Começo por dizer o óbvio: adaptar para banda desenhada Mensagem, de Fernando Pessoa, essa obra incontornável da literatura portuguesa, parece-me um verdadeiro cabo dos trabalhos. Uma demanda verdadeiramente hercúlea! Não só por ser um trabalho em poesia, com um texto complexo e rico, e com um tema histórico-contemplativo, mas também por ser uma obra carregada de insinuações, interpretações, misticismos e mensagens subliminares. E, ainda por cima, é uma obra onde o seu texto assenta, em termos de forma, numa estrutura bastante rígida. Digo-vos mais ainda: não sei se consigo pensar numa obra da literatura portuguesa mais difícil de adaptar para banda desenhada. Não me espanta por isso que, Silvia Reig, responsável da editora Levoir, que edita esta obra na sua coleção de Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, tenha referido numa entrevista que deu à televisão (!) que houve um primeiro argumentista que acabou por desistir da ideia de adaptar para banda desenhada esta obra de Fernando Pessoa. Esse argumentista não fui eu… mas bem que podia ter sido!
O trabalho acabou por ficar assente nos ombros de Pedro Vieira de Moura que, sabiamente, fez as escolhas certas na forma como abordou a emblemática obra de Fernando Pessoa. O trabalho de Vieira de Moura foi, por isso, bastante sóbrio e acertado, quanto a mim.
É claro que, como quase tudo o que Fernando Pessoa escreveu, há nesta - e em qualquer outra - adaptação de Mensagem uma verdadeira dose de interpretação, tal não é profundo e profícuo o universo ao qual o maior autor da literatura portuguesa de sempre nos convida a entrar nesta obra. Sim, eu sei: foram muitos os estudiosos e académicos que interpretaram e decifraram as analogias, figuras de estilo e mensagens subliminares contidas na própria Mensagem. No entanto – e nem tentem dizer-me o contrário! – os estudos que se fazem sobre esta obra são sempre meramente especulatórios e potencialmente redutores. Ainda assim, pode-se afirmar com propriedade que a obra reflete sobre a identidade nacional de Portugal, explorando temas como a história, a mitologia, a religião e a saudade. Tudo isto são elementos intrínsecos à cultura portuguesa e são-nos dados por Fernando Pessoa através de um rico e complexo relato poético.
Pedro Vieira de Moura optou por deixar o texto como ele é, tentando respeitar também as três partes que dividem a obra: “Brasão”, “Mar Português” e “O Encoberto”. Para isso, o autor decidiu incluir no cimo das pranchas uma referência às partes concretas do poema a que as pranchas dizem respeito. Foi uma escolha acertada, pois não só serve como uma certa forma de mapeamento do próprio momento da obra em que estamos, como acaba por ter um cariz didático. Estou a imaginar um jovem que está a estudar a Mensagem na escola e, com esta banda desenhada, e graças às tais referências de que falo, consegue visualizar e, quiçá, perceber melhor as palavras do mestre Fernando Pessoa.
Pedro Vieira de Moura poderia ter interpretado, por palavras suas, o significado da Mensagem, mas optou, e bem, por se resguardar dessa empreitada, sendo fiel ao texto original da obra. Todavia, obviamente, em termos de ilustração visual, teve que haver uma interpretação mais direta das palavras. E, portanto, nessa vertente acaba por haver toda uma conjetura - também ela potencial alvo de subconjeturas. Para isso, coube, portanto, à ilustradora Susa Monteiro - em estreita colaboração com Pedro Vieira de Moura, imagino – o desenho de tais momentos.
E que belas ilustrações Susa Monteiro nos oferece neste Mensagem! Digo até mais, Susa Monteiro foi o casting perfeito para este livro. Até porque o estilo de ilustração da autora, podendo não ser o mais ajustado para outros tipos de banda desenhada, encaixa que nem uma luva numa adaptação deste gabarito.
Com efeito, quem conhece o estilo de desenho da autora, verá facilmente o quão fiel a ele mesmo a autora se revela neste livro. O traço é simples – mas não tão simples como, à primeira vista, pode parecer - de cariz naïf, envergando o estilo perfeito para que mergulhemos nesses tempos idos, relembrados e reinterpretados por Fernando Pessoa. Mesmo em termos de planificação, a autora utiliza várias opções narrativas de algum arrojo, que se encaixam muito bem no espírito da obra: seja a utilização de uma espada para separar quatro vinhetas, a opção por ilustrações de página dupla ou a utilização de vinhetas de todas as dimensões, em que as de maior tamanho surpreendem pela beleza.
É verdade que, a certa medida, são ilustrações que se apresentam algo estáticas quando se pretende passar qualquer ideia de movimento, mas, lá está, tendo em conta a natureza contemplativa e interpretativa de um texto já de si contemplativo de um passado lusitano de glória, acaba por funcionar muito bem.
Em todas as páginas encontramos uma beleza simples e, portanto, carregada de Portugalidade nos desenhos de Susa Monteiro. As próprias guardas do livro, sendo lineares, transmitem beleza e um saboroso aperitivo para o que aí vem. E tenho que dizer que algumas das partes mais conhecidas deste extenso poema de Fernando Pessoa, como por exemplo, a do “Oh Mar Salgado…” estão representadas de forma exímia por Susa Monteiro.
Quanto à edição da Levoir, temos um livro em capa dura baça, com bom papel no miolo e boa impressão e boa encadernação. No final, e tal como já acontecera na anterior coleção Clássicos da Literatura em BD, temos um muito bem traçado dossier informativo, onde são dadas informações sobre a obra, sobre o autor e sobre o contexto histórico em que o mesmo viveu. E isto, naturalmente, engrandece a qualidade da proposta editorial.
A coleção é parecida à anterior dos Clássicos da Literatura em BD, mas apresenta algumas diferenças. Em termos visuais, as capas são agora coloridas. Parece-me uma boa opção, que as torna apelativas e menos frias. O lettering dos títulos continua a ocupar a grande mancha da capa. Ainda que admita que o aspeto é apelativo e, especialmente, original, não posso deixar de apontar que, na parte inferior da capa, a informação referente ao nome da coleção, ao nome dos autores e à utilização dos logótipos da Levoir e da RTP está muito mal arrumada em termos de grafismo. Diria que funcionaria muito, mas mesmo muito melhor, se tivesse sido utilizado um belo friso horizontal que tivesse toda esta informação de uma forma com um mínimo de aprumo na arrumação dos elementos gráficos. Mesmo assim, destaca-se a boa opção de dar destaque, na capa, aos autores responsáveis pela adaptação.
E, pondo os detalhes sobre o grafismo da edição em segundo plano, importa dizer que esta coleção é uma grande aposta por parte da Levoir! E que aplaudo veementemente! Não só por se centrar na cultura portuguesa, como por ser feita (adaptada) por autores maioritariamente portugueses. A escolha de obras parece-me interessante, com nomes incontornáveis como Fernando Pessoa, Luís de Camões, Gil Vicente, Almeida Garret, Fernão Mendes Pinto, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco ou Alexandre Herculano mas, ainda assim, pergunto-me se, em vez da aposta em algumas obras que, não obstante o seu valor literário inquestionável, têm menos appeal comercial, não teria sido interessante a introdução de obras de autores mais contemporâneos - embora igualmente clássicos - como José Saramago, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, António Lobo Antunes, José Cardoso Pires, Sophia de Mello Breyner Andresen, Vitorino Nemésio, Jorge de Sena, Miguel Torga ou Agustina Bessa-Luís, por exemplo. Espanta-me especialmente que não exista uma adaptação de um dos romances do único Prémio Nobel da literatura portuguesa quando se lança uma coleção que procura adaptar os Clássicos da Literatura Portuguesa. Mas, talvez me esteja a adiantar nesta minha análise e talvez estes nomes que elenco já estejam pensados para uma potencial segunda coleção. Atenção: isto é meramente uma especulação da minha parte. Mas leram-na aqui em primeiro lugar.
Em suma, Mensagem abre bem a coleção de Clássicos da Literatura Portuguesa em BD. Sendo uma obra de inquestionável dificuldade de adaptação para banda desenhada – ou para qualquer outro meio – devo dizer que o trabalho conjunto de Pedro Vieira de Moura e Susa Monteiro me convenceu. Tal como, aliás, me convence esta coleção e toda a pertinência que a mesma tem para Portugal, dando uma achega na interpretação dos clássicos e permitindo, quiçá, a introdução à banda desenhada por parte de uma larga franja de leitores que, de outra forma, poderia não cruzar caminhos com a 9ª arte.
NOTA FINAL (1/10):
8.4
Convite: Passem na página de instagram do Vinheta 2020 para verem mais imagens do álbum. www.instagram.com/vinheta_2020
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Mensagem
Autores: Pedro Vieira de Moura e Susa Monteiro
Adaptação a partir da obra original de: Fernando Pessoa
Editora: Levoir
Páginas: 64, a cores
Encadernação: Capa dura
Formato: 210 x 285 mm
Lançamento: Janeiro de 2024
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