segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Análise: Primo Levi

Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público

Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público
Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci

Sendo este texto sobre a banda desenhada Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci, permitam-me que comece por um comentário à globalidade da última coleção de Novelas Gráficas da Levoir. É que, quantos mais livros vou lendo desta última coleção, mais satisfeito perante a globalidade qualitativa da mesma eu vou ficando. Especialmente porque muitos dos livros que esta série nos trouxe, eram de perfeitos desconhecidos para mim. O que acaba por ser valioso em duas vertentes: por um lado, e isso é por demais óbvio, se os livros que a coleção nos propõe forem bons, a coleção sê-lo-á também; por outro lado, e também digno de mérito, a coleção acaba por assumir uma função de curadoria, propondo obras ao público português que, de outra forma, dificilmente seriam lidas por cá.

Primo Levi é uma dessas obras. Admito que estava à espera de uma biografia mais clássica, na forma, de Primo Levi, o sobrevivente italiano de Auschwitz que se tornou célebre com o seu livro Se Isto É Um Homem, que narra os acontecimentos vividos pelo mesmo no campo de concentração nazi. Se isso já era bom e relevante, aquilo que o argumentista Matteo Mastragostino nos propõe, é muito mais bem conseguido e audaz. Ao invés de uma releitura, através da banda desenhada, de Se Isto É Um Homem, o argumentista procurou colocar a pessoa de Primo Levi num contexto concreto e, a partir daí, especular sobre como seria ele no final da sua vida, quando partilhasse a sua experiência junto de crianças numa sala de aula. Portanto, partindo de uma personalidade real, o autor opta por traçar toda uma narrativa fictícia. Embora, claro está, se faça valer de muitas coisas que pôde estudar sobre Primo Levi.

Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público
E, portanto, é claro que esta não é uma especulação “pura e dura” pois, conforme o autor nos revela já no final do livro, para imaginar esta história, Mastragostino fez-se valer de muita documentação e textos sobre Primo Levi que consubstanciam aquilo que nos é dado. Portanto, diria que estamos quase perante uma ficção adaptada da realidade… ou uma realidade subtraída da ficção, se preferirem.

A história começa, pois, quando Primo Levi é convidado para falar do holocausto às crianças de uma escola primária em Turim. A mesma escola que Primo Levi tinha frequentado em criança. Quando o recebem, as crianças, como é natural, começam por mostrar-se irrequietas e rebeldes, revelando até alguma desilusão por verificarem que o tal “herói” que lhes tinham prometido que iria à escola falar de guerra era, na verdade, um velho frágil e magro ao invés do soldado guerreiro que as suas criativas e férteis mentes infantis tinham congeminado. Mas, à medida que o relato de Primo Levi vai avançando, as crianças começam a sentir afinidade pelo narrador de tamanha experiência.

O que achei muito bom do ponto de vista da narrativa, é a forma como o argumentista intercala bem os momentos dentro da sala de aula, com a parte em que é narrada o passado do protagonista. É tudo feito com uma orgânica muito boa e nada forçada, com uma perfeita fluidez. E isto não é algo tão frequente assim.

Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público
Por outro lado, também apreciei que a história não fosse demasiadamente “piegas” ou artificialmente feita para chocar. Deixem que me explique melhor: é óbvio que qualquer história, ainda por cima baseada em factos reais, sobre os crimes hediondos feitos nos campos de concentração nazis, vai ser sempre chocante e fazer com que fiquemos com um nó nas gargantas. Isso é um dado adquirido e esta banda desenhada não é exceção. Preparem-se para uma leitura pesada, triste e chocante. No entanto, não me parece que Matteo Mastragostino tenha abusado dessa valência óbvia dos acontecimentos, explorando mais do que o devido toda a aura negra e dramática dos eventos retratados. Não me pareceu de todo que a violência aqui contada ou descrita seja gratuita.

Quanto às ilustrações de Alessandro Ranghiasci, devo dizer que as mesmas acabaram por me convencer. Inicialmente, não fiquei muito entusiasmado, pois pareciam-me personagens algo vazias em termos imagéticos, mas, à medida que a minha leitura ia progredindo, acabei por começar a gostar do traço do autor, bastante rabiscado e sujo, que me fez lembrar, curiosamente, outros dois autores italianos: Gipi (O Local) e Andrea Ferraris (Churubusco ou A Cicatriz). Com as devidas diferenças, claro, como sempre relembro quando faço este tipo de comparações.

Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público

As ilustrações aqui presentes são daquelas que, como diz o chavão, “primeiro estranham-se, mas depois entranham-se”. E assim foi comigo. E dou ainda nota de que a forma como o autor ilustra as caras infelizes e desesperançadas dos prisioneiros do campo de concentração e, em sentido contrário, as caras felizes, leves e ingénuas das crianças que, felizmente, não tiveram que passar por uma experiência deste gabarito, é verdadeiramente impactante. No final, acabei por gostar muito destas ilustrações que defendem bem o bom argumento de Mastragostino.

Só numa coisa, o trabalho do ilustrador me deixou desiludido: na capa do livro. E não é que a capa tenha um mau desenho. Na verdade, até ilustra bem a figura de Primo Levi. Mas é uma ilustração completamente desinspirada, que parece uma fotografia tipo passe, sem qualquer alma ou appeal comercial. Há capas que ajudam a vender os livros e há capas que ajudam a não vender os livros. Infelizmente, a capa deste Primo Levi enquadra-se – indubitavelmente! - no segundo grupo.

Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público
Quanto à edição da Levoir, sendo um dos livros da coleção das Novelas Gráficas, temos aquilo que poderíamos esperar: capa dura, papel decente e boa encadernação. Não gostei muito que o preto dos desenhos de Ranghiasci fosse muito esbatido, por vezes. Mas creio que isso é uma opção do autor e que a Levoir apenas reproduziu o livro tal como era na sua versão original. Pelo menos, espero que tenha sido isso que aconteceu. Refira-se que este livro recebeu uma segunda edição, colorida, em Itália. Confesso que gostaria que tivesse sido essa edição a ser publicada por cá, mas também compreendo - e acho que se aceita bem - a decisão da Levoir em editar a versão original da obra.

O livro inclui ainda um prefácio de Francisco Louçã que, com alguma pena minha, divaga um pouco em demasia face à obra que temos em mãos. Mas, no final do livro, há importantes extras: uma nota do argumentista que explica muito bem a abordagem que o mesmo pretendeu dar a este livro, uma cronologia da vida de Primo Levi e, por último, as biografias de quatro das pessoas com quem Primo Levi se relacionou por altura do seu tempo passado em Auschwitz.

Portanto, em suma, Primo Levi é uma excelente leitura e mais uma das belas propostas que a última coleção das Novelas Gráficas da Levoir nos trouxe. Um belo e sério livro, bem esculpido em termos de argumento, e com umas ilustrações que, podendo parecer algo estranhas à primeira vista, acabam por fazer justiça a um testemunho tão relevante para a História como o de Primo Levi que convém, por isso, que nunca seja esquecido. Este é um livro que se recomenda!


NOTA FINAL (1/10):
8.9



Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020


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Primo Levi, de Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci - Levoir e Público

Ficha técnica
Primo Levi
Autores: Matteo Mastragostino e Alessandro Ranghiasci
Editora: Levoir
Páginas: 128, a preto e branco
Encadernação: Capa dura
Formato: 190 x 280 mm
Lançamento: Outubro de 2023

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