Tinha fortes expectativas para este livro. Não só porque me parece que o tema do sufrágio feminino e da luta das mulheres pelos seus direitos é assunto que não devemos esquecer, mas também porque estava especialmente intrigado com o que poderia vir deste livro.
Lançado, a propósito, no dia Mundial da Mulher, este Uma Mulher, Um Voto conta-nos a história, de forma verdadeiramente exaustiva (já lá irei), de como as mulheres espanholas lutaram e conquistaram - aos poucos, porque ainda há trabalho a precisar de ser feito – os seus direitos mais básicos, com o direito ao voto no topo da lista.
O livro é, pois, uma viagem ao passado, em que a argumentista Alicia Palmer nos dá uma história devidamente documentada em termos cronológico-históricos sobre a luta da classe feminina em Espanha. Para tal, revela-nos de forma detalhada a relevância de Clara Campoamor na consciencialização política de Espanha, numa primeira fase, até à conquista do direito ao voto (que somente foi conquistado em 1931) e da participação cívica das mulheres espanholas, numa etapa seguinte.
Paralelamente, este Uma Mulher, Um Voto conta-nos a história pessoal de Mari Luz, uma mulher da aldeia que chega a Madrid para trabalhar na Real Fábrica de Tabacos. Mesmo sendo uma mulher de um meio menos urbano, depressa se começa a interessar pelo tema dos direitos femininos através do contacto que vai tendo com as outras mulheres da fábrica de tabaco. A observação da vida de outras mulheres da fábrica, bem como as conversas que com elas enceta, permitem a Mari Luz ganhar consciência das injustiças que, então, afetavam as mulheres e de como a sociedade estava pensada para assegurar direitos aos homens e relegar a mulher para um segundo plano.
É a história desta Mari Luz que torna a leitura de Uma Mulher Um Voto mais interessante e menos sofrível porque, de facto, e por muito que o tema da obra seja muito interessante e bem-vindo, Alicia Palmer apresenta algumas debilidades ao nível narrativo, não revelando capacidade de resumo dos acontecimentos e, por conseguinte, pecando em nos dar um texto demasiado grande, demasiado complexo, demasiado burocrático, demasiado preso a detalhes que tornam a leitura por demais maçuda.
Além de que tenho que dizer que, na minha coleção com centenas (milhares?) de livros de banda desenhada, este deverá ser o livro com mais texto por vinheta - mesmo que as imagens que aqui partilho, que foram divulgadas pela editora, o possam não demonstrar. Pelo menos, assim de cabeça, não me lembro de nenhum livro de BD que deposite tanto texto nas pranchas. Os próprios livros da série Blake e Mortimer, conhecidos pelas vinhetas sobrecarregadas de texto, parecem livros mudos quando comparados com este Uma Mulher, Um Voto. Aqui, chegam a existir páginas, como as 31, 32, 33, 103 ou a impensável e inacreditável página 106, em que cada prancha é uma autêntica nuvem de texto. Questiono-me até que ninguém próximo da autora lhe tenha dito, antes da edição original da obra, algo como: “precisas de limpar dois terços do teu texto”. O potencial da obra era grande, mas esta característica impede o livro de ser recomendável, quanto a mim.
Os desenhos de Montse são bastante agradáveis em termos conceptuais, com as personagens a apresentar um estilo naïf e, ao mesmo tempo, belo. No entanto, é verdade que as personagens são todas muito semelhantes entre si, sendo confundíveis em vários casos. Acredito que se, em vez de os desenhos serem a preto e branco, com a presença de tons a cinza, a obra fosse a cores, as ilustrações de Mazorriaga ganhariam com isso, alcançando mais variedade.
Naquilo em que, porém, a autora nos oferece um belíssimo trabalho, é no desenho de cenários citadinos, onde os tons cinzentos a aguarela oferecem às ilustrações uma assinalável beleza. Infelizmente, esta valência da autora talvez não seja tão aproveitada pela já referida exacerbada existência de enormes diálogos e informação.
Focando na breve história, com 10 páginas, intitulada A Fonte das Marias, que procura mostrar a luta das mulheres pelos direitos da mulher em Portugal, temos uma muito contida, embora eficaz, história com argumento de Pedro Vieira de Moura e desenhos de Matilde Feitor. É especialmente curioso que esta história pareça ser a exata antítese da história sobre a realidade espanhola. Porque, enquanto essa é demasiado maçuda e informativa, a história dedicada à luta pelos direitos da mulher em Portugal tem a função de “overview”, servindo como um enquadramento geral de como têm sido alcançados os direitos das mulheres portuguesas ao longo da História. É um relato simples, escorreito e direto. Funciona bem.
Os desenhos de Matilde Feitor convenceram-me pela portugalidade, pelas manchas de preto - a fazerem-me lembrar, com as devidas distâncias, o trabalho de João Sequeira, com quem Pedro Vieira de Moura também já trabalhou. Além disso, sendo um estilo de ilustração bastante diferente do da autora espanhola, parece-me que, mesmo assim, o traço da autora portuguesa não faz um corte demasiado brusco com o de Mazorriaga. Há, pois, uma certa harmonia visual entre as duas histórias que é bem-vinda.
Em termos de edição, tenho que tirar o chapéu à editora Levoir nesta obra. O livro apresenta capa mole, com badanas, e, no miolo, bom papel baço que é a escolha indicada para os desenhos de Montse Mazorriaga. No início, há um prefácio escrito por Joana Figueiredo Fernandes que nos revela factos curiosos sobre o sufragismo lusitano. O grafismo do livro também está bem conseguido, com a indicação na capa para a história inédita em português, sem com isso corromper ou desvirtuar (em demasia) a capa original da obra.
Voltando à história sobre o sufrágio português, devo dizer que me parece louvável que a editora tenha apostado em oferecer aos leitores portugueses o lado português. É claro que se compreende a lógica comercial da editora que, desta forma, consegue fazer com que a obra tenha mais appeal comercial para o mercado nacional. Mas, e olhando para todo o quadro, por outro lado, acho que esta opção também beneficiou o leitor, mostrando-lhe o lado português. Alguns poderão considerar que isto é uma forma de desvirtuar a obra, mas, assumindo que as autoras espanholas foram informadas desta iniciativa e que, expetavelmente, até a aplaudiram, parece-me uma atitude da Levoir que merece vénias. O livro tem ainda seis páginas com documentação e notas sobre a informação que nos vai sendo dada ao longo da leitura.
Em suma, e apesar do bom trabalho de edição nesta obra, que até soube adicionar à obra original um novo e bem-vindo capítulo sobre a realidade portuguesa, Uma Mulher, Um Voto é uma banda desenhada política que, infelizmente, se preocupou apenas em ser uma boa e relevante obra política, tendo descurado a parte de ser uma boa banda desenhada.
NOTA FINAL (1/10):
5.8
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Uma Mulher, Um Voto
Autoras: Alicia Palmer e Montse Mazorriaga
Editora: Levoir
Páginas: 192, a preto e branco
Encadernação: Capa mole
Formato: 170 x 240 mm
Lançamento: Março de 2024
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