A propósito da participação, enquanto expositor, da editora portuguesa Ala dos Livros no Festival de Angoulême 2025, estive à conversa com um dos responsáveis da editora, Ricardo M. Pereira, para melhor compreender a motivação da Ala dos Livros para uma aposta desta envergadura na área International Rights Market.
Mas a conversa foi tão interessante - e isso é algo que costuma acontecer-me quando falo com o Ricardo - que acabou por se espraiar para outras temáticas subjacentes ao universo da banda desenhada e, em particular, à atividade editorial nacional.
Eis então, mais abaixo, a entrevista que tive o prazer de fazer a Ricardo M. Pereira.
Leiam que vale muito a pena.
ENTREVISTA
Era algo de que já vínhamos a falar entre nós há pelo menos 2 anos, mas o ano passado entendemos que faria sentido concretizar este ano. Sempre levámos e propusemos a colegas editores de outros países os livros de autores portugueses que constam do catálogo da Ala dos Livros; constatámos que o trabalho dos autores nacionais é pouco conhecido lá fora e por isso uma possível participação no mercado de direitos sempre nos foi parecendo cada vez mais um passo natural.
Não se trata de ser os primeiros ou segundos editores com stand no Mercado de Direitos de Angoulême (embora, tanto quanto eu saiba, a presença da Meribérica tivesse sido sempre institucional; no início dos anos 90, quem publicava quase tudo de autores nacionais – incluindo as obras do nosso avô -, era a ASA – então uma empresa familiar). Desde 2018, na resposta às primeiras questões sobre o que seria a Ala dos Livros que penso termos deixado explícito que temos um plano de negócio bem claro e definido. Obviamente que nestes 6 anos existiram várias situações inesperadas (como o período da pandemia) e fomos ajustando os nossos objectivos. Decidimos lançar-nos na Feira do livro de Lisboa em nome e com espaço próprios em 2023, com pouco mais de 4 anos de actividade da editora – e dois de pandemia pelo meio-, quando poucas editoras de BD o faziam (excepto os grandes grupos). Procurámos construir uma imagem e ganhar presença e espaço no mercado antes de apostarmos na distribuição. E acima de tudo conquistar a confiança dos leitores. Esta presença em mercados internacionais é mais um dos elementos desse plano de negócios. E temos outros planos e objectivos para concretizar.
2) Para além do esforço a título pessoal/familiar, tendo em conta a pequena dimensão da editora, o investimento financeiro para estar presente desta forma em Angoulême é avultado? E consideras ser um investimento que compensa ou, para já, ainda é cedo para esse tipo de conclusões?
Quando uma empresa assegura a deslocação de 3 ou 4 elementos a Angoulême, não podemos considerar que o investimento adicional num stand seja assim tão considerável. É evidente que se quisermos ser mais abrangentes nos contactos efectuados, é necessário ter uma pessoa a tempo inteiro no stand, mas para nós é algo surpreendente que outras editoras da nossa dimensão hesitem nesse investimento. Se considerares que já vamos todos os anos a Angoulême, e por isso já suportamos todos os custos de viagem, deslocações, alojamento e estadia, é sobretudo muito mais trabalho de preparação e seguimento.
3) Será, também, uma forma de a Ala dos Livros fazer sedimentar a credibilidade do seu branding editorial em termos internacionais? Esta presença física abre mais portas negociais?
Sim, esse também é um dos objectivos: podermos mostrar "ao vivo e a cores" o que fazemos, o que gostamos de fazer e como o fazemos. Não diria que abre mais portas, mas permite criar maior credibilidade junto dos editores internacionais. Pelo menos junto daqueles que na altura de avaliar propostas valorizam alguma coisa no que refere à qualidade editorial do trabalho feito...
4) Uma coisa que achei interessante - e que enalteço - foi que a Ala dos Livros não estivesse a apresentar apenas os autores nacionais do seu catálogo (Luís Louro, Marco Calhorda, Diogo Campos, Daniel Maia, Hugo Teixeira ou Margarida Madeira), mas que apresentasse obras editadas em Portugal por outras editoras, com destaque para as da editora Escorpião Azul. Como e porquê surgiu tal ideia?
E faltou referires o Pedro Nascimento e o Manuel Monteiro, cujo trabalho vamos publicar em 2025 e também já promovemos este ano em Angoulême. Em relação a trabalhos de outros colegas nossos: se estamos lá e se o podemos fazer, porque não? Escolhemos mais algumas obras de que gostamos, de autores que achamos terem possibilidade para, pelo menos, serem vistos e mostrados no mercado internacional. Há vários outros autores que poderíamos ter levado, mas o espaço era limitado. Levámos também os títulos que venceram o Prémio Jorge Magalhães, e que a Ala dos Livros promove. Não sendo este um prémio monetário, é também a nossa forma de retribuir. Pedimos a todos os autores e editores autorização prévia para o fazer. Em todos esses títulos (e sobretudo os que estão fora do catálogo da Ala dos Livros), não temos qualquer interferência ou proveito na eventual negociação de direitos. Os interesses que surgiram foram transmitidos aos seus autores e/ou editores.
5) Há, portanto, um sentido de missão patriótica por parte da Ala dos Livros com esta presença? Quando falamos em banda desenhada, não falamos apenas em oportunidades de negócio... falamos também na simples paixão pela banda desenhada?
Não. Não temos essa aspiração de "bater no peito" e apregoar que aquilo que fazemos é pelo bem maior da BD ou de sermos e fazermos mais do que outros. Seja cá ou lá fora. Fazemos porque, como disse, se podemos fazê-lo, então porque não? Não ficamos à espera de outros motivos, apoios ou subsídios para isso, nem esperamos pancadinhas nas costas. Como nunca estivemos. Nem usamos esta participação como motivo para falsas expectativas e promessas a autores.
6) Findo o evento, qual é a análise que fazes aos resultados desta vossa aposta no International Rights Market?
Não tínhamos expectativas para além de termos uma primeira experiência, mas de facto superou em muito tudo o que se pudesse tentar prever. E foi uma boa aprendizagem para como podemos aproveitar ainda melhor este tipo de eventos no futuro.
7) Planeiam, então, voltar no próximo ano ou esta presença no International Rights Market foi mais a título experimental?
Sim, desde que nos seja possível, será para continuar.
8) Qual foi a ideia com que ficaste sobre a percepção estrangeira em relação à banda desenhada portuguesa? Os estrangeiros reconhecem-lhe qualidade ou nem sequer sabem que a mesma existe?
Há obras e autores que chamam mais a atenção de uns e outros de outros. Mas no geral todas as obras que apresentámos tiveram alguém a reparar nelas. Acima de tudo acho que, tal como nós também tivemos essa experiência, cada vez mais há uma variedade de obras e autores de BD para descobrir em vários mercados.
9) Achas possível que no curto/médio prazo algumas editoras estrangeiras venham a adquirir os direitos para edição de obras nacionais?
Existem vários contactos e interesses em curso. Estes interesses e as negociações levam o seu tempo, tal como leva o seu tempo até se concretizar o interesse que nós próprios temos em algumas obras. Há três obras do nosso catálogo (e duas fora do catálogo) que penso terem boas possibilidades, mas também pode não dar em nada e sempre fiz questão de ter essa transparência com os seus autores.
Mas, por exemplo, o CoBrA - Operação Goa, do Marco Calhorda e do Daniel Maia, está nesta altura numa campanha de financiamento para ser publicado no Brasil e esse foi também um trabalho activo dos autores. E eu acho isso um acto de coragem e confiança dos autores no seu trabalho porque aceitam poder ou não concretizar o objectivo. Há quem não o queira fazer e o problema da internacionalização também passa pela "expectativa". A oferta de obras para ser publicada lá fora, sobretudo de França e Espanha, é imensa e quando se quer ter o direito adquirido de entrar logo pela porta grande isso não é fácil. Além disso, o mercado está a mudar até na forma de publicação. No caso de algumas propostas concretas que surgiram para obras que publicámos, posso dizer-te que optámos por abdicar dos nossos direitos contratuais e não interferir no processo, tendo passado os contactos aos autores ou seus representantes. Se entenderem que o anunciem, mas não digam que não lhes abriram portas.
10) Consideras que se mais editoras portuguesas seguissem o vosso exemplo de estar no International Rights Market isso ajudaria a credibilizar e a promover a banda desenhada nacional?
Uma coisa temos como certa: ninguém procura o que não conhece. Não faço ideia se haveria maior interesse por parte de editoras estrangeiras, mas não faz sentido que pelo menos não se tente. Não será por ficarmos à espera de apoios e ajudas que lá chegamos. Não é uma crítica, mas informámos a DGLAB de que iríamos estar presentes no sentido de nos indicarem apoios que existem à internacionalização de obras de autores nacionais e recebemos um link para um pdf (em português e inglês) para transmitirmos a potenciais interessados. Comparar isso com a máquina de exportação de alguns países é impossível.
11) Mudando agora o assunto em relação ao International Rights Market, gostaria de falar de outra valência de Angoulême. Visto que a vossa presença também vos permitiu, certamente, conhecer novas obras estrangeiras e fechar - ou começar - novos contratos para a publicação de novidades em Portugal, pergunto se nesse cômputo o evento também foi um sucesso para a Ala dos Livros.
Há algum tempo que temos vindo calmamente a fazer um investimento considerável e contínuo numa carteira de contratos. Neste momento temos obras contratadas que já nos asseguram a continuidade do plano editorial sem necessidade de estarmos a procurar novos contratos durante algum tempo, por isso fomos negociar interesses específicos. Claro que vimos mais alguns títulos interessantes, veremos se as possibilidades de os virmos a editar se concretizam. Cada vez somos mais selectivos nos títulos em que aceitamos entrar em leilões e recusamos publicar obras de autores que outras editoras assumiram e depois não continuam. Dou-te um outro exemplo concreto: tínhamos assinalado o "Deux filles nues" desde junho como potencial interesse, muito antes do prémio. Como era de esperar, com o prémio em Angoulême, apareceram logo propostas de Portugal. Não apresentámos proposta porque dificilmente o poderíamos publicar este ano com tudo o que já temos previsto. Se alguém quer e pode fazê-lo mais cedo, é mais justo para o autor e para os leitores que o faça outro editor. No mesmo dia avançámos com duas propostas a outros títulos e, ainda há dias, com outras duas.
Portanto, para quem anda a tentar perceber a nossa posição negocial, acho que já ficam com uma ideia. Estamos confortáveis com o nosso catálogo e com a nossa capacidade de investimento para aquilo que queremos publicar, mas não vamos contribuir para a "loucura" que se instalou nas negociações de alguns títulos e que até os editores estrangeiros reconhecem e aproveitam. Não partilhamos da ideia de que o mercado português de BD está tão fulgurante como querem fazer parecer para se praticarem alguns valores que têm estado em cima da mesa.
12) Por fim, e mesmo não querendo saber - pelo menos, por agora - quais as obras em concreto, pergunto se podes pelo menos avançar o número de novidades a publicar que a Ala dos Livros traz desta edição de Angoulême.
Temos 5 propostas em cima da mesa.
Edit: na verdade, tínhamos. Enquanto ia respondendo, soube que uma outra editora apresentou uma proposta de tiragem maior para uma proposta que tínhamos feito e deixámos cair, portanto as propostas que temos são agora 4 e assim passaremos ao próximo livro da nossa lista de interesses que não sendo uma novidade recente, em termos de plano editorial, será a agendar para T4 2026 ou T1 2027.
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