A editora Relógio d’Água lançou recentemente a adaptação para banda desenhada da obra-prima de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, escrita originalmente em 1932. À semelhança de um 1984, de George Orwell, ou de um Nós, de Zamiatine, esta é uma das distopias mais famosas da literatura mundial e, convenhamos, uma adaptação para banda desenhada era, quanto a mim, bem-vinda. O responsável por tal feito, é Fred Fordham, de quem a editora Relógio D’Água até já publicou Mataram a Cotovia, outra adaptação de um romance literário que, por acaso, me agradou muito.
Ora, dito tudo isto, estava bastante intrigado com este Admirável Mundo Novo pelas mãos e mente de Fred Fordham, já que sou um grande admirador do romance original de Huxley. E, com efeito, esta é uma adaptação que, mesmo podendo não ser perfeita, consegue bastantes feitos e honra a obra original.
A história passa-se num futuro distante onde a humanidade vive sob um regime totalitário que utiliza a biotecnologia, a engenharia genética e o condicionamento psicológico para manter o controlo social dos humanos. A obra aborda temas como a perda da individualidade, a manipulação do comportamento humano e a superficialidade das relações sociais num mundo claramente dominado pela tecnologia. Parece próximo do mundo em que vivemos? Sim, diria que sim. De facto, Aldous Huxley foi verdadeiramente visionário com esta obra escrita há quase 100 anos.
O livro descreve uma sociedade altamente organizada e tecnologicamente avançada, na qual as pessoas são produzidas em massa em laboratórios, geneticamente modificadas e condicionadas desde o nascimento para pertencer a uma das várias castas sociais. Estas castas são rigidamente hierarquizadas, com os Alfas no topo, destinados a posições de liderança, e os Ípsilones na base, destinados a trabalhos braçais. A estabilidade social é mantida através do uso de uma droga chamada "soma", que proporciona prazer e alívio do stress sem efeitos colaterais negativos aparentes. A liberdade individual é sacrificada em nome da estabilidade e da felicidade superficial. As emoções são suprimidas e as artes, a religião e a filosofia são praticamente inexistentes, uma vez que poderiam gerar questionamentos e instabilidade.
Um dos temas centrais do livro é também o contraste entre o controlo totalitário exercido pelo Estado e a perda de liberdade individual. A sociedade descrita em Admirável Mundo Novo prioriza a estabilidade e o bem-estar coletivo, mas isso é alcançado à custa do suprimento da individualidade e da liberdade pessoal. Os cidadãos são, pois, condicionados a aceitar o seu papel na sociedade sem se poderem questionar. E se estiverem descontentes em algum dos seus dias, uma dose de “soma” fá-los-á ficarem automaticamente felizes com a vida.
A obra ainda levanta questões sobre o uso da tecnologia para controlar e desumanizar a sociedade e, também, a superficialidade de um consumismo sem travão por parte da sociedade moderna, já que os habitantes deste “admirável mundo novo” são incentivados a procurar prazer imediato e gratificação instantânea, evitando qualquer tipo de reflexão ou desconforto emocional. Por esse motivo, ninguém estabelece relações familiares e toda a gente é independente. Mesmo ao nível da sexualidade, os parceiros sexuais não devem ser repetidos ou mantidos. O sexo é praticado pelo prazer físico do ato e não por questões amorosas.
Bernard Marx, o protagonista, é um Alfa que se sente deslocado devido a sentir uma certa insatisfação com a sociedade que o rodeia, tornando-o crítico do sistema. Quando este faz uma viagem com Lenina Crowne até ao mundo selvagem – onde as pessoas levam uma existência mais próxima daquela que vivemos – encontram John, o Selvagem. E é a vinda deste personagem para o “admirável mundo novo” que leva o leitor a ter dois pontos de vista diferentes e a mergulhar nas críticas que a obra faz à sociedade humana. Um exercício deveras interessante, a meu ver. E que prova que a obra se mantém atual nos dias de hoje.
Olhando para a adaptação de Fred Fordham para banda desenhada, considero que o autor conseguiu captar a essência da obra original. Se é verdade que, do ponto de vista narrativo, por vezes Fordham parece deixar o leitor algo desorientado, perdendo o fio à meada se não conhecer bem a obra original, a verdade é que o autor foi especialmente bem sucedido na reimaginação do mundo onde decorre a ação. Havia discrições na obra original, sim, mas Fred Fordham acabou por adaptar os cenários, a tecnologia presente, os edifícios e as próprias indumentárias das personagens a um futuro que podemos considerar (mais) próximo da realidade em que vivemos no ano 2024 e, por conseguinte, como sendo mais verosímil. A mim, convenceu-me esta abordagem visual que o autor faz da obra de Huxley.
Há uma certa sensação de despovoamento face aos cenários demasiado vazios, mas, por uma vez, parece-me que isso era tudo o que era necessário numa obra deste calibre. É que o universo de Admirável Mundo Novo é totalmente vazio, clean e acético.
E uma nota positiva tem que ser dada à forma como Fordham representa as exuberantes festas e orgias sexuais, através de cores fortes e garridas que poderiam lembrar o filme Blade Runner – ou, já agora, a banda desenhada Neon, da portuguesa Rita Alfaiate. Esta utilização da cor por parte de Fordham resulta muito bem para mostrar a superficialidade e surrealismo de uma falsa felicidade que assenta na utilização de drogas e no sexo sem barreiras.
Mesmo assim, também é verdade que, por vezes, os diálogos me pareceram algo longos em demasia. Compreendo que parte de uma distopia é explicar - através da narração ou dos diálogos - esse próprio universo distópico, mas, mesmo assim, talvez alguns diálogos pudessem ser um pouco mais pequenos.
E também é verdade que certos desenhos apresentam, por vezes, pouca definição nas linhas de contorno das personagens. Não consegui perceber se tal se devia à própria arte original de Fordham ou se isso tem que ver com algum erro ou imperfeição a nível editorial e de impressão. Não pude comparar com a versão original da obra. Mesmo assim, é algo negativo e que saltou à minha vista por diversas vezes.
A edição da Relógio d´Água é, como já vem sendo hábito, em capa mole e com bom papel baço no interior e um bom trabalho ao nível de encadernação, embora me pareça que o livro, enquanto objeto físico, beneficiaria se tivesse badanas.
De qualquer maneira, realço com satisfação a continuação da aposta da editora no lançamento de banda desenhada. É certo que das nove bandas desenhadas lançadas, sete delas são adaptações de obras da literatura mundial e apenas duas foram primeiramente pensadas e projetadas para banda desenhada (O Segredo da Força Sobre Humana e Patos), mas isso não invalida que seja positivo que a editora persista no lançamento de banda desenhada. Que assim continue!
Concluindo, pode-se dizer que Admirável Mundo Novo não seria, à partida, uma obra fácil de adaptar para banda desenhada, mas que Fred Fordham se sai bem nessa empreitada. E, convenhamos, a própria opção por tornar mais presente e mais atual esta obra, que assenta numa crítica poderosa às tendências autoritárias e tecnocráticas da sociedade moderna, também é mais que bem-vinda. Afinal de contas, Admirável Mundo Novo continua a ser relevante hoje, provocando reflexões sobre o papel da tecnologia na sociedade e os limites do controlo estatal sobre a vida humana.
NOTA FINAL (1/10):
8.6
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Admirável Mundo Novo - Romance Gráfico
Autor: Fred Fordham
Adaptado a partir da obra original de: Aldous Huxley
Editora: Relógio d’ Água
Páginas: 244, a cores
Encadernação: Capa mole
Formato: 16,3 x 23,5 cms
Lançamento: Maio de 2024
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