quarta-feira, 22 de maio de 2024

Análise: Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe

Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf - ASA - LeYa


Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf - ASA - LeYa
Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf

A ASA publicou recentemente o novo livro de Gaston Lagaffe que volta a dar vida à célebre personagem belga originalmente criada por André Franquin, um dos maiores mestres da banda desenhada mundial!

A publicação deste livro esteve envolta numa enorme polémica, pois a filha e herdeira de Franquin não havia autorizado que a franquia continuasse a ser explorada pela editora Dupuis, com o lançamento de novos livros. Mas, bem o sabemos, as empresas normalmente ganham sempre este tipo de processos. Nem que, para isso, se tenha que pagar avultadas indemnizações aos “lesados”. Não me cabe a mim julgar este tipo de processos, pois nem sequer sou conhecedor da argumentação de todas as partes envolvidas. Posso apenas falar como leitor. E, como leitor que sempre adorou Gaston Lagaffe - é, aliás, a minha série preferida dos clássicos franco-belgas onde poderemos considerar nomes tão grandes como Astérix, Lucky Luke, Tintin ou Spirou - devo dizer que fiquei atónito e imensamente feliz com a possibilidade de voltar a ler um livro com novas aventuras de Gaston Lagaffe. Talvez por isso, considerei este o livro que mais expectativa me estava a deixar para este ano 2024.

Dito isto, ficava apenas a faltar que o novo autor que agarrasse na série estivesse à altura.

Foi Delaf o escolhido para tal empreitada e, sem margem para dúvidas, podemos dizer que o autor esteve à altura de tamanha responsabilidade.

Os puristas - que sempre saem das tocas nestas ocasiões - dirão: “ah, isto não é tão bom como era”. Ou “vê-se bem que não é feito como o Franquin faria”. Não costumo cair nesse tipo de comentários de velho do Restelo. O que me interessa é sempre a obra, as personagens e a experiência de leitura. Obviamente, há que honrar e respeitar a memória e a obra original, bem como o autor da mesma, mas isso não deve ser um processo taxativo e/ou redutor na análise que depois fazemos à obra.

Na verdade - e dei-me ao trabalho de ter, lado a lado, um livro de Franquin e este novo livro de Delaf enquanto escrevo estas linhas, para tentar ser o mais objetivo possível - em termos de ilustração, Delaf consegue um trabalho absolutamente fiel à obra de Franquin. Com efeito, é tão fiel que, sinceramente, até é difícil encontrar diferenças. Poderemos admitir que, em alguns casos, o extremamente dinâmico traço de Franquin deixava as vinhetas com um pouco de mais ruído visual, devido à velocidade e dinâmica do seu traço, do que Delaf deixa, mas, ainda assim, tirando isso, esse desenho mais "limpinho" de Delaf, são pouquíssimas as diferenças. Podemos, pois, considerar que Delaf é um justo herdeiro e pupilo da escola Franquin no que à ilustração diz respeito.

Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf - ASA - LeYa
Quanto às histórias, Delaf também tenta emular o trabalho de Franquin. Talvez neste ponto não o faça de um modo tão fiel como o faz nas ilustrações, mas o resultado é, apesar disso, muito positivo. Este O Regresso de Lagaffe traz todo o tipo de piadas e mini-histórias divertidas, assente num “humor de situação” que consegue arrancar risadas ao leitor mais sensaborão.

Gaston Lagaffe não é uma série de piadas fabricadas, com os chamados punchline ao género de chalaça. Ao invés, é uma série que tem piada porque nos conta as peripécias potencialmente verídicas de uma personagem que tem tanto de exagerado como, ao mesmo tempo, de verosímil. 

Gaston trabalha na redação das Edições Dupuis e tem como objetivo o tratamento do correio que chega à empresa. Mas Gaston é daquelas pessoas cheias de ideias que acaba por ocupar o seu tempo laboral fazendo tudo menos aquilo para o qual é pago pelo empregador. Assim, tendo uma mente muito criativa, Gaston acaba por passar o seu tempo com as mais estapafúrdias invenções e ideias que, invariavelmente fazem os seus colegas, especialmente Prunelle, perder as estribeiras. Mas o que é certo é que Gaston acaba por nunca ser despedido pois, por debaixo de toda aquela loucura e preguiça que o caracteriza, está uma personagem humana, bem intencionada e carinhosa que também consegue derreter corações.

Tenho, aliás, para mim, que em qualquer empresa existe um Gaston. E digo até mais: poucos o admitirão, mas eu acho que todos temos um pouco de Gaston dentro de nós. E que bom isso é, pois num mundo capitalista, totalmente focado no número e na produção, fazem-nos falta os escapes, as fugidas da rotina, a criatividade, a alegria. O Gaston Lagaffe é, por isso, uma das minhas personagens favoritas. E não me refiro apenas à banda desenhada. Se fosse possível conhecer pessoalmente qualquer uma das personagens de ficção já inventadas na banda desenhada, no cinema ou na literatura, estou certo que Gaston Lagaffe estaria na minha shortlist.

Neste O Regresso de Lagaffe, Delaf recupera algumas das características mais comuns da personagem com a presença dos seus animais de estimação (um gato descabelado e uma gaivota de olhar embriagado), o gaffophone, o carro clássico Fiat 509 Taxi, o polícia narigudo, Fantásio e todas as personagens que os conhecedores da série lembrarão. Nada falta!

Uma coisa de que gostei neste regresso da série, foi que a linha temporal deste novo livro respeitasse o tempo cronológico em que a série foi feita - nos anos 70 e 80. Deste modo, não há nestas histórias os equipamentos tecnológicos que, no tempo atual, pontuam a nossa existência. Falo de telemóveis, da internet e da imensa tecnologia que nos circunda nos tempos atuais. Os automóveis que se veem na rua ou a tecnologia presente nos escritórios das Edições Dupuis, como telefones, mobiliário ou máquinas de escrever, são exatamente os mesmos que existiam nos anos 80. A mim, parece-me que esta foi uma decisão certa. Creio que, sendo a envolvente do escritório o espaço onde acontece a maioria dos disparates de Gaston, fazia mais sentido assumir essa pertença em detrimento de uma tentativa forçada de adaptar a personagem aos tempos recentes.

Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf - ASA - LeYa
Mesmo assim, há espaço para algumas mudanças por parte de Delaf. Que só começam a ser mais notadas na parte final do livro. É que, embora cada página tenha sempre um gag, uma mini história deste anti-herói, a verdade é que o autor vai introduzindo um tema central nas últimas páginas, com as mini-histórias a terem continuidade entre si e com a personagem de Gaston a sentir-se indesejável e "a mais" dentro das Edições Dupuis, depois de mais um acidente que acontece com a perda de algumas pranchas feitas pelo próprio autor Franquin e que colocam a possibilidade de a revista ter que fechar. No início, estranhei esta abordagem narrativa e admito que até comecei por torcer o nariz. Mesmo assim, à medida que ia progredindo na leitura, comecei a aceitar e a achar que esta nova abordagem até acaba por funcionar bem. Talvez porque não foi demasiadamente imposta e aconteceu de forma algo fluída.

Como ponto menos positivo, considerei que algumas das mini-histórias não funcionam tão bem como outras. É normal que isto aconteça num livro de gags humorísticos - e, naturalmente, também acontecia nos livros de André Franquin - mas, no caso deste O Regresso de Lagaffe, pareceu-me que, erradamente, Delaf procura em vários momentos a chegada ao punchline, com vista a fazer-nos sorrir na última vinheta da prancha, esquecendo que, como já referi, Gaston Lagaffe não é bem uma série de larachas finais ou punchlines. Ao invés, a personagem de Gaston é divertida por aquilo que faz. Por involuntariamente - porque Gaston é sempre bem intencionado - colocar os outros em ponto de ebulição. Por esse motivo, acaba por me parecer redundante que, em várias pranchas, Delaf volte a sublinhar uma piada que já estava subentendida pelo leitor na vinheta anterior. Faz lembrar aquelas pessoas que contam uma piada e depois se dão ao trabalho de explicar a piada que acabaram de contar. É redundante e acaba por ter o efeito contário de até fazer esmorecer o sorriso que tínhamos inicialmente na face. No futuro, continuando Delaf a trabalhar nesta série - como eu espero que continue - é apenas neste ponto que quanto a mim, o autor pode fazer um esforço para evoluir.

Porque, tirando isso, fiquei muito bem impressionado com este O Regresso de Lagaffe!

Em termos de edição, o livro apresenta capa dura baça e papel brilhante no miolo do livro, o que contrasta com a edição definitiva que a mesma editora tinha lançado há uns anos, que tinha capa dura brilhante e papel baço no interior. A impressão e a encadernação são de boa qualidade.

Em suma, voltar a ler Gaston em 2024 é como reencontrar aquele velho amigo de infância que, mesmo estando anos sem nos dizer nada, nos faz sorrir de forma nostálgica e exclamar para nós mesmos “que tempos bons foram aqueles!”

O escrutínio para o regresso de Gaston, uma das séries no panteão da melhor banda desenhada europeia de sempre, era mais que muito e Delaf estava sobre brasas... mas o que é certo é que, objetivamente, este é um regresso bem conseguido! Que sabe homenagear o génio Franquin - que era um mestre na comédia de situação e, claro, no desenho - enquanto nos volta a tocar o coração com uma personagem tão viciante e carinhosa como Gaston. Não é um regresso perfeito, mas é um regresso em grande. E que me deixa com o único desejo: que venham mais livros de Gaston!


NOTA FINAL (1/10):
8.8



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe, de Delaf - ASA - LeYa

Ficha Técnica
Gaston #22 - O Regresso de Lagaffe
Autor.: Delaf
Editora: ASA
Páginas: 48, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 299 x 215 mm
Lançamento: Abril de 2024

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