Uma das coisas boas que a arte tem, é aquela que nos faz mudar. Que nos faz pensar. Que nos alarga os horizontes. Patos - Dois Anos nas Areias Petrolíferas, de Kate Beaton, editado pela Relógio D’Água, é uma dessas bandas desenhadas que lança luz para um tema que se tem mantido nas sombras. Melhor dizendo, o tema nem tem estado propriamente “nas sombras”, mas talvez não tenha recebido a "iluminação certa", por assim dizer. E uma coisa que acho interessante e curiosa é que, comercialmente falando, esta obra tenha sido apresentada como “um testemunho sobre as Areias Petrolíferas do Canadá”. Sim, é esse o enquadramento. Mas será o enquadramento básico e mais preguiçoso. Porque apresentar Patos apenas como isso, é deveras redutor. Isto porque, e voltando ao tema que considero não estar a ser devidamente “iluminado”, Patos é uma obra onde nos é revelado o quão desagradável e intrusiva pode ser a relação mundana e casual de uma mulher com homens. Especialmente, se for num local onde a maioria da população é do sexo masculino.
Muito se tem dito e escrito sobre o tema e é comum e natural que o mundo esteja, silenciosa e gradualmente a mudar. As mulheres são, nos dias de hoje, mais respeitadas do que eram há 10 anos, há 50 anos, há 100 anos. Ótimo! No entanto, quer parecer-me que o tema do assédio é parcamente explicado. Especialmente o “assédio leve”. Se é que podemos chamar “leve” a qualquer que seja o tipo de assédio. O que é o assédio, afinal de contas? Sei que é um tema que é amplo e que dá pano para mangas. E que, infelizmente, será sempre avaliado através de uma ótica de subjetividade. Por mais objetivos que, enquanto sociedade, tentemos ser. Mas o assédio não é apenas o toque ou o contacto sexual sem permissão do/a outro/a. E é sobre isso que Patos nos convida a refletir. Sempre nas entrelinhas.
A história é-nos contada na primeira pessoa por Kate Beaton, autora canadiana, natural do Cabo Bretão, onde as oportunidades de acesso a uma vida mais condigna não são tão fáceis como o mundo ocidental gostaria de admitir. E, para complicar a situação, e à boa maneira da realidade norte-americana, Kate contrai um empréstimo para pagar os seus estudos universitários. E agora que os terminou, o seu primeiro objetivo é liquidar essa dívida. Para tal, a proposta mais ajustada parece ser o rumo ao oeste, em busca de um trabalho, que pague bem, nos campos de extração de petróleo de Alberta - as "areias petrolíferas”. Tal como o capitalismo norte-americano tem assumido, desde sempre, os trabalhos em indústrias rentáveis são bem pagos e aceitam o trabalho de qualquer um. Mas, claro, sempre a troco de um trabalho árduo e constante.
Convicta de que esta é a forma de amealhar rapidamente algum dinheiro, a jovem Kate, com apenas 22 anos, parte para as areias petrolíferas, mesmo que os seus pais tenham alguma dificuldade em aceitar a sua escolha. Mas é só quando chega ao oeste canadiano que Kate se depara com as condições duras de trabalho que ali se vivem. As habitações são precárias, o frio é muito e, mais importante que isso ainda, ali leva-se uma existência onde o isolamento é enorme e a solidão é uma constante. E muitos dos que ali trabalham optam pelo recurso às drogas recreativas para fazerem face ao seu duro e solitário quotidiano. Isto já seria um complexo conjunto de privações para ter de enfrentar e, sinceramente, achei que era “apenas” sobre isso que o livro tratava. Porém, e afinal de contas, o tema do assédio constante, gratuito e quase fisiológico por parte dos colegas de Kate é, por ventura, o tema mais premente e subjacente a todos os intentos artísticos da autora. Pelo menos, foi isso que mais me ficou na retina.
E o que achei especialmente curioso não é o tema que, como já referi, até tem sido bastante explorado em criações artísticas (não só em banda desenhada). Não. O que considerei curioso é a forma meramente ilustrativa e referencial que a autora utiliza para nos introduzir a esse tema e a essa experiência pessoal. Não vemos em Patos grandes cenas dramáticas que ilustrem o assédio constante que ali se vive (salvo duas marcantes e amarguradas exceções). Ao invés, o que observamos é um quotidiano onde o assédio, o piropo e a insinuação dos homens é uma constante na rotina diária laboral de Kate. E por dois motivos apenas: só porque ela é uma mulher e porque está num universo laboral onde há 50 homens por cada mulher.
Poderão dizer-me - e eu confesso já o ter dito algumas vezes, noutras ocasiões - “Ah, mas um piropo é uma coisa assim tão má? Um piscar de olho é assim tão desconfortável? Perguntar a uma mulher se ela tem namorado é assim tão mau?”. Eu tinha uma resposta para estas questões, mas, depois de ler Patos, não tenho pudores em admitir que a minha resposta automática pode ter mudado. Talvez essas perguntas não sejam assim tão más, admito, mas, e é este o ponto que devemos reter: apenas e só quando são ditas de uma forma avulsa e rara. Não quando essas perguntas são ditas constantemente. A toda a hora. Em qualquer ocasião. E foi precisamente nesse ponto que Kate Beaton conseguiu fazer surgir uma mudança no meu entendimento da questão. E no entendimento de muitos outros homens e mulheres, espero.
Com efeito, são tantas e tantas as vezes que, durante as mais de 400 páginas desta obra, vemos este tipo de assédio, chamemos-lhe, com precaução, o “assédio leve”, que, às tantas, se torna enfadonho e chato. Dei comigo a pensar: “mas será que estes homens podem deixar a mulher em paz?”. Mas, imaginem, se ler um livro me fez ficar cansado pelo constante “assédio leve” de que as mulheres são alvo, imaginem o que é ser uma mulher a viver isto durante toda uma vida. É, portanto, nesse ponto que Patos consegue sobressair face às restantes obras que abordam temas semelhantes. Não sei se este exercício narrativo, repetitivo, foi meramente involuntário… mas lá que resultou, disso não há quaisquer dúvidas.
O tema do assédio não se fica por aqui. Kate Beaton vai mais longe, ao chamado “assédio pesado”, e retrata-nos duas violações de que é vítima por parte de colegas. Estava embriagada, sim. Mas, na hora da verdade, a sua mente e o seu corpo disseram-lhe que não queria envolver-se sexualmente com aquelas pessoas. E referiu que não queria avançar no ato. Mas os homens com quem estava naqueles momentos não quiseram saber disso. Aqui o relato torna-se, expetavelmente, mais chocante, deixando o leitor com um nó na garganta. E o trabalho narrativo-visual da autora nestes dois momentos é muito bem conseguido, procurando não ser gráfico, mas sim deixar nas entrelinhas, naquilo que não é dito nem é desenhado, o drama vivido. Além de que não é todos os dias que vemos um autor a contar na primeira pessoa um trauma semelhante a este. Tiro o chapéu à forma corajosa com que a autora se expõe em Patos.
De resto, e falando da história, vão-nos sendo dados vários momentos do dia-a-dia da autora. Em termos de narrativa, não gostei muito que a história avançasse, de vez em quando, em saltos temporais, sem mais nem menos. Pareceu-me algo abrupto. Não é grave, mas esses saltos temporais poderiam ser dados de forma mais orgânica.
Falando nos desenhos, o trabalho de Kate Beaton não me deixou especialmente cativado, embora tenhamos que admitir que as ilustrações que nos são dadas têm a eficiência necessária para contar a história. Contudo, devo admitir que como são várias as personagens com quem Kate se vai cruzando ao longo da sua estadia de mais de dois anos nas areias petrolíferas, por vezes torna-se difícil para o leitor perceber que personagem é aquela, dado que todas elas são tão semelhantes, talvez pelo facto de a autora não dispor da capacidade de, visualmente falando, conseguir diferenciar suficientemente bem as várias personagens com o seu desenho simples, “cartoonesco” e linear. Talvez até seja por isso que, no início de cada capítulo, a autora nos presenteia com uma página com uma legenda de “quem é quem” no capítulo que se segue.
Mesmo assim, com uns desenhos que não são propriamente belos, a autora conseguiu dois pontos que considero bastante positivos: por um lado, a opção por uma bicromia, com uma paleta em tons de azul, foi uma boa escolha, dando unidade visual à obra e conseguindo aquele efeito gelado que nos remete bem para o frio experienciado pelas personagens; por outro lado, na parte das ilustrações dos cenários, a autora conseguiu revelar um bom talento técnico, sendo capaz de transpor para os seus desenhos a grandeza, solitude e aridez das areias petrolíferas, bem como a sensação de pequenez do homem - ou, neste caso, da mulher - face à maquinaria industrial de proporções gigantescas com que estas empresas de extração de petróleo operam.
A edição da Relógio D’Água é em capa mole, com badanas, e com um belo papel que aumenta a espessura e robustez da obra. A impressão e a encadernação são boas, embora eu recomende que os leitores tenham cuidado a manusear o livro quando o lerem. Como é um livro muito espesso e em capa mole, se, durante a leitura, o abrirem muito, ficarão com a lombada carregada de vincos. Tive muito cuidado com o meu exemplar e, mesmo assim, não pude evitar que o mesmo não ficasse com alguns vincos. A edição desta obra é ainda complementada com a introdução de um posfácio por parte da autora.
Permitam-me que vos deixe com a nota de que as imagens promocionais partilhadas pelo site da editora para este livro, que eu trambém partilhei aqui no Vinheta 2020 há uns dias, não correspondem à impressão do trabalho. Por alguma razão, essas páginas promocionais não apresentavam os contornos nos desenhos mas, felizmente, isso não acontece na impressão do livro, que é boa. Como tal, permitam-me sossegar-vos quanto a isso. Podem comprar o livro à confiança, sem medo desta questão.
Esta é, pois, uma obra bastante completa em todos os pressupostos que traz consigo. Por um lado, é um livro sobre o “assédio leve” dos homens perante as mulheres, que dura uma vida e com o qual as mulheres têm de viver. Por outro lado, a obra oferece-nos outro tipo de reflexões relevantes. Sendo que uma delas é a constatação que, mesmo num país tão desenvolvido como o Canadá, que é porta de entrada para uma multiplicidade de etnias e onde todos são bem-vindos e bem acolhidos, atualmente ainda são dadas condições de trabalho muito precárias aos cidadãos e continua-se a apostar em indústrias com uma pegada ambiental tão grande e tão devastadora. Portanto, quer queiramos, quer não, acaba por ser o capitalismo o grande ditador do modus vivendi do país.
Em suma, é um livro que acabou por me encher as medidas. Não fiquei logo tocado ou impressionado com aquilo que Kate Beaton parecia ter para nos oferecer, mas, à medida que ia progredindo nas mais de 400 páginas deste colosso, acabei por me render à evidência que este será um dos grandes livros (no sentido qualitativo) de banda desenhada, lançados em Portugal, em 2024. Dou os parabéns à Relógio D’Água pela proposta. Este passou a ser o melhor livro de banda desenhada do catálogo da editora.
NOTA FINAL (1/10):
9.0
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Patos - Dois Anos nas Areias Petrolíferas
Autora: Kate Beaton
Editora: Relógio D'Água
Páginas: 440, a cores (em tons de azul)
Encadernação: Capa mole
Formato: 17,15 x 22,86 cm
Lançamento: Fevereiro de 2024
Pela dimensão a obra merecia capa dura, definitivamente. Assim os cadernos (espero que cosidos..) estarão colados á lombada que, como o Hugo refere, correrá o risco de quebrar ou descolar. Aqui ao lado (Espanha) a obra teve direito a capa dura (Norma), assim como nos EUA, Reino Unido, Alemanha, Itália, etc... Continua por explicar porque é que a Relógio D'Água não respeitou a tipografia original da capa.
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