segunda-feira, 10 de março de 2025

Análise: A Língua do Diabo

A Língua do Diabo, de Andrea Ferraris - Escorpião Azul

A Língua do Diabo, de Andrea Ferraris - Escorpião Azul
A Língua do Diabo, de Andrea Ferraris

Como não há uma sem duas, nem duas sem três, a Escorpião Azul editou recentemente o seu terceiro livro do autor italiano Andrea Ferraris, intitulado A Língua do Diabo, já depois de nos ter brindado com as edições das obras ChurubuscoA Cicatriz - Na Fronteira entre o México e os Estados Unidos

E se esses dois livros foram boas propostas, que recomendo, posso dizer-vos que este A Língua do Diabo é, a meu ver, a melhor das três obras, ao apresentar uma narrativa gráfica envolvente e profundamente reflexiva, com personagens impactantes e com um facto histórico não muito explorado que foi o aparecimento da Ilha Ferdinandea, um território efémero que emergiu no Mediterrâneo em 1831, perto da costa da Sicília, e rapidamente se tornou um símbolo de ambição e disputa entre várias nações. Através de uma abordagem visual impressionante e uma narrativa histórica envolvente, Ferraris explora as tensões geopolíticas da época, o desejo humano pela conquista e a própria efemeridade da existência.

A Língua do Diabo, de Andrea Ferraris - Escorpião Azul
A história gira em torno da súbita aparição da ilha devido a atividade vulcânica submarina e do frenesim que isso gerou entre potências como a Grã-Bretanha, a França, a Espanha e a própria Itália. Cada uma dessas nações tentou reivindicar o território, vendo nele uma oportunidade geoestratégica em pleno Mar Mediterrâneo. No entanto, antes que qualquer disputa pudesse ser resolvida de forma definitiva, a ilha desapareceu novamente sob as águas, apagando temporariamente a possibilidade de posse e domínio. Hoje em dia, a ilha ainda lá está, mas encontra-se submersa a 6 metros de profundidade. Tudo isto são factos verídicos.

Em A Língua do Diabo, acompanhamos os irmãos Salvatore e Vincenzo, órfãos, que vivem da pesca e do trabalho no campo. Entretanto, Salvatore está apaixonado por uma mulher da aldeia, que lhe é prontamente vedada pelo proeminente pai da mesma. São os dois irmãos que, num dia de faina, em pleno mar alto, assistem ao fenómeno natural de um vulcão a surgir do mar em plena atividade. E é a partir dessa matéria expelida pelo vulcão que se forma a tal ilha. Salvatore é o primeiro a colocar os pés na ilha e está convencido de que, por esse motivo, é o legítimo proprietário daquele novo território. Mas, claro, as coisas não se lhe apresentam fáceis, pois são vários os Governos que querem tomar posse daquela pequena ilha localizada num ponto tão estratégico do Mar Mediterrâneo.

A narrativa não se limita a um relato histórico, mas também introduz reflexões sobre o significado das fronteiras, a fragilidade das ambições humanas e a forma como a história é moldada pelos vencedores. A Ilha Ferdinandea torna-se uma metáfora para os conflitos geopolíticos que continuam a ocorrer até hoje, onde territórios são disputados com base em interesses estratégicos e nacionalistas, muitas vezes sem consideração pelas forças naturais ou pelos povos locais.

A Língua do Diabo, de Andrea Ferraris - Escorpião Azul
Outro ponto interessante do livro é a forma como Ferraris dá vida às personagens envolvidas na disputa, desde cientistas que estudavam o fenómeno vulcânico até aos líderes políticos que viam na ilha uma oportunidade de expansão territorial. A maneira como cada nação tentou legitimar a sua reivindicação sobre a ilha – com bandeiras fincadas, declarações oficiais e até tentativas de nomeação – revela o absurdo da corrida pelo domínio de um pedaço de terra instável e condenado ao desaparecimento. O livro destaca, pois, a ironia de uma disputa tão intensa por algo que, no fim, não poderia ser retido, servindo como uma metáfora para outras situações em que o ser humano tenta controlar aquilo que está além do seu alcance. O argumento é tão interessante e dá tanto "pano para mangas" que confesso que gostaria de ver um filme sobre este tema.

Visualmente, Ferraris mantém-se fiel ao seu estilo sombrio e expressivo, utilizando tons de cinza a carvão e traços fortes e confiantes, de forma a recriar a atmosfera misteriosa e contemplativa da história. A vastidão do mar e o isolamento da ilha são retratados com um detalhe quase hipnótico, transmitindo ao leitor a sensação de efemeridade e insignificância humana diante das forças naturais. O estilo de desenho é semelhante ao que o autor já nos deu em Churubusco, mas apresenta-se ainda mais evocativo e contemplativo, talvez devido à presença de elementos naturais, como a ilha, o vulcão ou o mar, que tornam poéticos muitos dos desenhos do autor.

A edição da Escorpião Azul apresenta-se em capa mole baça com badanas e com bom papel baço no miolo. A extremidade das páginas volta a ser pontilhada por uma cor - desta vez, o preto - que oferece originalidade e requinte à edição. A encadernação e impressão estão bem feitas e o livro apresenta como extra um prefácio da autoria de Rui Cartaxo e duas páginas com breves informações adicionais sobre o facto histórico que originou a existência da Ilha Ferdinandea.

Em jeito de conclusão, há que dizer que, em A Língua do Diabo, Andrea Ferraris tem o mérito de nos transportar para um episódio esquecido, mas altamente simbólico, da história europeia. Esta é uma obra que merece ser lida tanto pelo seu valor artístico, quanto pela sua capacidade de provocar reflexões sobre a relação entre o homem, a terra e o tempo. Um belo livro que recomendo vivamente.


NOTA FINAL (1/10):
9.0




Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020




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A Língua do Diabo, de Andrea Ferraris - Escorpião Azul

Ficha técnica
A Língua do Diabo
Autor: Andrea Ferraris
Editora: Escorpião Azul
Páginas: 232, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 17 x 24 cm
Lançamento: Outubro de 2024

1 comentário:

  1. Um excelente autor mas porquê o "desserviço" da Escorpião Azul ao leitores nacionais reduzindo o formato original de 22 x 30 cm para os pobres 17 x 24 cm?

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