitor para o final do século XIX. A expressividade das personagens é notável, transmitindo emoções de maneira marcante e reforçando o impacto dos momentos mais dramáticos da história. Cada cena é cuidadosamente composta, tornando a experiência visual tão poderosa quanto a narrativa. Gostei especialmente da maneira como os fantasmas/espíritos são introduzidos na componente visual da obra, tornando-a muito mais densa e séria. Se esta é uma banda desenhada cujos desenhos podem parecer "leves" e simpáticos, não deixa de ser verdade que também há partes sombrias, que tornam a experiência mais adulta. Ao fim de dois belíssimos livros, tenho que admitir que já sou fã de Carole Maurel.
Outra das coisas bem conseguidas nesta obra é o belo trabalho de edição da Levoir. O livro pode parecer ter as características habituais da coleção de novelas gráficas da editora, mas verifica-se um trabalho mais aprimorado que, logicamente, bonifica a qualidade do objeto-livro. A capa é dura e baça e o papel baço é de boa qualidade. Como também o é o trabalho de impressão e encadernação. No final do livro, no generoso caderno de extras, com 13 páginas adicionais, são-nos oferecidas ainda duas entrevistas com as autoras que nos permitem aprofundar o seu processo criativo, ao mesmo tempo que nos são mostrados belos esboços de Carole Maurel. E tudo apresentado com um belo grafismo.
Em suma, Nellie Bly - A História de uma Pioneira é um excelente cartão de visita para os novos lançamentos da Levoir, assumindo-se como uma leitura enriquecedora que combina narrativa envolvente e arte expressiva para contar a história de uma mulher extraordinária que desafiou as convenções da sua época e deixou um legado duradouro no jornalismo e na luta pelos direitos das mulheres. Excelente aposta!
NOTA FINAL (1/10):
9.5
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Nellie Bly - A História de uma Pioneira
Autoras: Virginie Ollagnier-Jouvray e Carole Maurel
Editora: Levoir
Páginas: 184, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 195 X 270mm
Lançamento: Março de 2025
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